Suicidado aos 18 anos, em 1770, na cama da sua mansarda em Holborn, um dos mais mal-afamados bairros da Londres da época, o poeta Thomas Chatterton transformou-se rapidamente no arquétipo do herói romântico. Milhares de anémicos jovens viram-se ao espelho, por mais de um século, como Chattertons em potência, tão geniais quanto incompreendidos. Pois agora Jürgen Heizmann, um académico alemão que ensina na Universidade de Montréal, vem confirmar aquilo que a verdade alternativa desde há algum tempo vinha murmurando: que os poemas do jovem Thomas foram sistematicamente decalcados de manuscritos antigos (um falsário pois) e que a morte prematura não se deveu a suicídio, mas sim a um tratamento mal aplicado contra uma doença venérea. A ser verdade, não passa de mais um caso em que a doce fantasia excedeu largamente a crueza dos factos. Fiquemo-nos pois pela lenda e atiremos a realidade pela janela.
Um conceito pesado
Como muitos outros intelectuais ocidentais, Slavoj Zizek não gosta que se fale de islamo-fascismo. Para explicar a recusa invoca no entanto, em entrevista ao L’Humanité (republicada na edição portuguesa do Courrier International), um argumento algo falacioso. Declara uma verdade («ainda há trinta anos havia uma esquerda laica muito forte nos países árabes») e associa-lhe uma evidência («o Ocidente tomou uma decisão totalmente catastrófica ao apontar a esquerda laica, pelas suas ligações à União Soviética, como inimigo principal, e ao apoiar, por razões estratégicas, os fundamentalistas»). Mas infere daqui que, pela mesma razão, este Ocidente perdeu a legitimidade para apontar o dedo ao modelo agressivo e totalitário com um peso crescente no universo do Islão contemporâneo.
O argumento terá sido simplificado por Zizek, dado aparecer numa entrevista curta onde é impossível detalhar razões. Mas infelizmente ele tem sido adiantado – justamente na sua versão simplista – por quem se preocupa em desculpabilizar os excessos das vertentes agressivas e intolerantes do Islão como justificáveis em função dos erros dos governos e da comunicação social do mesmo Ocidente. No limite, alguns sectores, de facto pouco ou nada preocupados com um convívio democrático e transcultural paritário, aceitam até esses excessos como parte de uma vertente da luta anticapitalista, anti-imperialista e anti-sionista que, na sua leitura míope e elementar, o radicalismo islâmico protagonizará de maneira legítima. Esquecendo, desta forma, a longa tradição histórica de um Islão tolerante para com o laicismo, incluindo o de pendor socialista, que tem sido particularmente reprimido por esse lado exaltado, fanático e totalitário de certas organizações e de determinados regimes auto-intitulados «islâmicos». Ou, se se quiser, «islâmicos de certa maneira».
Sem papas na língua comme d’habitude, Christopher Hitchens – que ainda no passado 18 de Fevereiro esteve por cá, na Casa Fernando Pessoa, a defender «a urgência do ateísmo» – estabelece, em artigo publicado em 2007 na revista Slate, um conjunto de «similitudes óbvias» entre o fascismo histórico e o islamo-fascismo, conceito que aceita sem grandes objecções:
«Both movements are based on a cult of murderous violence that exalts death and destruction and despises the life of the mind. (‘Death to the intellect! Long live death!’ as Gen. Francisco Franco’s sidekick Gonzalo Queipo de Llano so pithily phrased it.) Both are hostile to modernity (except when it comes to the pursuit of weapons), and both are bitterly nostalgic for past empires and lost glories. Both are obsessed with real and imagined ‘humiliations’ and thirsty for revenge. Both are chronically infected with the toxin of anti-Jewish paranoia (interestingly, also, with its milder cousin, anti-Freemason paranoia). Both are inclined to leader worship and to the exclusive stress on the power of one great book. Both have a strong commitment to sexual repression – especially to the repression of any sexual ‘deviance’ – and to its counterparts the subordination of the female and contempt for the feminine. Both despise art and literature as symptoms of degeneracy and decadence; both burn books and destroy museums and treasures.»
É verdade que o uso da expressão islamo-fascismo pode ser histórica e conceptualmente discutível (como se sabe, o próprio uso alargado do conceito de fascismo é-o também). E é com toda a certeza injusto para com toda a tradição do Islão e para com muitos muçulmanos que são até vítimas dos seus ditames e das suas práticas. Mas corresponde a uma experiência com a qual todo o mundo – a começar pelo islâmico – tem de se confrontar. Aceitar a realidade política e cultural do islamo-fascismo constitui uma precaução que em nada deve afectar o relacionamento pacífico com o mundo islâmico. Uma conexão que, todavia, não pode ser mantida a qualquer preço.
Adenda – Um erro de Hitchens no qual não reparei ao fazer a transcrição em copy-paste: a frase “Viva la Muerte!” foi bradada, em 12 de Outubro de 1936, durante um confronto público com Miguel de Unamuno, por José Millán-Astray – aliás, hoje recordado quase exclusivamente por estas palavras assassinas –, e não por Queipo de Llano.
O direito a dissidir
Pode parecer uma bizantinice, mas vale a pena encarar a questão levantada por Pedro Correia – de quem cordialmente ‘dissido’ neste particular (e por vezes noutros) – a propósito da palavra ‘dissidente’, quando considera que o termo não deve ser utilizado para referir opositores ou contestatários isolados dos regimes de Pequim ou de Havana. Para sustentar a sua opinião, refere que ele foi cunhado na antiga União Soviética «para designar todos quantos se afastavam da ‘normalidade’ política e social, insinuando uma espécie de doença psíquica». Se o regime dizia representar todo o povo, quem não se sentisse representado por ela só poderia então ser ‘dissidente’. Ou seja, anormal, louco e criminoso.
É parcialmente verdadeiro este referencial histórico, mas não o é inteiramente. Na verdade, a palavra surgiu de início, no ocidente, para se referir aos intelectuais soviéticos que se opunham, quase sempre isoladamente e de forma ilegal, a um regime totalitário que remetia a diferença, a divergência em relação ao pensamento único e a um sistema que se considerava a caminho da perfeição, para a esfera da marginalidade e da doença. Como era possível alguém em seu perfeito juízo, e para mais um cidadão supostamente informado, membro da intelligentsia, divergir do cientificamente determinado e comprovado, do tão indiscutivelmente justo que nem precisava ser sufragado? Foi o eco do combate desses homens e dessas mulheres – nem sempre com idêntico sentido, uma vez que agiam isoladamente ou em pequenos grupos e não constituíam propriamente uma associação com objectivos programáticos – que os revelou como… dissidentes. E para cunhar o qualificativo não foi preciso ir longe: bastou recorrer à velha palavra dissidentia, que em latim significa oposição, antipatia, desarmonia. E hoje lá vem no dicionário dissidência como o «acto de separar-se (de uma parcela de um grupo, agremiação, partido, etc.) em virtude de divergência de opiniões». Em qualquer tempo ou lugar.
Sim, Hu Jia ou Wei Jingsheng, como Guillermo Fariñas ou Yoani Sánchez, podem ser considerados dissidentes. E até o devem ser, uma vez que os antecedentes históricos do qualificativo apenas enobrecem o seu combate pelo direito a pensarem por si e a comunicarem aos outros aquilo que pensam. O direito a dissidir, o imperativo moral de viver e actuar em dissídio. Ainda que se enganem mil vezes.
Voo picado
Um artigo «de opinião» saído hoje no Público, assinado pelo tenente-coronel piloto aviador Brandão Ferreira («A democracia e o casamento entre géneros idênticos»), constitui um dos exercícios mais retrógrados, intolerantes, violentos e sobretudo demagógicos que tenho lido nos últimos tempos. Não se trata de um texto que exprima uma posição da qual discordemos mas que possamos respeitar: este arrazoado execrável e rancoroso ultrapassa em muito o nível do ensaio argumentativo para se transformar num exercício proto-fascista de agressão à própria democracia. Pode ser lido na íntegra num post publicado no Jugular.
Publicado originalmente no Arrastão
O comunista tranquilo
Acaba de chegar às livrarias a tradução portuguesa de Prisioneiro de Estado (ed. Casa das Letras), o diário secreto de Zhao Ziyang, antigo primeiro-ministro chinês e secretário-geral do PCC entre 1987 e 1989, forçado a retirar-se e viver em prisão domiciliária os últimos anos da sua vida por ter demonstrado uma atitude de compreensão perante as reivindicações estudantis e os protestos de Tienanmen. «Um olhar íntimo sobre um dos regimes mais compactos do mundo», escreve-se na badana. Resultado de 30 horas de gravação clandestina – guardadas em cassetes de baixa qualidade escondidas entre os brinquedos dos netos – mostram a permanente luta de facções, de interesses e de vaidades que se esconde por detrás do aparente monolitismo do regime. Roderick MacFarquhar, o prefaciador, recorda que na China de hoje, Zhao, morto em 2005, «é uma pessoa que não existe», mas quando um dia os chineses puderem ler estas páginas e perceber o seu lugar na história do país conhecerão o perfil tolerante e o esforço renovador deste comunista tranquilo que gostava de rir, de comer e de ouvir os outros.
A Pordata
Bastante útil, e também bastante impressionante, a Pordata, autodefinida como «um projecto destinado a todos, pensado para um vasto número de utentes que comungam do interesse em conhecer, com confiança e rigor, mais sobre Portugal». Um serviço público excepcional, a visitar regularmente por quem trabalha ou escreve sobre os últimos cinquenta anos da nossa vida colectiva.
Protesto dirigido à embaixada de Cuba
À embaixada de Cuba em Portugal:
“Nós, cidadãos de um país que conquistou a sua liberdade há 36 anos, solidários com a resistência a todas as formas de imperialismo, críticos do bloqueio injusto e injustificável a Cuba por parte dos Estados Unidos da América, vimos através deste abaixo-assinado protestar contra morte do activista Orlando Zapata Tamayo depois de uma pena de prisão absurda e de uma greve de fome pelos seus direitos civis. E, através deste protesto, manifestar a nossa solidariedade empenhada para com todos os presos políticos cubanos e para com todos aqueles que em Cuba lutam por valores que, para quem, como os portugueses, viveu meio século de ditadura, são bens preciosos: a democracia, a liberdade e o direito a autodeterminação dos povos e dos indivíduos. Não há verdadeira independência de um povo sem democracia. Não há revolução que valha a pena sem liberdade.”
Pode assinar aqui. Divulgue através das redes sociais e do seu blogue.
Toda a dissidência será castigada
O historiador e ensaísta cubano Rafael Rojas publicou no México, onde vive e trabalha por não poder retornar à sua ilha, Tumbas Sin Sosiego, um livro sobre a experiência da relação revolução-dissidência entre os intelectuais cubanos do exílio. Aí escreve a dada altura que a religiosidade política da ideia cubana de Revolução «não radica tanto na escatologia do marxismo-leninismo quanto na mitologia do nacionalismo revolucionário», o qual possui, como se sabe, um grande lastro histórico em toda a América Latina. É em parte por esta razão que todo o dissidente é equiparado a um traidor, traindo não propriamente a classe operária, que aliás mal existe em Cuba, mas sim «a Pátria». É por isso, inevitavelmente, um «mercenário» a soldo do inimigo externo, cujo «crime» – divergir e expressar a sua divergência, pedir uma ordem política que aceite a expressão de alternativas – é da ordem do delito comum, um a vez que atenta contra a unidade que presumivelmente garante a independência face ao inimigo imperialista.
Este é um dos grandes paradoxos do regime cubano: sustenta, desde 1959, um combate sem tréguas contra os Estados Unidos da América – contra aquilo que eles representavam nos primeiros tempos da Revolução, e depois contra o injusto e desnecessário bloqueio que têm mantido – mas precisa desse combate para justificar a repressão contra os «desordeiros sabotadores». Assim se compreende que as autoridades castristas tenham agora deixado morrer Orlando Zapata Tamayo, um canalizador de origem humilde, membro da organização de defesa dos direitos civis Directório Democrático, preso em 2003 quando foi apanhado numa vaga repressiva contra a oposição em que dezenas de pessoas foram acusadas de «conspirar com os Estados Unidos para derrubar o regime», sendo então quase todas condenadas a penas pesadíssimas, que chegaram aos 28 anos de prisão. A sua morte é «lamentável», como o próprio Raúl Castro acaba de reconhecer para estrangeiro ver, mas para a clique gerontocrática que governa a ilha ela é compreensível e, de certa forma, necessária. No final do excelente artigo disponível online («2009: El año en que se desvaneció el raulismo»), é ainda Rafael Rojas quem recorda:
«Esses anciãos sempre viveram em guerra, real ou imaginária, e as suas mentes acomodaram-se à lógica do confronto. Como guerreiros que são, compreenderam que quaisquer reformas, ainda que limitadas e controláveis, serão a porta de entrada para uma mudança maior que não querem viver. Qualquer decisão que tomem em política interna ou externa, nos próximos anos, reger-se-á por esse cálculo biológico: o tempo que lhes resta de vida deve ser invertido na perpetuação do sistema político, não na sua transformação, problema que diz respeito apenas aos jovens. É a isso que chamam “vitória”: morrer sem mudar.»
O mais difícil de entender é a existência, esparsa mas visível, fora de Cuba, de alguns rebentos serôdios seduzidos por uma Sierra Maestra de fantasia. Que medem a sua têmpera revolucionária em função da fidelidade a um modelo histórico que permanece «firme», inalterado, e que não foi democraticamente referendado em mais de meio século de regime. Que bradam sem hesitações «Patria o Muerte. Venceremos!». Para defenderem a sua quimérica e envelhecida Revolución, aceitam, justificam e fazem eco de todas as afirmações do governo de Havana contra os supostos traidores. Cuja prova de traição é facílima de identificar: não acreditam na perfectibilidade do regime, consideram a hipótese de o submeter à lógica «burguesa» e «reaccionária» do voto, e, calcule-se a suprema insolência, esforçam-se, com risco da sua liberdade, do seu emprego e até da própria vida, por declará-lo publicamente.
Três posts sobre o tema que publiquei num passado mais ou menos recente: A imensa tristeza (já de 2003), Do Caddilac ao Trabant e Relógios cubanos – 50 anos depois.
Pró-diálogo
Saiu este mês e ainda pode ser encontrado em alguns quiosques um número especial da revista Philosophie Magazine que tem o Corão como tema unificador de um leque alargado de documentos, citações, entrevistas e artigos. O ponto de partida é o único que possibilita uma leitura aberta e produtiva: considera-se que não existe uma leitura exclusiva do livro sagrado, reconhece-se a ambiguidade de muitos dos seus passos e aceita-se a possibilidade de uma crítica laica do seu conteúdo. Justamente os três aspectos que o islamismo radical rejeita em absoluto. Discutem-se assim, de uma forma aberta e com depoimentos contraditórios, temas como a liberdade, a sharia, o lugar das mulheres, a jihad, o papel da razão, e apresentam-se testemunhos que nos permitem humanizar e diversificar uma vivência religiosa por muitos associada a barbudos hirsutos com os olhos injectados de ódio anti-ocidental e o polegar no detonador. Um bom contributo para sobrepor riqueza analítica e compreensão aos juízos primários que, pró ou contra, têm naturalizado, e por vezes legitimado, a dimensão violenta das controvérsias políticas e religiosas envolvendo o Islão.
O nosso mahatma
Tenho, como o terá qualquer pessoa que não considere os Médicos Sem Fronteiras e a AMI organizações não-governamentais ao serviço dos bárbaros do ocidente, um enorme apreço pela actividade de Fernando Nobre no campo da medicina humanitária. Pessoas de diferentes quadrantes que o conhecem garantem-me também tratar-se de uma pessoa afável, simpática, honesta e trabalhadora. Não me parece, porém, que só por si tais habilitações o qualifiquem especialmente para poder tornar-se em 2011 o próximo PR. A sua experiência política é, no mínimo, sinuosa e ininteligível, já que em 2002, com Durão Barroso no Governo, participou na convenção do PSD, em 2006 fez parte da comissão política da candidatura de Mário Soares, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu foi o mandatário nacional do Bloco de Esquerda, e meses depois, nas autárquicas, integrou a Comissão de Honra de António Capucho, candidato do PSD à Câmara de Cascais. Além disso, declarar candidatar-se por um «imperativo moral e de consciência para Portugal», falando em abstracto de «valores» que é necessário retomar, é afirmação oca, vagamente «à la PRD» (para quem se recorde ainda do falecido), que nada declara para além da presunção de um papel moralizador e messiânico, e que nada significa em termos de qualificação para um cargo que supõe uma relação de confiança com parte significativa dos cidadãos, uma linha de intervenção previsível, experiência política e um estilo afirmativo e mobilizador. Existir, aparentemente, uma fracção da esquerda que se deixa entusiasmar por esta possibilidade de levar ao poder «a bondade em pessoa» e de assim derrotar Cavaco é, por tudo isto, uma situação que se afigura de recorte esotérico. É preciso não se gostar mesmo nada de Manuel Alegre. Ou ter-se um sentido táctico que toca o absurdo. Ou ainda experimentar uma certa nostalgia pela figura amável de Gandhi, o mahatma, a «grande alma». Só que a missão aqui é outra.
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Às armas, cidadãos
A Plataforma Cidadania Casamento, em consórcio com a Confederação Nacional das Associações de Família – duas organizações cuja designação só por si evoca, por certo, os melhores sentimentos –, resolveu passar à fase de guerra de trincheiras e, na pessoa do general Garcia dos Santos, vem dizer-nos que um grupo de «25 militares de Abril», aberto a novas adesões (e provavelmente a novas experiências), escreveu uma Carta Aberta contra a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a qual consideram «uma aberração». Os senhores militares e ex-militares em causa têm todo o direito, felizmente, de escrever ou de dizer aquilo que pensam. Agora invocarem o 25 de Abril para uma manifestação pública de homofobia e intolerância é que não lembra a um soldado raso.
Medo e resistência
Não, não vivemos na fronteira ténue de um regime despótico, açaimados por uma censura que actua na escuridão para esconder «a verdade» das pessoas comuns, cegando-as para as malfeitorias do nefando ditador e dos seus cúmplices de fato completo. Por muita pressão, manipulação, troca de favores da qual seja possível captar alguns ecos, ocasionalmente algumas provas (sim, parece bem possível), por muita arrogância, autismo, sectarismo, verborreia que nos cheguem diariamente (mais do que evidentes), nada indicia que se avizinhe uma democracia musculada de tonton-macoutes e «jotinhas», prontos a tomar posições de combate num cenário de pré-catástrofe. Gritá-lo às três pancadas – nos jornais, nos blogues, nas pracetas – é infantil, é ridículo, é inútil. E é também perigoso, pois desvia a atenção dos cidadãos para os problemas reais que têm a ver, de facto, com a redução da liberdade, a coacção, o medo.
Com estes sim, convivemos cada vez mais, todos os dias, sem feriados ou fins-de-semana, até à exaustão. Eles têm vindo a ser impostos, na administração pública como em muitas empresas, por decretos e regulamentos invariavelmente desumanizados, que em nome da sacrossanta «competitividade» minam a confiança entre as pessoas, reinstalam o autoritarismo, acentuam as desigualdades, sobrecarregam os horários, precarizam o trabalho e incitam ao individualismo cego do salve-se quem puder. Envenenam assim, lentamente mas sem descanso, o espaço para falar livremente e para criticar, enquanto premeiam o seguidismo e a cobardia. Não estou, como bem sabe quem tem o seu emprego ou o perdeu há pouco tempo, a falar de fantasias. Nem a arquitectar um cenário para revoluções salvíficas e perfeitas. Refiro-me à vida, em alguns casos à sobrevivência, de gente que vive ameaçada. Isto sim, justifica a vigilância, a denúncia, a resistência.
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«A Satanás, atentamente, as suas vítimas»
Acaba de sair em Espanha uma colectânea de cartas dirigidas a Estaline pelos escritores Mikhail Bulgakov (1891-1940) e Evgueni Zamiatine (1884-1937). Resultando de investigações feitas nos arquivos da Lubianka, a sede moscovita do KGB, após o fim da URSS, elas trazem de volta o terror puro de quem vivia diariamente entre o silêncio imposto e a possibilidade da prisão ou do fuzilamento, o destino definitivo de tantos outros. Falam pois da morte em vida. As vítimas omitem aqui a pobreza, o frio, as privações que lhe foram destinadas pelo facto de não serem autores alinhados com a política e a estética do regime, e apelam tão-somente a que lhes seja concedida a possibilidade de sobreviverem como autores e como pessoas. Zamiatine conseguiria ir morrer em Paris. O autor de Margarida e o Mestre viveu até ao fim silenciado e na miséria.
Nós, a mais conhecida obra de Zamiatine, precursora do Admirável Mundo Novo (1930) de Huxley e de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1948) de Orwell – concluída em 1921 mas cuja primeira edição em russo só pôde sair perto de sessenta anos mais tarde –, abre assim:
«Limito-me a transcrever textualmente o que hoje mesmo veio publicado na Gazeta do Estado:
Dentro de cento e vinte dias ficará completo o Integral. Aproxima-se a hora insigne, histórica, em que o primeiro Integral se levantará no espaço cósmico. Há mil anos, os nossos heróicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao domínio do Estado Único. Hoje assistiremos a um feito ainda mais glorioso: a integração, por meio do Integral, feito de vidro, eléctrico, ígneo, da eterna igualização de tudo o que existe. Ficarão sujeitos ao benéfico jugo da razão todos os seres desconhecidos, os habitantes doutros planetas que porventura vivam ainda no estado selvagem de liberdade. Se acaso não percebem que nós lhes levamos a felicidade matemática e exacta. É nosso dever forçá-los a serem felizes. Mas, antes de puxarmos das armas, tentaremos recorrer à palavra.
Em nome do Benfeitor, todos os números do Estado Único ficam notificados do seguinte:
Todos os que se sentirem capacitados deverão compor tratados, poemas, odes e outras composições sobre a beleza e a grandeza do Estado Único.
Eles constituirão o primeiro carregamento do Integral.
E viva o Estado Único. Vivam os números. Viva o Benfeitor!
Escrevo estas coisas e sinto o meu rosto a arder. Sim… há que levar a cabo a integração, proceder à grandiosa e infinita igualização de tudo o que existe. Sim, há que distender a curva selvagem, reduzi-la a uma tangente… a uma assímptota… a uma linha recta! E isso porque a linha do Estado Único é uma linha recta. A grande, a divinal. A exacta, a sábia linha recta – a mais sábia de todas as linhas!»
Trad. a partir do inglês por Manuel João Gomes (Edições Antígona, 1990)
Gritos na açoteia
Esta imagem do fotojornalista italiano freelancer Pietro Masturzo acaba de vencer o prémio máximo da World Press Photo 2009. Captada em Teerão durante os protestos originados pela reeleição do presidente iraniano, nela podem ver-se algumas mulheres que da açoteia de uma casa gritavam a sua indignação. O impacto cénico e o contraste dos gestos dão a ver, retirando-as da sombra, a cólera dos manifestantes e a violência do regime que os leva a manifestarem-se. E o perigo que correm aquelas mulheres pela circunstância simples de terem sido fotografadas.
Orwell e os seus acusadores
Em Espanha, na frente de Huesca (Março de 1937)
A memória pesa, mesmo quando ela é a memória da mentira e da calúnia. Como aquela, ecoada desde há anos, que refere um George Orwell «traidor», «bufo», cujo delito – a suposta denúncia ao governo britânico de 38 compagnons de route comunistas – foi forjado pelos neo-estalinistas, seus acusadores públicos, na tentativa de desacreditar um dos intelectuais europeus que, no campo da esquerda, mais cedo e de forma pública divergiu das posições do Kremlin e do seu sistema de terrorismo de Estado. Mais de setenta anos depois, esta gente continua a replicar o modelo insidioso e bárbaro, utilizado nos anos trinta durante os Processos de Moscovo, que manipula, descontextualiza ou fabrica informação com vista a denegrir o acusado e a abatê-lo sem piedade.
A verdade, porém, conta-se em poucas palavras. Celia Kirwan, funcionária do Foreign Office trabalhista e cunhada de Arthur Koestler, o autor de O Zero e o Infinito (Darkness at Noon, de 1940), organizou em 1949 em Inglaterra um ciclo de conferências sobre o estalinismo e dirigiu-se a Orwell – na altura internado num sanatório e a dez meses apenas da morte – pedindo-lhe alguns nomes de pessoas que poderiam participar. Este respondeu-lhe com uma lista de figuras que lhe parecia não valer a pena convidar, pois dadas as suas relações com os soviéticos, e a possibilidade de alguns deles serem até agentes seus, jamais aceitariam. Foi esta relação – divulgada em 1982 na biografia do escritor britânico da autoria de Bernard Crick – que os caluniadores passaram a considerar «prova de delação». A perseguição a Orwell, essa vem muito de trás, pelo menos desde os anos da Guerra Civil de Espanha e da escrita de Homage to Catalonia (1938), quando a sua crítica do comunismo soviético e a denúncia militante do terror estalinista começaram, sob influência de algumas das alegações dos anarquistas e dos trotskistas, a ganhar forma. A derradeira gota de água seria a distopia projectada em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949). Este caso da lista apenas serviu de pretexto para desenterrar um velho ódio.
| Leituras diferentes aqui e aqui.
| Uma abordagem parcial mas útil das posições políticas de Orwell aqui.
Mundimagens
Em Machine de Vision, de 1988, Paul Virilio anunciava a instauração de uma democracia-espelho capaz de fazer regredir as antigas formas de reflexão colectiva. Escrevia aí que «o exibicionismo e o voyeurismo, reforçando-se mutuamente, passaram a determinar o fetichismo da imagem opticamente correcta, na qual o padrão das aparências integra e remata a opinião pública». Baudrillard falava também da «condenação à morte» de toda a referência exterior à própria imagem, determinada pela sua exuberância e proliferação. Isto não me apavora, apesar de ser um rato dos papéis. Não encontro aqui ameaça alguma. Vejo só um imenso repto à nossa capacidade para projectar e ampliar mundos comunicantes. Não uma megacatástrofe, mas uma viagem desafiante em mar revolto.
| recuperado por acaso de um post publicado há seis anos
Carrossel
É nestas alturas que pessoas como nós, que cruzamos as cidades de sapatos confortáveis, circulamos pelas auto-estradas a ouvir mp3 no bem-bom do ar condicionado e nos indignamos com o cheiro a pipocas no cinema, que blogamos e tuitamos e feicebucamos, digitamos teclados virtuais ou bluetooth, sabemos distinguir um iPod de um iPad, vamos a concertos e a festivais, viajamos de avião, passamos por hotéis silenciosos e restaurantes onde ninguém levanta a voz, percebemos que continua a existir um país para o qual o jogo da vida se faz do futebol da «liga dos últimos», de iscas de cebolada, de circos manhosos, bailes dos bombeiros e umas voltas de carrossel ou carrinhos de choque. Eu nasci e vivi uma parte da minha vida a vinte quilómetros de Pedrógão Pequeno e não sabia que era essa a distância que me separava da «capital do carrossel». A medida exacta da minha ignorância e da minha miopia, que é a de todos nós que vemos aqueles homens e aquelas mulheres um pouco estranhos, todos com mais de quarenta anos, corpos flácidos, camisolas puídas, calçado cheio de lama, a reivindicarem que não lhes retirem o cabo do mundo onde ainda conseguem viver. A exigirem direitos que para eles marcam a distância entre a sobrevivência e uma vida pior ainda do que aquela que levam. A fazerem com que conheçamos o tamanho da nossa indiferença.
Insistir no óbvio
Há quase trinta anos que por motivos familiares visito regularmente a Madeira. Apesar de em 1981, quando pela primeira vez desembarquei no Aeroporto de Santa Catarina, ainda se sentir na rua alguma relutância em relação ao «cubano» que chegava do Continente – eu era nitidamente um deles – salvo raríssimas excepções fui sempre bem tratado. E ainda que me desagrade a degradação da natureza e da paisagem urbana suscitadas ao longo destas três décadas pelo crescimento do asfalto e do betão, nunca deixei de me sentir bem na ilha. Gosto da Madeira, gosto da generalidade dos madeirenses, e, não fora detestar andar de avião e sofrer de uma certa «insulofobia», talvez nem me importasse de passar por lá bastante mais tempo.
Nunca fui ao Porto Santo mas conheço bem toda a ilha da Madeira. Sei por isso que, se retirarmos algumas áreas onde reside a população mais pobre e desamparada, por toda a parte se respira um ambiente de prosperidade: vias rápidas e eficazes, cidades organizadas, um serviço de saúde exemplar, excelentes instalações escolares, transportes públicos eficazes, um óptimo parque automóvel, pessoas geralmente bem vestidas, muitas lojas de artigos de luxo, bons hotéis e bons restaurantes. Uma prosperidade bem visível na vida e nas atitudes de muitas famílias. Como não se vê, nesta dimensão, em parte alguma do resto de Portugal. Hoje mesmo no Público Manuel Carvalho apresenta dados irrefutáveis: o rendimento per capita na Madeira é de 128 por cento da média nacional, e enquanto o rendimento nacional ronda os 76 por cento da média europeia, os madeirenses beneficiam de 97 por cento. Como lembra o subdirector do jornal, «no país mais desigual da Europa, só Lisboa está acima». Desta forma percebe-se que a maioria das pessoas continue a eleger e a adular o aparente arquitecto deste pequeno paraíso?
Só que ao mesmo tempo – não escrevo novidade alguma, mas convém relembrar – não existe no arquipélago, para além de um turismo de massas sazonal (o antigo, regular e «de qualidade», tem vindo a regredir), actividade económica que aparentemente pague uma situação que nenhuma outra região do país mantém. Não existe uma única indústria (não conta, naturalmente, a produção semi-artesanal de vimes e de bordados), o campo vive quase em regime de monocultura (a videira ou a bananeira ocupam a paisagem cultivada visível), não existe criação de gado significativa ou actividades derivadas, o comércio tradicional definha a olhos vistos. E, pior, não se pensa, não se fala, numa alternativa a este deserto económico. Há, sim, um consumo de bens elevado, condicionado pelo Governo Regional que é o principal empregador e o grande padrinho, e por uma política de subsídios que torna tudo – educação, saúde, transportes – muito mais barato do que em qualquer outra parte do país. Nestas condições, como não apelar em período de crise, à escala nacional, à contenção de quem se encontra em melhores condições para a aplicar? Justamente porque beneficiou da solidariedade forçada de quem manteve o cinto apertado enquanto a partir do palácio rosa da Quinta Vigia se abriam os cordões «à grande e à madeirense». A ser aplicada, a solidariedade não pode ter sentido único, por muito que o senhor que se sabe vocifere e estrebuche ou se faça passar por engraçadinho. Para o bem de todos, incluindo naturalmente os madeirenses.