Um filme que já vimos

Sentido de voto

As eleições europeias são, numa certa medida, as mais importantes de todas. Não decidem quem nos vai governar a casa ou quem guardará durante quatro anos a chave da junta, mas como nelas o «voto útil» tem reduzido peso, expressam de forma mais completa que as legislativas ou as autárquicas a vontade de muitas pessoas comuns. Além disso, uma grande parte dos sectores mais despolitizados, que decidem muitos dos resultados, nesta altura deixa-se ficar em casa a ver a TVI, ou vai dar milho aos pombos e fazer o circuito dos centros comerciais. Sobressai então, um pouco mais, a opinião daqueles que a têm. Mesmo quando ela se traduz em votos dispersos, deixados em branco ou anulados com um risco de alto a baixo.

Isto confirma o absurdo das interpretações de sectores próximos da direcção actual do PS, que, em estado pós-traumático, se centram agora na vertigem da bipolarização e insistem na ideia peregrina segundo a qual escolher opções «menores», ou que jamais serão governo, é «fazer o jogo da direita». Essas pessoas sabem muito bem que, se não ocorrer um cataclismo social neste momento imprevisível, tanto o Bloco de Esquerda como o Partido Comunista atingiram o maior score possível, e, em conjunto, jamais superarão os 25 ou 26 por cento dos votos, servindo-se desta previsão para minimizarem a escolha do grande número de pessoas que votou nesses partidos sem necessariamente se reverem neles e reconhecendo aquilo que os separa. Mas isso significa reduzir a democracia a uma espécie de teste americano com duas opções, sendo a «esquerda» da qual falam aquela que sabemos: uma área de gestão realista, desvitalizada e soporífera, filha unigénita da decrépita «terceira via», que reduz a política ao circo mediático, à genica pré-formatada das jotas e à capacidade de desempenho dos comissários políticos. De «esquerda», de «esquerda», sobra então um passado legitimador, a cor da bandeira, o «punhinho fechado», e umas quantas frases ocasionais usadas em campanha.

Muito pelo contrário, se o alargamento do espectro político pode implicar dificuldades futuras – leia-se, dificuldades em produzir e manter maiorias absolutas – enriquece também a diversidade democrática e contribui para o empenho na coisa pública de um maior número de pessoas. As dificuldades resolvem-se com aproximações, com acordos, com verdadeiro debate, com algumas cedências de todos, e não com a constante submissão a uma força hegemónica mais bem colocada para ser poder ad infinitum e impor, sem dar ouvidos aos outros, as leis que bem lhe apetecer rabiscar. Afinal, um filme que já vimos. Um filme mau, por sinal.

    Atualidade, Opinião

    Reencontro

    Robert Creeley

    Reencontrei por um acaso, nas rápidas arrumações do duplo feriado, Home, um disco soberbo que me acompanhou durante parte do inverno de 1980/81. Uma música que na altura me aproximou, e muito, da poesia de Robert Creeley (1926-2005). Os músicos são do melhor: a voz de Sheila Jordan, mais Steve Kuhn, David Liebman, Steve Swallow, Lyle Mays e Bob Moses. Um acaso feliz, o regresso a um certo passado. Aqui, a Some Echoes.

    Some echoes,
    little pieces,
    falling, a dust,

    sunlight, by
    the window, in
    the eyes.  Your

    hair as
    you brush
    it, the light

    behind
    the eyes,
    what is left of it.

    [audio:http://aterceiranoite.org/sons/some echoes.mp3]

      Memória, Música, Olhares

      A leste e ainda mais a leste

      Berlim-Leste

      Da responsabilidade de Jean-François Soulet, um especialista em história comparada do mundo comunista, a História da Europa de Leste da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias desenha uma síntese do trajecto da metade oriental do «velho continente» desde a invasão da Polónia pelos nazis até à adesão dos países de toda a região à União Europeia. Divide-se em três partes repartidas numa sequência temporal: na primeira delas, «a passagem ao comunismo», o autor ocupa-se principalmente da estratégia da União Soviética para aqueles territórios durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial; na segunda, «o tempo do comunismo», descreve o processo de «sovietização» de toda a região, posto em prática com o apoio dos partidos comunistas locais, mas também alguns dos movimentos de revolta e dos actos de dissidência que contestaram essa influência; na terceira parte, «a derrocada do comunismo», parte da avalancha de contestação e queda, pós-1989, dos regimes ali implantados, para seguir os processos de democratização dos diferentes Estados, mas refere-se também aos demónios acordados pelo recuo da influência ideológica comunista e às situações, por vezes críticas e trágicas, entretanto vividas. Como escreveu João Tunes no blogue Água Lisa, «ler este livro completa-nos enquanto europeus», como cidadãos «de uma Europa feita de muitos povos, muitos dramas e traumas.» É uma boa síntese, que disfarça uma quase escandalosa lacuna temática na edição local de obras sobre a nossa história recente. [Trad. de Manuel Ruas. Teorema, 382 págs.]

        Atualidade, História

        No coração da raça

        Mcgyver

        Neste post limitei-me a pegar num texto sem autoria declarada que me chegou às mãos e a dar-lhe pequenos retoques cosméticos. Aliás, alguns blogues mencionaram o assunto há meses atrás. Mas vale a pena retomá-lo em pleno «Dia da Raça».

        Um site norte-americano fez uma lista das 10 palavras estrangeiras que mais falta fazem à língua inglesa. The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs são lideradas pela palavra portuguesa «desenrascanço», aquela que, de acordo com os autores do site, mais falta faz no vocabulário inglês. Depois de percorrermos duas páginas com explicações sobre nove palavras de um valor muito prático correntes noutras línguas, chegamos aquela colocada em primeiro lugar. A falta da cedilha não importa para se perceber que estamos a falar do «desenrascanço», conceito supostamente emblemático da nossa cultura. Um uso, experiência ou qualidade da qual, aliás, adoramos vangloriar-nos. Entre nós ou diante dos outros.

        «Desenrascanço» é  pois «a arte de encontrar a solução para um problema no último minuto, sem um plano prévio e sem meios», revelando ao mesmo tempo muito sobre a cultura local. E continua o site: «enquanto a maioria de nós [norte-americanos] cresceu sob o lema dos escuteiros “sempre preparados”, os portugueses fazem exactamente o contrário». Desta forma, «conseguir um improviso de última hora que, não se sabe bem como, até funciona, é o que eles [portugueses] consideram como uma das suas mais valiosas aptidões». Adianta-se ainda ser a palavra tão importante que «até a ensinam na universidade e nas forças armadas», acreditando-se que tal capacidade tem sido a chave «da sua sobrevivência durante séculos»,  tendo igualmente representado um dos fundamentos da aventura colonial. «Que se lixe a preparação, eles têm o desenrascanço», conclui o artigo, que sugere uma expressão em inglês capaz de se aproximar minimamente do sentido tomado pela palavra portuguesa: «To pull a MacGyver».

          Apontamentos, Olhares, Recortes

          O Ocidente não é um acidente

          A ponte

          Tal como proclama o título do original francês, o objectivo confesso do livro é «explicar o Ocidente a toda a gente». Roger-Pol Droit faz a defesa, estorvada pela influência das teses de um relativismo radical que muitos ocidentais têm assumido como um processo de autoflagelação apoiado na denúncia dos horrores cometidos – que o filósofo, aliás, não nega -, de um locus cultural capaz de valorizar uma tradição histórica não só legítima, mas também dotada de uma identidade própria, em condições de assumir virtualidades dinâmicas situadas a uma escala planetária e aqui tomadas como imprescindíveis. O Ocidente não surge pois, neste pequeno volume de um assumido didactismo, associado, como aconteceu no passado, apenas a uma área geográfica, a uma religião, ou a uma civilização, mas antes como uma ideia aberta a todos, de pendor universal, que valoriza de forma compósita e única os princípios da igualdade e da liberdade, a razão crítica, e a capacidade para a inovação. Despojada de uma percepção etnocêntrica e agressiva, uma das convicções de que o acusam – segundo as palavras de Droit, «a pretensão de deter uma verdade válida para toda a humanidade e em condições de criar uma felicidade generalizada» – pode ser reconvertida em ponto de partida para a sua remissão como território de uma vida decente, melhor e partilhada. Por tudo isto, vale a pena recomendar O que é o Ocidente? aos que se deixam facilmente conduzir por leituras unívocas. [Roger-Pol Droit, O que é o Ocidente? Trad. de Inês Dias. Gradiva, 80 págs.]

            História, Olhares

            Euna e Laura

            Euna e Laura

            Por «actos hostis» e «actividades não-identificadas» – basicamente por estarem a trabalhar, após terem entrado ilegalmente no território controlado pelos empregados do «Querido Líder», sobre a vaga de fugas de norte-coreanos desesperados para a China – duas jovens jornalistas norte-americanas foram condenadas a nada menos que 12 anos de trabalhos forçados. Uma «medida disuasora», como bem assinalam os Repórteres Sem Fronteiras. É importante que não sejam esquecidas pela opinião pública internacional. E que nos lembremos delas sempre que tivermos de avaliar os consignatários locais da ditadura paranóide de Pyongyang.

              Atualidade, Democracia

              Esse composto de mudança

              Banda Larga

              Em Castanheira do Vouga, no concelho de Águeda, o povo boicotou as eleições durante mais de três horas porque a banda larga não chega à localidade. O presidente da Junta, justamente indignado com a discriminação, afirmou que a Internet é hoje «tão indispensáel como eram há anos o lápis e a borracha.» As reivindicações dos povos já nada têm a ver com o ódio às máquinas manifestado no ímpeto destruidor dos antigos operários ludistas. Será, pois, bom para o PS que as baterias dos Magalhães durem até Outubro com razoável autonomia.

                Atualidade, Cibercultura

                Muito campeonato pela frente

                PSD ganhou as eleições europeias em Portugal. O Bloco de Esquerda ganhou mais espaço e atingiu o seu Evereste. O PCP «subiu 20 por cento» e diz que ficar atrás do BE «não é uma derrota». O CDS esmagou completamente as empresas de sondagens. O Movimento Esperança Portugal afirma ser já «um estádio da Luz cheio de gente». O MRPP conseguiu o seu «objectivo primordial» que era «subir em percentagem». Mesmo a votação do Partido Socialista foi apenas e só «decepcionante». Pelo que percebi, o único vencido por estes dias foi o Paulo Pereira Cristóvão. Nas eleições do Sporting.

                  Devaneios, Etc.

                  Eleições no eucaliptal

                  No eucaliptal

                  Sou um dos muitos cidadãos, provavelmente alguns milhares, que por ter obtido recentemente o Cartão do Cidadão viu o seu habitual local de voto alterado. Hoje, dentro da cidade de Coimbra e seu termo, só à quarta vez e no quarto sítio consegui meter a cartolina no pote. Andei quase 50 quilómetros dentro da cidade, perdi-me duas vezes, fiz inversão de marcha em becos, conduzi em sentido proibido, apanhei uma chuvada, falei com um polícia, um enfermeiro e um cidadão com aspecto (e comportamento) de demente que foi o único a orientar-me em condições. A nova mesa de voto, descobri ao fim de horas, fica no meio de nada, num pavilhão pré-fabricado e entre eucaliptos e urzes, já quase fora da cidade. Isto quando aquela até agora habitual está a 100 metros de minha casa. Suspeito que também por aqui a abstenção marcará pontos. Uma pessoa que eu cá sei fica a dever-me esta.

                    Atualidade, Devaneios

                    O que as crianças contaram

                    Crianças polacas na URSS

                    «Na madrugada de 17 de Setembro de 1939, e sem que nada o fizesse prever, o Exército Vermelho invadiu a Polónia ao longo da fronteira polaco-soviética.» A iniciativa resultou dos termos do protocolo apenso ao Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, os quais previam a desintegração política da Polónia e a distribuição do seu território pelas duas potências signatárias. Afinal prevista e preparada a pormenor, esta surpreendente operação confrontou a Europa com um dos primeiros grandes dramas colectivos que iriam atravessar a Segunda Guerra Mundial. O forte controlo da informação e uma intervenção aguda da propaganda, cuja importância as circunstâncias da Guerra Fria irão depois acentuar, fizeram entretanto com que tudo aquilo que ocorreu no interior dos territórios controlados pelas autoridades soviéticas tivesse permanecido longe dos olhares da opinião pública e fora dos compêndios de história. Assim, só após a queda do Muro e a dissolução da União Soviética, a abertura de arquivos até aí reservados ou mesmo secretos, a perda do medo por parte das testemunhas, e o fim da censura, tornaram possível o conhecimento desses dramas.

                    A Guerra pelos Olhos das Crianças fala de um deles – o desmoronamento do Estado polaco pela intervenção das forças russas e o período da ocupação que se estendeu entre 1939 e 1941 -, fazendo-o a partir de uma experiência muito particular: a das cerca de 250.000 crianças que o viveram directamente e que, quase sempre absolutamente sozinhas, foram expulsas do conforto das suas casas em 30 minutos, introduzidas à força em vagões para transporte de gado, e deportadas para os confins do território soviético, onde se iriam defrontar com condições de vida infinitamente piores do que aquelas a que estavam habituadas. Próximas, aliás, das que experimentava então a maioria dos camponeses russos, mas mais dolorosas para elas devido à sua condição de excluídas e à completa falta de protecção.

                    Os seus relatos – pois é a partir deles que é construída a maior parte deste volume – falam de um mundo inaudito, no qual a regra da vida era a luta diária pela sobrevivência mais elementar. Como bem vinca Bruno Bettelheim no prefácio, e ao contrário do que seria de esperar em vozes de crianças, eles «não nos falam de esperança, mas sim de desespero, de maus-tratos e de morte.» Apesar de quase sempre ingénuos na forma, todos eles relatam ainda um processo igualmente difícil, traduzido nas iniciativas de «russificação» forçada dos vestígios de cultura polaca que entre elas ainda pudessem ser conservados. Um livro impressionante de Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, dois autores interessados nos problemas da diáspora polaca, que fica, ainda assim, aquém do sofrimento imenso daquelas crianças deixadas ao abandono. Pois, como conta a pequena Danuta G., natural da cidade de Lvov, «é impossível descrever, só uma pessoa que tenha passado por aquilo é que sabe, as outras pessoas não conseguem perceber».

                    Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, A Guerra pelos Olhos das Crianças. A ocupação soviética da Polónia e as deportações. 1939-1941. Tradução de Hugo Gomes. Pedra da Lua, 320 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]

                      História, Memória

                      Reflexão dedicada

                      Tinha na caixa do correio um folheto destinado a combater a abstenção, a convencer o cidadão a ir amanhã depor o seu voto europeu. Continha a convicção e a fotografia de portugueses normais, de nome José, Silva ou Nogueira, bem como as de um Adelino e de uma Maria Celeste. Todos morenos, com a tez a brilhar da sudação, um deles de blazer azul-petróleo e bigode (não, não era a Dona Celeste). A publicidade normal, todavia, apresenta-nos invariavelmente cidadãos louros, com a pele cuidada e semblante de quem jamais provou uma sardinha assada ou bebeu um copo de três. Pessoas apessoadas, chamadas Marta, Rute, Rita ou Salvador, de dentes alvos e alinhados, roupa casual em tons claros e aquele aspecto saudável de quem acaba de sair de uma revigorante tarde de spa. Como o público-alvo será sensivelmente o mesmo, suponho que a dissemelhança figurativa resida no diferente gosto de quem encomenda os rostos. Um bom motivo de reflexão, nesta tarde em que, por lei, todos somos coagidos a praticá-la.

                        Devaneios, Olhares

                        Eles, elas e os livros

                        O ovo estrelado

                        A poucas horas de fechar a campanha eleitoral para as eleições europeias, vale a pena conferir as respostas dos cabeças de lista dos principais partidos ao pedido feito pela revista LER para que indicassem os «dez livros obrigatórios» que irão levar para Bruxelas. Como seria de esperar, as respostas dizem muito sobre as pessoas, a sua dimensão cultural e a amplitude da sua abertura política. Sublinho as respostas de Vital Moreira e de Ilda Figueiredo, discrepantes mas produtos de uma mesma artesania que não brinca em serviço.

                        Vital Moreira (PS): Cinco monografias sobre a integração europeia e cinco sobre o Parlamento Europeu.

                        Paulo Rangel (PSD): Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar), A Castro (António Ferreira), Peregrinação Interior (António Alçada Baptista), O Processo (Franz Kafka), Jóia de Família (Agustina Bessa-Luís), A Imortalidade (Milan Kundera), Júlio César (William Shakespeare), A Montanha Mágica (Thomas Mann), Mensagem (Fernando Pessoa), De profundis, Valsa Lenta (José Cardoso Pires).

                        Ilda Figueiredo (CDU): Constituição da República Portuguesa, Outro Rumo: Nova Política ao Serviço do Povo e do País, A Arte e os Artistas do Vale do Côa (Luís Luís), O Livro Negro do Capitalismo, A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Internacional (M. Chossudovsky), Materialismo e subjectividade – Estudos em torno de Marx (José Barata Moura), Obras Escolhidas (Álvaro Cunhal), Subsídios para a História das Lutas e Movimentos das Mulheres em Portugal sob o Regime Fascista, O Caminho das Aves (José Casanova), A Viagem do elefante (José Saramago), A Terceira Mão (Manuel Gusmão), Triunfo do Amor Português (Mário Cláudio), Alentejo (Eugénio de Andrade).

                        Nuno Melo (CDS): Dicionário da Língua Portuguesa, A Espuma do Tempo (Adriano Moreira), O Império Maríimo Português (Charles Boxer), Actas das Sessões Secretas da Câmara dos Deputados e do Senado da República sobre a Participação de Portugal na I Grande Guerra (Ana Mira), O Doutor Arrowsmith (Sinclair Lewis), Amor nos Tempos de Cólera (Gabriel García Márquez), A Primeira Guerra Mundial (Martin Gilbert), Para Além do Capricórnio (Peter Trickett), Trafalgar (Roy Adkins), Estratégia, o Grande Debate (Sun Tzu/Clausewitz).

                        Miguel Portas (BE): Odisseia (Homero), Bíblia, O Rei Lear (Shakespeare), Memorial do Convento (José Saramago), As Benevolentes (Jonathan Littel), Breviário Mediterrânico (Predrag Matvejevitch), As «Quatro Eras» (A Era das Revoluções, A Era do Capital, A era dos Impérios, A era dos Extremos, de Eric Hobsbawm), Le Proche Orient Éclaté (Gerorges Corm), Comment le peuple juif fut inventé (Shlomo Sand), The superclass: the global power elite and the world they are making (David Rothkopf).

                        Gostaria muito de conhecer as escolhas da segunda linha de cada um dos partidos, mas ficará para outra oportunidade.

                          Atualidade, Olhares

                          Às tantas, aos poucos

                          Provos
                          Amsterdão-1967: provos no Vondel Park

                          Redigida por volta de 1685-1686, a Carta sobre a Tolerância foi publicada pela primeira vez em 1689, nessa mesma Holanda onde o seu autor, John Locke, procurara protecção. Nela se rejeitava terminantemente a ideia segundo a qual se poderia constranger alguém a crer, visando mostrar-lhe o verdadeiro caminho da salvação, e se defendia que as opções no campo do pensamento devem ser completamente indiferentes para as autoridades. Muito antes, durante as guerras de religião do século XVI, os Países Baixos tinham sido já uma ínsula de liberdade e de relativa paz numa Europa intransigente e a ferro e fogo. Aí encontraram refúgio milhares de judeus hispânicos e de protestantes de diferentes tendências, muitos deles a contas com os patíbulos do Santo Ofício se ali não tivessem buscado refúgio. Na década de 1960, Amesterdão transformou-se numa cidade plural e ali nasceram as primeiras comunidades contraculturais de jovens provos, aceites pelas autoridades apesar das suas posições radicalmente não-violentas e anti-sistema.

                          Pois é nesta mesma Holanda que uma força da extrema-direita nacionalista e xenófoba – o Partido para a Liberdade do Povo Holandês, de Geert de Wilders – acaba de ficar em segundo lugar no decurso das eleições para o Parlamento Europeu, admitindo-se já a possibilidade de vir a ganhar as próximas legislativas. No ponto em que estamos, a situação dá bastante que pensar e recoloca um velho problema que os políticos europeus têm feito por varrer para debaixo do tapete: será legítimo integrar no jogo democrático e na arquitectura do bem comum os grupos e organizações que se destinam precisamente a contestá-los? Precisaremos de vê-los no poder para acordarmos e fazermos algo mais do que piedosas reprimendas?

                          Adenda – Recebi entretanto um mail de um amigo português que conhece muitíssimo bem a Holanda e me diz que classificar o partido de Geert Wilders como «da extrema-direita e xenófobo» lhe parece «simplificar em demasia a realidade política e social holandesa». Junta ao que me diz um link para um texto de outrem que lhe parece ir ao encontro daquilo que ele próprio pensa. Esse texto pode ler-se aqui. Da minha parte, registo esta opinião, embora muita da informação que me chega às mãos pareça corroborar a leitura que fiz. Incompleta? É muito provável que sim. Por isso esta adenda.

                            Apontamentos, Atualidade, Democracia, História, Memória

                            Entre a crença e a desilusão

                            Nostalgia

                            Paul Hollander é um sociólogo americano que deixou a Hungria natal após o esmagamento da revolução antiestalinista de 1956, tendo sido responsável, em conjunto com a jornalista Anne Applebaum, pela edição recente de From the Gulag to the Killing Fields, uma perturbante compilação de testemunhos de ex-prisioneiros políticos dos regimes do «socialismo real» que nos dá um retrato vertiginoso dos patamares desse mundo inferior para o qual estes foram empurrados. Neste O Fim do Compromisso o objectivo é outro, apontando para uma revisitação, apoiada no conjunto alargado de testemunhos autobiográficos, do percurso de quadros comunistas de origem intelectual que após servirem durante décadas os regimes em cujos fundamentos de justiça acreditaram, iniciaram um processo de questionamento das suas certezas iniciais. Mas olhando também aqueles que, no Ocidente, se empenharem apaixonadamente na causa comunista e depois com ela romperam.

                            Estes processos, individuais e quase sempre solitários, foram inevitavelmente demorados e invariavelmente dolorosos. Demorados pois implicaram uma revisão de convicções, mudanças profundas na vida de quem os viveu, e, no caso de a ruptura ocorrer nos países nos quais os comunistas detinham o poder, riscos pessoais muito elevados que requeriam bastante ponderação. Nas entrevistas feitas pelo autor, a esmagadora maioria dos testemunhos falou, por isso, muito mais da resistência ao desencanto, e das hesitações, do que do exacto momento no qual decidiu consumar a ruptura. Insistindo, recorrentemente, no modo como a teoria do «fim último» tantas vezes serviu para escamotear a desilusão e adiar o corte. Mas foram também processos dolorosos porque produziram quase sempre uma mudança muito profunda na vida de quem os viveu, o isolamento radical do seu dissídio, infamantes acusações de traição, a redução forçada ao silêncio, e, por vezes, graves complicações no que respeitava à sobrevivência material ou à segurança pessoal.

                            O estudo de Hollander segue em regra uma estratégia discursiva que integra informação segura, confirmada, e reflexão ponderada. Perde todavia um pouco de lucidez quando, no capítulo final, o autor baixa a guarda e mostra uma faceta profundamente anticomunista, revelando alguma incapacidade para aceitar as razões de quem, apesar de tudo, não abjurou totalmente e resistiu à completa desilusão. Eric Hobsbawm, Noam Chomsky, Edward Said e Toni Negri, entre outros, são aí invectivados por, cada uma à sua maneira, terem continuado a sugerir, após 1989, que a «convicção comunista» é algo de imperecível, localizado bem para lá das experiências nefastas do socialismo de Estado e da paralisia dos partidos ortodoxos, mantendo uma dimensão positiva e frequentes vezes atraente.

                            Paul Hollander, O Fim do Compromisso. Intelectuais, revolucionários e moralidade política. Tradução de Virgílio Viseu. Pedra da Lua, 480 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]

                              História

                              7 Maravilhas: a petição

                              São Jorge da Mina

                              Não partilho das concepções, de natureza a-histórica, que partem dos problemas e das contradições do presente para estabelecerem juízos anacrónicos sobre figuras, episódios ou situações do passado. Não podemos ignorar, ou mandar arrasar, as pirâmides de Gizé ou o zigurate de Ur, apenas porque definiram no tempo da sua construção formas de imposição de um modelo social, de uma crença e de uma ordem posteriormente questionados. Ou porque foram erguidos com recurso a trabalho escravo. Como não faz sentido adoptarmos uma avaliação apenas negativista da colonização europeia dos séculos XV a XIX, que não integre as iniciativas contraditórias envolvendo heroísmo e crime, encontro e exclusão, paixão e cobiça. «Todo o documento de cultura», escreveu uma vez Benjamin, «é também um documento de barbárie». Mas também não podemos aceitar uma história asséptica, utilizada acriticamente como curiosidade, instrumento de negócio ou engodo turístico.

                              Parece-me pois lamentável que, independentemente do carácter lúdico e popular do concurso As 7 Maravilhas de Origem Portuguesa do Mundo, historiadores profissionais e autoridades académicas aceitem omissões graves, tendentes a embelezar publicamente o passado e a ignorar a sua dimensão contraditória e dramática, falando em abstracto de um «valor histórico e patrimonial.» Concordo por isso com os termos da petição dirigida ao governo que está a circular na Internet, relacionada com a escolha de construções como o Forte de São Jorge da Mina ou da ilha de Moçambique, entre outras. Escolha capaz de elogiar a beleza arquitectónica, o fulgor dos seus muros, o poder que simbolizavam, mas omitindo que serviram, e prolongadamente, de entreposto decisivo para a manutenção do tráfico de escravos. De lugar de desterro, sofrimento e morte. É inadmissível o disfarce da verdade e, em consequência, a redução da dimensão compreensiva, complexa e crítica que toda a História deve ter. Mesmo aquela que legitimamente se destina a alimentar a indústria do turismo ou serve de divertimento.

                              Por isso me parece criticável o apoio dado à iniciativa pela Presidência da República, pela Universidade de Coimbra, pelo Instituto Camões ou, por paradoxal que possa parecer, pela CPLP. Pode ler e, se concordar, assinar aqui a petição. [Nota posterior: a petição foi entretanto encerrada, pelo que o link deixou de estar disponível.]

                              Publicado originalmente em Caminhos da Memória

                                Atualidade, Democracia, História

                                Tiananmen e o «dever de esquecimento»

                                Tiananmen

                                Li há algum tempo, no blogue de um conhecido militante do PCP, uma observação desdenhosa – logo secundada por comentários entusiásticos de leitores – sobre as pessoas que se preocupam com «aquilo» que aconteceu há setenta anos. «Aquilo» eram os crimes do estalinismo, e o que preocupava o conhecido militante era o aproveitamento dessa evocação como arma de arremesso contra o conceito de liberdade que entronca na teoria e rege a prática dos comunistas que não vão em palavrório, continuando, do fundo do coração e do armazém de adrenalina, a acalentar o devaneio de uma ditadura «dos explorados sobre os exploradores». Sendo o vértice do partido marxista-leninista, naturalmente omnisciente, a determinar, sem meias-tintas, quem está de um ou do outro dos lados.

                                A ideia é absurda, pois tomada à letra anularia o lugar histórico da construção e do desenvolvimento dos movimentos sociais, da emergência do ideal comunista e até da «luta de classes». Além de que, como qualquer pessoa informada e intelectualmente honesta bem sabe, jamais as operações de instrumentalização ou de silenciamento da História foram tão longe quanto o foram nos regimes, pretéritos e presentes, do «socialismo real» e dos seus sucedâneos. O mais grave, porém, é que aquela atitude de desdém atribui ainda à memória, invocada a bel-prazer ou ignorada consoante as metas do momento, um valor de uso, que, como tal, tanto pode ser descartado como servir de moeda de troca.

                                Afinal, será justo esquecer aquilo que aconteceu há cinquenta ou há setenta anos – para muitos milhões de seres humanos, o silêncio, a solidão, a fome, o desespero, a tortura ou a morte – apenas porque tal serve para iludir a ausência de uma resposta clara, por parte dos comunistas de pedra, às circunstâncias da democracia no nosso tempo? Porque tal permite a defesa de uma democracia mitigada, na qual certas pessoas são mais «livres» que as outras, devendo estas pagar pela «liberdade» das primeiras? Trata-se também aqui, para quem não pensa dessa forma, de um «dever de memória», materializado na obrigação de evocar o horror para recordar os mártires e, ao mesmo tempo, para evitar que o futuro revisite os crimes que os esmagaram.

                                Os acontecimentos de Tiananmen ocorreram há muito menos tempo, perfazem-se agora vinte anos, e a sua evocação pelos grandes meios de comunicação tem, por vezes, muito de protocolar e farisaico. As imagens guardadas e divulgadas dos episódios de Junho de 1989 foram até, de tão repetidas, perdendo parte do seu sentido dramático. Por isso, agora é mais a sua omissão, o silêncio de determinadas vozes, que ganha um particular significado. Omitir Tiananmen, apagar aquele acto de revolta juvenil e eventualmente ingénua que, como na Budapeste de 1956 ou na Praga de 1968, materializou o apoio da rua, popular em sentido lato, a uma tentativa de democratização de um regime comunista ao velho estilo, é pois sustentar uma espécie de «dever de esquecimento». Aplicado em nome de regimes e de programas para os quais a democracia, escrita com minúsculas, não passa de factor de verborreia e elemento de propaganda.

                                É importante lembrar os acontecimentos de Tiananmen. É socialmente higiénico, historicamente justo e politicamente necessário, atendendo à actual situação dos direitos humanos e das liberdades na China. Mas, lembrando, reparar também naqueles que os silenciam ou menorizam. Para acalentarem, porque a espécie se não extinguiu, o ovo da serpente.

                                  Atualidade, Democracia, História, Memória