«A Satanás, atentamente, as suas vítimas»

Bulgakov e Zamiatine

Acaba de sair em Espanha uma colectânea de cartas dirigidas a Estaline pelos escritores Mikhail Bulgakov (1891-1940) e Evgueni Zamiatine (1884-1937). Resultando de investigações feitas nos arquivos da Lubianka, a sede moscovita do KGB, após o fim da URSS, elas trazem de volta o terror puro de quem vivia diariamente entre o silêncio imposto e a possibilidade da prisão ou do fuzilamento, o destino definitivo de tantos outros. Falam pois da morte em vida. As vítimas omitem aqui a pobreza, o frio, as privações que lhe foram destinadas pelo facto de não serem autores alinhados com a política e a estética do regime, e apelam tão-somente a que lhes seja concedida a possibilidade de sobreviverem como autores e como pessoas. Zamiatine conseguiria ir morrer em Paris. O autor de Margarida e o Mestre viveu até ao fim silenciado e na miséria.

Nós, a mais conhecida obra de Zamiatine, precursora do Admirável Mundo Novo (1930) de Huxley e de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1948) de Orwell – concluída em 1921 mas cuja primeira edição em russo só pôde sair perto de sessenta anos mais tarde –, abre assim:

«Limito-me a transcrever textualmente o que hoje mesmo veio publicado na Gazeta do Estado:

Dentro de cento e vinte dias ficará completo o Integral. Aproxima­-se a hora insigne, histórica, em que o primeiro Integral se levantará no espaço cósmico. Há mil anos, os nossos heróicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao domínio do Estado Único. Hoje assistiremos a um feito ainda mais glorioso: a integração, por meio do Integral, feito de vidro, eléctrico, ígneo, da eterna igualização de tu­do o que existe. Ficarão sujeitos ao benéfico jugo da razão todos os seres desconhecidos, os habitantes doutros planetas que porventura vivam ainda no estado selvagem de liberdade. Se acaso não percebem que nós lhes levamos a felicidade matemática e exacta. É nosso dever forçá-los a serem felizes. Mas, antes de puxarmos das armas, tenta­remos recorrer à palavra.

Em nome do Benfeitor, todos os números do Estado Único ficam notificados do seguinte:

Todos os que se sentirem capacitados deverão compor tratados, poemas, odes e outras composições sobre a beleza e a grandeza do Estado Único.

Eles constituirão o primeiro carregamento do Integral.

E viva o Estado Único. Vivam os números. Viva o Benfeitor!

Escrevo estas coisas e sinto o meu rosto a arder. Sim… há que levar a cabo a integração, proceder à grandiosa e infinita igualização de tudo o que existe. Sim, há que distender a curva selvagem, redu­zi-la a uma tangente… a uma assímptota… a uma linha recta! E isso porque a linha do Estado Único é uma linha recta. A grande, a divinal. A exacta, a sábia linha recta – a mais sábia de todas as linhas!»

Trad. a partir do inglês por Manuel João Gomes (Edições Antígona, 1990)

    História, Memória.