O que as crianças contaram

Crianças polacas na URSS

«Na madrugada de 17 de Setembro de 1939, e sem que nada o fizesse prever, o Exército Vermelho invadiu a Polónia ao longo da fronteira polaco-soviética.» A iniciativa resultou dos termos do protocolo apenso ao Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, os quais previam a desintegração política da Polónia e a distribuição do seu território pelas duas potências signatárias. Afinal prevista e preparada a pormenor, esta surpreendente operação confrontou a Europa com um dos primeiros grandes dramas colectivos que iriam atravessar a Segunda Guerra Mundial. O forte controlo da informação e uma intervenção aguda da propaganda, cuja importância as circunstâncias da Guerra Fria irão depois acentuar, fizeram entretanto com que tudo aquilo que ocorreu no interior dos territórios controlados pelas autoridades soviéticas tivesse permanecido longe dos olhares da opinião pública e fora dos compêndios de história. Assim, só após a queda do Muro e a dissolução da União Soviética, a abertura de arquivos até aí reservados ou mesmo secretos, a perda do medo por parte das testemunhas, e o fim da censura, tornaram possível o conhecimento desses dramas.

A Guerra pelos Olhos das Crianças fala de um deles – o desmoronamento do Estado polaco pela intervenção das forças russas e o período da ocupação que se estendeu entre 1939 e 1941 -, fazendo-o a partir de uma experiência muito particular: a das cerca de 250.000 crianças que o viveram directamente e que, quase sempre absolutamente sozinhas, foram expulsas do conforto das suas casas em 30 minutos, introduzidas à força em vagões para transporte de gado, e deportadas para os confins do território soviético, onde se iriam defrontar com condições de vida infinitamente piores do que aquelas a que estavam habituadas. Próximas, aliás, das que experimentava então a maioria dos camponeses russos, mas mais dolorosas para elas devido à sua condição de excluídas e à completa falta de protecção.

Os seus relatos – pois é a partir deles que é construída a maior parte deste volume – falam de um mundo inaudito, no qual a regra da vida era a luta diária pela sobrevivência mais elementar. Como bem vinca Bruno Bettelheim no prefácio, e ao contrário do que seria de esperar em vozes de crianças, eles «não nos falam de esperança, mas sim de desespero, de maus-tratos e de morte.» Apesar de quase sempre ingénuos na forma, todos eles relatam ainda um processo igualmente difícil, traduzido nas iniciativas de «russificação» forçada dos vestígios de cultura polaca que entre elas ainda pudessem ser conservados. Um livro impressionante de Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, dois autores interessados nos problemas da diáspora polaca, que fica, ainda assim, aquém do sofrimento imenso daquelas crianças deixadas ao abandono. Pois, como conta a pequena Danuta G., natural da cidade de Lvov, «é impossível descrever, só uma pessoa que tenha passado por aquilo é que sabe, as outras pessoas não conseguem perceber».

Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, A Guerra pelos Olhos das Crianças. A ocupação soviética da Polónia e as deportações. 1939-1941. Tradução de Hugo Gomes. Pedra da Lua, 320 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]

    História, Memória

    Reflexão dedicada

    Tinha na caixa do correio um folheto destinado a combater a abstenção, a convencer o cidadão a ir amanhã depor o seu voto europeu. Continha a convicção e a fotografia de portugueses normais, de nome José, Silva ou Nogueira, bem como as de um Adelino e de uma Maria Celeste. Todos morenos, com a tez a brilhar da sudação, um deles de blazer azul-petróleo e bigode (não, não era a Dona Celeste). A publicidade normal, todavia, apresenta-nos invariavelmente cidadãos louros, com a pele cuidada e semblante de quem jamais provou uma sardinha assada ou bebeu um copo de três. Pessoas apessoadas, chamadas Marta, Rute, Rita ou Salvador, de dentes alvos e alinhados, roupa casual em tons claros e aquele aspecto saudável de quem acaba de sair de uma revigorante tarde de spa. Como o público-alvo será sensivelmente o mesmo, suponho que a dissemelhança figurativa resida no diferente gosto de quem encomenda os rostos. Um bom motivo de reflexão, nesta tarde em que, por lei, todos somos coagidos a praticá-la.

      Devaneios, Olhares

      Eles, elas e os livros

      O ovo estrelado

      A poucas horas de fechar a campanha eleitoral para as eleições europeias, vale a pena conferir as respostas dos cabeças de lista dos principais partidos ao pedido feito pela revista LER para que indicassem os «dez livros obrigatórios» que irão levar para Bruxelas. Como seria de esperar, as respostas dizem muito sobre as pessoas, a sua dimensão cultural e a amplitude da sua abertura política. Sublinho as respostas de Vital Moreira e de Ilda Figueiredo, discrepantes mas produtos de uma mesma artesania que não brinca em serviço.

      Vital Moreira (PS): Cinco monografias sobre a integração europeia e cinco sobre o Parlamento Europeu.

      Paulo Rangel (PSD): Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar), A Castro (António Ferreira), Peregrinação Interior (António Alçada Baptista), O Processo (Franz Kafka), Jóia de Família (Agustina Bessa-Luís), A Imortalidade (Milan Kundera), Júlio César (William Shakespeare), A Montanha Mágica (Thomas Mann), Mensagem (Fernando Pessoa), De profundis, Valsa Lenta (José Cardoso Pires).

      Ilda Figueiredo (CDU): Constituição da República Portuguesa, Outro Rumo: Nova Política ao Serviço do Povo e do País, A Arte e os Artistas do Vale do Côa (Luís Luís), O Livro Negro do Capitalismo, A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Internacional (M. Chossudovsky), Materialismo e subjectividade – Estudos em torno de Marx (José Barata Moura), Obras Escolhidas (Álvaro Cunhal), Subsídios para a História das Lutas e Movimentos das Mulheres em Portugal sob o Regime Fascista, O Caminho das Aves (José Casanova), A Viagem do elefante (José Saramago), A Terceira Mão (Manuel Gusmão), Triunfo do Amor Português (Mário Cláudio), Alentejo (Eugénio de Andrade).

      Nuno Melo (CDS): Dicionário da Língua Portuguesa, A Espuma do Tempo (Adriano Moreira), O Império Maríimo Português (Charles Boxer), Actas das Sessões Secretas da Câmara dos Deputados e do Senado da República sobre a Participação de Portugal na I Grande Guerra (Ana Mira), O Doutor Arrowsmith (Sinclair Lewis), Amor nos Tempos de Cólera (Gabriel García Márquez), A Primeira Guerra Mundial (Martin Gilbert), Para Além do Capricórnio (Peter Trickett), Trafalgar (Roy Adkins), Estratégia, o Grande Debate (Sun Tzu/Clausewitz).

      Miguel Portas (BE): Odisseia (Homero), Bíblia, O Rei Lear (Shakespeare), Memorial do Convento (José Saramago), As Benevolentes (Jonathan Littel), Breviário Mediterrânico (Predrag Matvejevitch), As «Quatro Eras» (A Era das Revoluções, A Era do Capital, A era dos Impérios, A era dos Extremos, de Eric Hobsbawm), Le Proche Orient Éclaté (Gerorges Corm), Comment le peuple juif fut inventé (Shlomo Sand), The superclass: the global power elite and the world they are making (David Rothkopf).

      Gostaria muito de conhecer as escolhas da segunda linha de cada um dos partidos, mas ficará para outra oportunidade.

        Atualidade, Olhares

        Às tantas, aos poucos

        Provos
        Amsterdão-1967: provos no Vondel Park

        Redigida por volta de 1685-1686, a Carta sobre a Tolerância foi publicada pela primeira vez em 1689, nessa mesma Holanda onde o seu autor, John Locke, procurara protecção. Nela se rejeitava terminantemente a ideia segundo a qual se poderia constranger alguém a crer, visando mostrar-lhe o verdadeiro caminho da salvação, e se defendia que as opções no campo do pensamento devem ser completamente indiferentes para as autoridades. Muito antes, durante as guerras de religião do século XVI, os Países Baixos tinham sido já uma ínsula de liberdade e de relativa paz numa Europa intransigente e a ferro e fogo. Aí encontraram refúgio milhares de judeus hispânicos e de protestantes de diferentes tendências, muitos deles a contas com os patíbulos do Santo Ofício se ali não tivessem buscado refúgio. Na década de 1960, Amesterdão transformou-se numa cidade plural e ali nasceram as primeiras comunidades contraculturais de jovens provos, aceites pelas autoridades apesar das suas posições radicalmente não-violentas e anti-sistema.

        Pois é nesta mesma Holanda que uma força da extrema-direita nacionalista e xenófoba – o Partido para a Liberdade do Povo Holandês, de Geert de Wilders – acaba de ficar em segundo lugar no decurso das eleições para o Parlamento Europeu, admitindo-se já a possibilidade de vir a ganhar as próximas legislativas. No ponto em que estamos, a situação dá bastante que pensar e recoloca um velho problema que os políticos europeus têm feito por varrer para debaixo do tapete: será legítimo integrar no jogo democrático e na arquitectura do bem comum os grupos e organizações que se destinam precisamente a contestá-los? Precisaremos de vê-los no poder para acordarmos e fazermos algo mais do que piedosas reprimendas?

        Adenda – Recebi entretanto um mail de um amigo português que conhece muitíssimo bem a Holanda e me diz que classificar o partido de Geert Wilders como «da extrema-direita e xenófobo» lhe parece «simplificar em demasia a realidade política e social holandesa». Junta ao que me diz um link para um texto de outrem que lhe parece ir ao encontro daquilo que ele próprio pensa. Esse texto pode ler-se aqui. Da minha parte, registo esta opinião, embora muita da informação que me chega às mãos pareça corroborar a leitura que fiz. Incompleta? É muito provável que sim. Por isso esta adenda.

          Apontamentos, Atualidade, Democracia, História, Memória

          Entre a crença e a desilusão

          Nostalgia

          Paul Hollander é um sociólogo americano que deixou a Hungria natal após o esmagamento da revolução antiestalinista de 1956, tendo sido responsável, em conjunto com a jornalista Anne Applebaum, pela edição recente de From the Gulag to the Killing Fields, uma perturbante compilação de testemunhos de ex-prisioneiros políticos dos regimes do «socialismo real» que nos dá um retrato vertiginoso dos patamares desse mundo inferior para o qual estes foram empurrados. Neste O Fim do Compromisso o objectivo é outro, apontando para uma revisitação, apoiada no conjunto alargado de testemunhos autobiográficos, do percurso de quadros comunistas de origem intelectual que após servirem durante décadas os regimes em cujos fundamentos de justiça acreditaram, iniciaram um processo de questionamento das suas certezas iniciais. Mas olhando também aqueles que, no Ocidente, se empenharem apaixonadamente na causa comunista e depois com ela romperam.

          Estes processos, individuais e quase sempre solitários, foram inevitavelmente demorados e invariavelmente dolorosos. Demorados pois implicaram uma revisão de convicções, mudanças profundas na vida de quem os viveu, e, no caso de a ruptura ocorrer nos países nos quais os comunistas detinham o poder, riscos pessoais muito elevados que requeriam bastante ponderação. Nas entrevistas feitas pelo autor, a esmagadora maioria dos testemunhos falou, por isso, muito mais da resistência ao desencanto, e das hesitações, do que do exacto momento no qual decidiu consumar a ruptura. Insistindo, recorrentemente, no modo como a teoria do «fim último» tantas vezes serviu para escamotear a desilusão e adiar o corte. Mas foram também processos dolorosos porque produziram quase sempre uma mudança muito profunda na vida de quem os viveu, o isolamento radical do seu dissídio, infamantes acusações de traição, a redução forçada ao silêncio, e, por vezes, graves complicações no que respeitava à sobrevivência material ou à segurança pessoal.

          O estudo de Hollander segue em regra uma estratégia discursiva que integra informação segura, confirmada, e reflexão ponderada. Perde todavia um pouco de lucidez quando, no capítulo final, o autor baixa a guarda e mostra uma faceta profundamente anticomunista, revelando alguma incapacidade para aceitar as razões de quem, apesar de tudo, não abjurou totalmente e resistiu à completa desilusão. Eric Hobsbawm, Noam Chomsky, Edward Said e Toni Negri, entre outros, são aí invectivados por, cada uma à sua maneira, terem continuado a sugerir, após 1989, que a «convicção comunista» é algo de imperecível, localizado bem para lá das experiências nefastas do socialismo de Estado e da paralisia dos partidos ortodoxos, mantendo uma dimensão positiva e frequentes vezes atraente.

          Paul Hollander, O Fim do Compromisso. Intelectuais, revolucionários e moralidade política. Tradução de Virgílio Viseu. Pedra da Lua, 480 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]

            História

            7 Maravilhas: a petição

            São Jorge da Mina

            Não partilho das concepções, de natureza a-histórica, que partem dos problemas e das contradições do presente para estabelecerem juízos anacrónicos sobre figuras, episódios ou situações do passado. Não podemos ignorar, ou mandar arrasar, as pirâmides de Gizé ou o zigurate de Ur, apenas porque definiram no tempo da sua construção formas de imposição de um modelo social, de uma crença e de uma ordem posteriormente questionados. Ou porque foram erguidos com recurso a trabalho escravo. Como não faz sentido adoptarmos uma avaliação apenas negativista da colonização europeia dos séculos XV a XIX, que não integre as iniciativas contraditórias envolvendo heroísmo e crime, encontro e exclusão, paixão e cobiça. «Todo o documento de cultura», escreveu uma vez Benjamin, «é também um documento de barbárie». Mas também não podemos aceitar uma história asséptica, utilizada acriticamente como curiosidade, instrumento de negócio ou engodo turístico.

            Parece-me pois lamentável que, independentemente do carácter lúdico e popular do concurso As 7 Maravilhas de Origem Portuguesa do Mundo, historiadores profissionais e autoridades académicas aceitem omissões graves, tendentes a embelezar publicamente o passado e a ignorar a sua dimensão contraditória e dramática, falando em abstracto de um «valor histórico e patrimonial.» Concordo por isso com os termos da petição dirigida ao governo que está a circular na Internet, relacionada com a escolha de construções como o Forte de São Jorge da Mina ou da ilha de Moçambique, entre outras. Escolha capaz de elogiar a beleza arquitectónica, o fulgor dos seus muros, o poder que simbolizavam, mas omitindo que serviram, e prolongadamente, de entreposto decisivo para a manutenção do tráfico de escravos. De lugar de desterro, sofrimento e morte. É inadmissível o disfarce da verdade e, em consequência, a redução da dimensão compreensiva, complexa e crítica que toda a História deve ter. Mesmo aquela que legitimamente se destina a alimentar a indústria do turismo ou serve de divertimento.

            Por isso me parece criticável o apoio dado à iniciativa pela Presidência da República, pela Universidade de Coimbra, pelo Instituto Camões ou, por paradoxal que possa parecer, pela CPLP. Pode ler e, se concordar, assinar aqui a petição. [Nota posterior: a petição foi entretanto encerrada, pelo que o link deixou de estar disponível.]

            Publicado originalmente em Caminhos da Memória

              Atualidade, Democracia, História

              Tiananmen e o «dever de esquecimento»

              Tiananmen

              Li há algum tempo, no blogue de um conhecido militante do PCP, uma observação desdenhosa – logo secundada por comentários entusiásticos de leitores – sobre as pessoas que se preocupam com «aquilo» que aconteceu há setenta anos. «Aquilo» eram os crimes do estalinismo, e o que preocupava o conhecido militante era o aproveitamento dessa evocação como arma de arremesso contra o conceito de liberdade que entronca na teoria e rege a prática dos comunistas que não vão em palavrório, continuando, do fundo do coração e do armazém de adrenalina, a acalentar o devaneio de uma ditadura «dos explorados sobre os exploradores». Sendo o vértice do partido marxista-leninista, naturalmente omnisciente, a determinar, sem meias-tintas, quem está de um ou do outro dos lados.

              A ideia é absurda, pois tomada à letra anularia o lugar histórico da construção e do desenvolvimento dos movimentos sociais, da emergência do ideal comunista e até da «luta de classes». Além de que, como qualquer pessoa informada e intelectualmente honesta bem sabe, jamais as operações de instrumentalização ou de silenciamento da História foram tão longe quanto o foram nos regimes, pretéritos e presentes, do «socialismo real» e dos seus sucedâneos. O mais grave, porém, é que aquela atitude de desdém atribui ainda à memória, invocada a bel-prazer ou ignorada consoante as metas do momento, um valor de uso, que, como tal, tanto pode ser descartado como servir de moeda de troca.

              Afinal, será justo esquecer aquilo que aconteceu há cinquenta ou há setenta anos – para muitos milhões de seres humanos, o silêncio, a solidão, a fome, o desespero, a tortura ou a morte – apenas porque tal serve para iludir a ausência de uma resposta clara, por parte dos comunistas de pedra, às circunstâncias da democracia no nosso tempo? Porque tal permite a defesa de uma democracia mitigada, na qual certas pessoas são mais «livres» que as outras, devendo estas pagar pela «liberdade» das primeiras? Trata-se também aqui, para quem não pensa dessa forma, de um «dever de memória», materializado na obrigação de evocar o horror para recordar os mártires e, ao mesmo tempo, para evitar que o futuro revisite os crimes que os esmagaram.

              Os acontecimentos de Tiananmen ocorreram há muito menos tempo, perfazem-se agora vinte anos, e a sua evocação pelos grandes meios de comunicação tem, por vezes, muito de protocolar e farisaico. As imagens guardadas e divulgadas dos episódios de Junho de 1989 foram até, de tão repetidas, perdendo parte do seu sentido dramático. Por isso, agora é mais a sua omissão, o silêncio de determinadas vozes, que ganha um particular significado. Omitir Tiananmen, apagar aquele acto de revolta juvenil e eventualmente ingénua que, como na Budapeste de 1956 ou na Praga de 1968, materializou o apoio da rua, popular em sentido lato, a uma tentativa de democratização de um regime comunista ao velho estilo, é pois sustentar uma espécie de «dever de esquecimento». Aplicado em nome de regimes e de programas para os quais a democracia, escrita com minúsculas, não passa de factor de verborreia e elemento de propaganda.

              É importante lembrar os acontecimentos de Tiananmen. É socialmente higiénico, historicamente justo e politicamente necessário, atendendo à actual situação dos direitos humanos e das liberdades na China. Mas, lembrando, reparar também naqueles que os silenciam ou menorizam. Para acalentarem, porque a espécie se não extinguiu, o ovo da serpente.

                Atualidade, Democracia, História, Memória

                Extrema-esquerda on the rocks

                Inuit Ataqatigiit

                A Gronelândia é uma ilha de elevado valor estratégico, com riquezas naturais imensas – jazidas de zinco, chumbo, ferro, ouro, platina e urânio, pelo menos – por debaixo de uma superfície gelada que derrete todos os dias, e como em mais lado algum, sob a pressão do aquecimento global do planeta. Apesar de escassamente povoado pelos seus 57.000 habitantes, dos quais 50.000 são inuit, e de um clima quase sempre rigoroso, completamente inóspito a norte, estima-se que em breve, com o recuo do gelo, as condições de habitabilidade aumentem consideravelmente. O que coloca no horizonte dos habitantes da ilha, agora a caminho da independência total da administração dinamarquesa, um futuro interessante.

                Entretanto, as eleições neste momento a decorrer devem levar ao poder o Inuit Ataqatigiit. Uma sondagem da Universidade de Nuuk, a capital da ilha, aponta para que o partido social-democrata, no poder há 30 anos, seja derrubado, ganhando claramente as eleições um movimento político que a generalidade dos observadores classifica como de extrema-esquerda. O emblema do partido, aliás, apenas enganará os mais distraídos. Vai pois ser interessante observar, num país sem classe operária ou campesinato, com elevadas potencialidades em termos de crescimento e a uma distância relativamente pequena do Canadá e dos EUA, a emergência de uma dinâmica assumidamente anticapitalista. Este século XXI está com alguma piada.

                  Atualidade, Olhares

                  Poderemos nós mudar?

                  O Contabilista

                  Depois de Portugal, Hoje: O Medo de Existir, editado em 2004, José Gil transformou-se, de certa forma, num «filósofo popular». Não que multidões de peregrinos tenham afluído às livrarias para comprar os seus livros ou obter a custo o precioso autógrafo. Nada disso. José Gil tornou-se conhecido fora do jardim da intelligentsia local porque deu algum destaque, naquele ensaio, a uma das características que os portugueses, num misto de autocomplacência e gozo, mais facilmente reconhecem em si próprios: a inveja como eixo da sociabilidade. Claro que a projecção não adveio de uma leitura aturada do texto – afinal, quantos marxistas leram Marx? quantos existencialistas se esqueceram de Sartre no porão? -, mas do eco propalado pelos média na precisa altura em que Santana Lopes, prestes a ser escorraçado do poder, chorava no ombro dos compatriotas a invídia que supostamente o vitimara.

                  Pois agora Gil publicou um livro mais curto, embora não menos mordaz e interveniente. Em Busca da Identidade – O Desnorte, da Relógio d’Água, tem de facto todas as condições para ser amado ou odiado, uma vez que constitui um brilhante libelo contra o Portugal visto da soleira do actual governo. Um ataque em forma lançado contra o culto obsidente da sacrossanta avaliação, medida de uma modernização desumanizada e sem outro norte que não aquele que ela própria inventa. Realidade da qual as maiorias se queixam, e que as maiorias temem, sem por isso serem capazes de mudar o seu sentido de voto.

                  Detecta-se, de início, uma imputação ao biénio revolucionário do 25 de Abril. Não ao período em si, mas às suas circunstâncias, sequência e desfecho, que rapidamente exauriram uma dimensão trágica ditada pela rua. Ela sim com capacidade regeneradora dos grandes vícios nacionais: a falta de confiança, a inércia, a autocomplacência, o queixume, a inveja. Ocorrendo porém, logo de seguida, um regresso ao estado de prostração herdado do salazarismo. O essencial do argumento passa então a centra-se nas vicissitudes da introjecção. Esta é olhada como uma ferramenta do conformismo, uma vez que situa uma integração neurótica de um mundo «engolido», mas sempre exterior, assente numa incapacidade congénita para traçar um caminho próprio. Um caminho não dependente de modas ou influências importadas, imune à psicose colectiva que se foi desenvolvendo.

                  Sucede-se então o diagnóstico de um discurso da governação, o de agora, que injecta na sociedade portuguesa um veneno que a impede de seguir um caminho próprio: «é o discurso da via única; é o discurso anti-ideológico que pretende emanar da evidência do “real” das próprias coisas»; (…) é o discurso da competência e da redução da subjectividade a perfiz numéricos de competências.» Como é também «o discurso que nega a diferença entre esquerda e direita, considerando-a obsoleta.» Nesta viagem, «a governação socialista» oferece-nos então «o instrumento para transitar sem percalços da velha sociedade para o novo modo de viver: a avaliação». Esta «dará e medirá», de uma vez por todas, «o mérito e a recompensa.» Gil refere-se então ao caso exemplar da avaliação dos professores, ocupando com ela perto de um quarto do livro, e mencionando a dimensão panóptica – no sentido delineado por Foucault – do sistema instituído pelo Ministério da Educação. Considera-o pós-kafkiano e fortemente marcado por «uma espécie de delírio que atravessa quotidianamente os seus conceptores e decisores.»

                  Claro que os alvos naturais deste ensaio – os actuais dirigentes socialistas em primeiro lugar, mas também muitos dos políticos partidários que sem sucesso os combatem noutras barricadas – dificilmente passarão da página 21, que é onde fecha a primeira parte do volume. Leitura difícil, indigesta e um pouco irritante para quem se dedica mais à sucessão de dossiês ou à leitura das gordas. Para quem segue na fila das prebendas. Impenetrável para os doentes crónicos do «chico-espertismo», observado por José Gil como «traço psicológico» de um certo padrão de arrivista nacional. E que pululam, agora como nunca, pelas áreas de decisão e seus interstícios.

                  Leitura complementar: entrevista de José Gil ao Público

                    Atualidade, Olhares

                    O fantasma de Jdanov

                    Jdanov

                    A reunião de Hugo Chávez com «intelectuais socialistas e revolucionários», destinada a atenuar o impacte de um encontro internacional sobre liberdade e democracia a decorrer ao mesmo tempo em Caracas, por causa do qual Mario Vargas Llosa ficou retido e foi enxovalhado em pleno aeroporto da capital venezuelana, faz, pelo simples facto de afastar, enquanto intelectuais, essas pessoas das «outras», ecoar ideias velhas e perigosas. Evocar tempos sombrios que saltam do além-túmulo para atemorizarem os vivos. A possibilidade enunciada de existir quem possa pensar, escrever, falar, representar, pintar ou filmar de um modo objectivamente «patriótico», «socialista», «revolucionário» – ou mesmo «proletário», como se tentou noutros lugares –, naturalmente situada num lugar privilegiado de acesso ao poder «revolucionário» e às honrarias destinadas aos melhores cidadãos, abre sempre as portas a um universo monolítico e carcerário. Ao qual, pela menorização social e pelo castigo objectivo determinado pela sua diferença, são confinados todos os que se atrevam a pensar à margem do paradigma celebrado. Mesmo aqueles que pisem, solitários e sem programa político visível, o seu próprio caminho. Os autoproclamados «intelectuais socialistas e revolucionários» deveriam ser os primeiros a percebê-lo – para mais com a experiência histórica do seu lado –, recusando aceitar o estatuto de casta ou servir de tropa de choque. Mas preferem acobardar-se, vestindo a camiseta vermelha e tomando-se por valentes.

                      Atualidade, Democracia, Memória, Opinião

                      Pela igualdade

                      MPI

                      Fui uma das cerca de 800 pessoas que subscreveram inicialmente o documento fundador do MPI – Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil. A apresentação pública do manifesto teve lugar neste domingo. Pode conhecê-lo e assiná-lo também aqui. Transcrevo o parágrafo final, aquele que define a meta mais essencial deste esforço.

                      O acesso ao casamento civil por parte de casais do mesmo sexo, em condições de plena igualdade com os casais de sexo diferente, não trará apenas justiça, igualdade e dignidade às vidas de mulheres e de homens LGBT. Dignificará também a nossa democracia e cada um e cada uma de nós enquanto cidadãos e cidadãs solidários/as – e será um passo fundamental na luta contra a discriminação e em direcção à igualdade.

                        Atualidade, História, Olhares, Opinião

                        ABC das Palavras Obsoletas – 3

                        Porreiro, pá

                        Porreiro

                        O «porreiro, pá!», acompanhado de um rijo aperto de mão, dirigido por um conhecido governante português a um dirigente europeu seu compatriota no final da conferência de imprensa na qual ambos anunciaram o acordo obtido na Cimeira Europeia de Lisboa de 2007, deu a volta ao país pela mão de comentadores, bloggers e políticos. Entre ambos, a expressão traduzia um código geracional destinado a sinalizar um pacto, contentamento, familiaridade. Para muitas pessoas, no entanto, representou uma maneira superficial, quase ofensiva, de abordar um assunto e uma decisão que não admitiam ligeireza de modos. O Bloco de Esquerda transformou mesmo a palavra em ferramenta da sua propaganda eleitoral, exaltando a nota negativa mas deslembrando que a palavra já quase se não usa fora dos espaços sociais provindos dos antigos circuitos estudantis e urbanos.

                        De facto, «porreiro» já era. E era apenas para alguns, mais privilegiados. Era «bom, excelente», como era «simples, prestativo». «Gajo porreiro» era, «entre a malta», o sujeito camarada, boa rês, «cara legal» capaz de reagir com simpatia até quando alguém lhe assentava nas costas, à socapa, uma palmada das fortes. «Porreiro» era o tipo que não se importava que lhe cravassem cigarros atrás de cigarros – no tempo em que as pessoas normais fumavam – e jamais pedia de volta os cem paus que emprestara no mês passado. Era o sujeito sem manias, simples, pouco dado ao espectáculo, capaz de ouvir sem se impor aos outros. Uma espécie de Doutor Moreira ao contrário. Um José Mourinho às avessas. Já «miúda porreira» era aquela fixe, camarada mesmo, que se não esquecia dos nossos anos e nos dava metafísicos chocolates ou parzinhos de peúgas. Gente assim, «porreira» mesmo, ou efectivamente «porreta», capaz de dar uma mão na hora H, ainda existe, mas já poucos a identificam dessa forma. Só mesmo aqueles que ainda se servem do vocábulo «pá». Mas esse, pá, dará outra entrada deste ABC.

                        PS – Dizem-me por mail que «porreiro» é também uma palavra usada no Brasil «para definir o cara que só vive de porre», podendo igualmente significar «pinguço, cachaceiro, pé de cana, garganta de alambique, etc.» O que não me parece contradizer aquilo que atrás ficou escrito.

                          Etc., Olhares

                          Andam aí, os espanhóis

                          Spain

                          Um momento de distracção, um baixar da guarda, e caímos em mais  um nó de publicidade intrusiva via SMS. Visitante ocasional das bombas da CEPSA, preenchi um «cartão de cliente» e comecei de imediato a receber propostas e lembretes. Não esperava é que estes me chegassem num espanholês críptico e futebolino.

                          «Sou um “partidaço”! Sou desconto en combustível. Tire o maximo partido de mim. Va hoje ao seu Posto de Abastecimento. Sou seu Cartao Porque Eu Volto.»

                            Devaneios, Etc.

                            Foucault lido às avessas

                            Classroom

                            Os professores reduzidos à condição de robôs palermas ou indigentes mentais: «Não devem decorar as instruções ou interpretá-las, mas antes lê-las exactamente como lhes são apresentadas.» Os alunos tratados como soldados instruendos em sádicas sessões de ordem unida: «Agora vou distribuir as provas. Deixem as provas com as capas para baixo, até que eu diga que as voltem.» Ou então: «A primeira parte da prova termina quando encontrarem uma página onde está escrito PÁRA AQUI!» Fiz todos os meus exames do secundário na década de 1960 – incluindo neles as temidas provas de «admissão ao liceu» e de «aptidão à universidade», vigiadas por professores de porte austero e fato completo – e jamais observei tal obsessão com a rigorosa sequência dos rituais e o controlo dos corpos. Michel Foucault lido às avessas pelos seres andróides do Ministério da Educação. «Podem sair. Obrigado(a) pela vossa colaboração!» Ler para crer.

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                              Voo rasante

                              Mathias no tribunal

                              Passam hoje exactamente 22 anos – ainda o Muro não tinha sido derrubado – sobre o dia no qual todos percebemos que a URSS já não metia medo a ninguém. E que qualquer rapazola com algum espírito de aventura e conhecimentos rudimentares de aviação era capaz de iludir o sistema de defesa soviético e aterrar incólume, ao comando de um Cessna 172B, em plena Praça Vermelha. Mathias Rust contará mais tarde, em entrevista ao Washington Post, os sentimentos que foi experimentando durante a sua viagem inabitual: «Durante todo o voo, estava em transe; era como uma experiência extracorporal. (…) Lembro-me de sobrevoar uma praia na Estónia. E disse para mim mesmo: ‘Agora estou na União Soviética’.» Uma mistura de brincadeira e de audácia que mostrou como o mundo estava a mudar e a Guerra Fria a gastar os últimos cartuchos.

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                                Pyongyang também é aqui

                                Coreia do Norte vs. USA

                                A Coreia do Norte acaba de realizar «com sucesso» um novo teste nuclear. Contrariando a actual tendência para um desanuviamento internacional em larga escala neste campo, anuncia triunfalmente que outros se seguirão e proclama que tem todo o direito de o fazer. Para se justificar, a clique autocrática local ignora a nova realidade mundial e retoma o palavrório dos tempos de Guerra Fria, garantindo que «o ensaio vai contribuir para garantir a nossa soberania, o socialismo, a paz e a segurança». Justamente numa altura em que os desígnios da generalidade das potências nucleares apontam para uma nova era de desarmamento negociado. Vindo de quem vem, de um regime autista e despótico cujos responsáveis se comportam como uma trupe de actores de terceira interpretando uma associação de malfeitores dementes, o perigo torna-se real e atinge-nos a todos. Todavia, os consignatários locais de Kim Jong-il ao assunto dizem nada. E quando abrirem a boca, se por algum prodígio o vierem a fazer, será para declararem que a culpa é toda desse «Obama-igual-a-Bush» que carrega aos ombros o mal do mundo e precisam odiar. Ou para invocarem o exemplo de Israel. Sendo matéria muito grave de política internacional, convirá que os eleitores hesitantes conheçam este tipo de condescendência cúmplice quando forem votar a 7 de Junho.

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