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O senhor da previdência

Eric Hobsbawm

Quase a perfazer 92 anos, Eric Hobsbawm mantem-se mais desperto e capaz de pensar de forma crítica e controversa do que muita gente avisada e previsível que circula por aí cheia de vigor e em condições de percorrer três quilómetros matinais em passo de corrida. Só agora li «Socialism has failed. Now capitalism is bankrupt. So what comes next?», o seu artigo publicado há alguns dias no Guardian. Não oferece uma resposta para a pergunta que coloca? Pois não oferece, não senhor. Só que o primeiro passo para escolher um percurso a seguir consiste sempre, antes ainda de se meterem as solas à estrada, em perceber que ela pode existir. E em procurar o seu norte magnético. Chama-se a isso previdência.

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Contem-nos coisas de Cuba

    Cuba Libre

    É bem triste «La Revolución» não aguentar palavras que apenas irradiam uma perspectiva do mundo diferente da arremessada pelos artigos hiper-saudosistas, caluniosos ou ameaçadores do Granma e do Juventud Rebelde. O cerco americano a Cuba, que Obama começa agora gradualmente a levantar, sempre me pareceu uma medida injusta e desnecessária, resultado de uma política externa míope e influenciada pelos «gusanos» um tanto ressabiados de Miami, mas o cerco interno, praticado na ilha, à liberdade de opinião de quem é visivelmente desalinhado do discurso oficial, não é menos injusto e injustificado. Para além de um tanto paranóico. Que a havanesa Yoani Sánchez tenha de publicar o seu primeiro livro de crónicas em Itália é um sinal desse desajustamento.

    Es abril y no hay mucho que hacer, solo mirar desde el balcón y confirmar que todo sigue como en marzo o en febrero. La Plaza de la Revolución -un pirulí truncado que asustaría a cualquier niño- domina los bloques de concreto de mi barrio. Frente a mí, dieciocho pisos de hormigón llevan el cartel de Ministerio de la Agricultura. Su tamaño es inversamente proporcional a la productividad de la tierra, así que me dedico a mirar con mi catalejo las oficinas vacías y sus ventanas rotas. Vivir en esta zona “ministerial” me permite interrogar los altos edificios desde los que salen las directivas y resoluciones para todo el país. Manías de orientar el lente y pensar “ellos me observan, pues yo también los observo a ellos”. De esas inspecciones con mi telescopio azul he sacado bien poco, la verdad, pero una impresión de inercia traspasa el cristal y se cuela a través del hormigón de mi edificio modelo yugoslavo.

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      Um sentido para a esquerda

      Nuages

      Publicado originalmente na revista LER de Março

      Celso Cruzeiro é reconhecido principalmente pela sua actividade como advogado e por ter sido um dos rostos principais da «crise estudantil» coimbrã de 1969. Conhece-se-lhe o activismo constante em alguns dos combates da esquerda geralmente não-alinhada, bem como o interesse por uma leitura interpretativa dos episódios de militância pelos quais passou, mas era-lhe até agora ignorado o gosto persistente e actualizado por uma reflexão teórica aprofundada sobre as circunstâncias, as coisas e as causas da esquerda. Este A Nova Esquerda retoma no título a designação utilizada para definir politicamente alguns dos movimentos radicais das décadas de 1960-1970, mas nem por isso se ocupa em excesso com uma busca retrospectiva das referências que naquele tempo moldaram o percurso do autor. Ao invés, a actualização das leituras e dos debates aos quais este se reporta conferem ao livro uma dimensão exemplar, rara entre nós, de adequação do reconhecimento da mudança do mundo ao pulsar mais contemporâneo do pensamento crítico e da intervenção política.

      Esta é, no entanto, uma daquelas obras das quais é habitual dizer-se que valem pelo todo. Não é possível lê-la de forma fragmentada, pois resultaria quase indecifrável um discurso erudito que não se compraz com sublinhados ocasionais. Trata-se de facto de um texto denso, consistente, resultante de um trabalho aturado de cerca de treze anos, através do qual Celso Cruzeiro conduz o leitor por quatro inquietações com correspondência noutros tantos capítulos. A primeira delas diz respeito à busca de um sentido, no domínio da epistemologia das ciências e da reflexão filosófica, para um mundo que hoje, mais que nunca, se revela instável e desconforme os grandes sistemas explicativos da modernidade colapsados a partir do segundo pós-guerra. A segunda ensaia um trabalho de compreensão da realidade actual do capitalismo, da renovação das suas vias e métodos, das consequências da ordem injusta que materializa para a vida das pessoas comuns. A terceira inquietação prende-se com a busca de indícios que permitam entrever a construção de uma teoria revolucionária capaz de fazer frente às novas realidades, à desesperança e às carências impostas pelo actual processo de mudança histórica. E, por fim, o quarto problema conduz o autor ao vasculhar das consequências mais nefastas da presente ordem económica mundial e do aparecimento de algumas das vozes e das tendências capazes de lhe fazerem frente no terreno.

      Quando, a dado momento, recorre à voz do economista e filósofo neoliberal Friedrich von Hayek onde este declara não existir actualmente «critério algum através do qual nós possamos descobrir o que é socialmente injusto», Cruzeiro aponta justamente para o inverso: para a necessidade de perceber as causas da injustiça de modo a que se torne possível combatê-la e aniquilá-la. Uma obra marcada, por isso, mais pela esperança que pelo desencanto.

      Celso Cruzeiro (2008). A Nova Esquerda. Raízes teóricas e horizonte político. Porto: Campo das Letras – Âncora Editora. 250 págs.

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        Resgate e redenção

        Israel

        Por onde quer que distribuam a sua acção e a sua influência, é própria de todas as religiões – mesmo das seculares – a vontade de determinar um ethos, identificado com o bem comum e a moral individual, capaz de justificar a prescrição de certas atitudes e a proscrição de outras. As religiões do livro em particular, todas elas, têm séculos de experiência neste campo. E é nesta tradição que se pode encaixar a actividade da organização não-governamental israelita JONAH – Jews Offering New Alternatives to Homosexuality – que procura prevenir e actuar sobre pessoas que sintam «atracção por outras do mesmo sexo». Como sempre, a intenção declara-se benévola: aliviar o tormento de quem sofre a sua «anormalidade», bem como o dos entes queridos destas pessoas, que com elas têm de partilhar esse lado «triste» e doloroso da vida. Afinal, declara na página oficial da JONAH o rabi Shmuel Kamenetsky, «nada existe que a Torah proíba e o ser humano não seja capaz de controlar.» Mudando de hábito de acordo com o lado onde nasce o sol, esta gente vive num mundo cerrado que roda a uma velocidade lenta, mas nem por isso deixa de procurar impor onde pode um perigoso higienismo.

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          Whadda mistaka da maka!

          Bertorelli

          Não deixa de ser curiosa a forma como um certo tipo de glosador da realidade circundante – da mesma espécie que correu em passo acelerado a acusar o Bourbon madrileno de sobranceria quando este sugeriu publicamente a Hugo Chávez que simplesmente deixasse os outros falarem -, ignore agora, ou refira só de raspão, a frase pronunciada por Isabel de Inglaterra quando esta se espantou, durante a régia recepção aos políticos do G20, com o tom vagamente tumultuoso, ou no mínimo alterado para o ambiente tranquilo do Palácio de Birmingham, da voz do cavaliere Berlusconi. Como este não é Chávez, agora o escândalo morreu à nascença e os exaltados de serviço deixaram as acusações no saco. O que até é injusto, dado fazer todo o sentido estranhar-se que uma figura como Isabel II ignore os traços dominantes de um dos personagens centrais de Allo, Allo!, uma das melhores séries de comédia para a televisão produzidas no interior dos seus reais domínios. Refiro-me ao sonoro Capitão Bertorelli, obviamente, que o estrepitoso Don Silvio descaradamente plagia.

            Atualidade, Opinião

            Cuba Sí, pero…

            Fidel e Camilo Cienfuegos
            Fidel e Camilo Cienfuegos

            Alguns dos factores que no início da década de 1960 transformaram a revolução cubana e os seus rostos salientes – um Fidel persistente e carismático, o efémero mas decisivo Cienfuegos, um Che em breve tornado imortal – num factor de atracção e de romântico entusiasmo para toda uma geração de europeus ocidentais e de nascidos nas Américas que incluía intelectuais e revolucionários, mas também muitas pessoas pouco politizadas, parecerão hoje algo paradoxais. Sobretudo se observarmos aquilo em que Cuba se transformou e se identificarmos o perfil político daqueles que hoje ainda defendem sem hesitações o regime que governa o país. Essa atracção e esse entusiasmo advieram, justamente na época em que os partidos comunistas começavam a perder o pé junto de alguns dos sectores mais dinâmicos da esquerda ocidental e de uma nova geração de estudantes e de trabalhadores, do facto de os revolucionários da ilha de Martí parecerem evidenciar uma acentuada ruptura em relação à cartilha ideológica proposta a partir de Moscovo e à imagem cinzenta, gerontocrática, fornecida pelos rostos que, da tribuna do Kremlin, zelavam diariamente pela sua preservação.

            À deriva proto-nacionalista de grande número de partidos e organizações comunistas tradicionais, ao esgotamento do padrão de sociedade que estas erguiam como paradigma, ao impacto perturbador da invasão da Hungria pelos soviéticos e das revelações de Kruchtchev no XX Congresso do PCUS, contrapunha-se a emergência de um novo e polissémico universo de expectativas que os agora renovados movimentos sociais reivindicavam, e que os barbudos cubanos, jovens, informais, arrebatados e com os olhos no futuro, com Fidel à cabeça, pareciam materializar. Não por acaso, os insubmissos cubanos, bem como os seus primeiros e incondicionais apoiantes – com Sartre, já então saído do PCF, à cabeça – foram vistos de início com muita desconfiança pelos mesmos partidos comunistas que então, é bom não esquecer, denunciaram o «aventureirismo guevarista». Hoje deparamos com a inversão destas atitudes de afeição e de desconfiança: politicamente insulada, a «revolução cubana» viria a fixar-se nos modelos de autocelebração que originalmente repudiara. Por sua vez, privados das anteriores referências fundacionais, alguns partidos comunistas passaram a erigir como modelo o regime que um dia olharam com desconfiança ou mesmo com animosidade. A História faz-se de factos, por muita reescrita que a possa envolver, mas nela a Revolução Cubana terá sempre um lugar de destaque.

              História, Memória, Opinião

              N’Gola ritmo

              Angolanos

              A propósito da visita a Portugal de José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA e chefe supremo da clique cleptocrática que neste momento dirige um grande país onde a democracia, a transparência e o respeito pelos menos protegidos tardam em chegar, parece-me aceitável a posição do governo recebendo educadamente o chefe de Estado angolano e tratando com ele de uma forma normal. Afinal, com mais de 100.000 portugueses a trabalharem em Angola e muitas centenas de empresas e instituições envolvidas em negócios e projectos, com a grande tradição cultural e (assumidamente) histórica partilhada pelos dois países, seria de uma irresponsabilidade total insistir no carácter não-democrático e corrupto do poder instalado em Luanda voltando as costas aos seus circunstanciais porta-vozes. Mas é também justa a posição do Bloco de Esquerda ao recusar participar na parte teatral da visita: não estando no poder, o Bloco pode assumir uma atitude de princípio que exprime, tenho a certeza, aquilo que a maioria dos portugueses verdadeiramente pensa. Não faz sentido, pois, a rábula de Vital Moreira referindo-se à atitude frontal dos bloquistas como «falta de sentido de Estado». Nem, uma vez mais, o silêncio conivente do PCP, que não precisa de mostrar «sentido de Estado» mas ainda pensa o MPLA como uma espécie de «partido-irmão» subtropical que é necessário proteger.

                Atualidade, Opinião

                Onde fica a revolução?

                Onde fica a revolução?

                De acordo com um artigo publicado há menos de um mês no The Economist, e devido sobretudo ao rápido crescimento dos chamados países emergentes, pela primeira vez na História mais de metade da população mundial é composta por pessoas da classe-média. Mesmo vivendo em numerosos casos com dificuldades, pessoas que dispõem de automóvel, conta bancária, cartão de crédito, telemóvel, muitas vezes casa própria. Os «partidos da classe operária» estarão assim, por imposição da realidade, condenados a tornarem-se partidos de trincheira, exilados na nostalgia de um mundo que se perdeu e na recusa de um presente que lhes foge. Esperando que tudo piore e as chaminés voltem a fumegar, espalhando limalha e extremando atitudes, para poderem retomar o seu caminho redentor. Marx «regressa» na pior altura.

                Créditos: JCN, através do Twitter

                  Atualidade, Opinião

                  O espectro de Lippe

                  Disciplina

                  Numa reportagem da RTP1 pergunta-se a um «pupilo» do Colégio Militar: «Fizeste os exercícios porque te obrigaram ou foi para exceder os teus limites?» A infâmia da pergunta imbecil e a presunção da resposta condicionada não merecem sequer um comentário, mas o caso que motivou a peça deve ser olhado com alguma atenção. Ele veio relatado no Expresso deste sábado e conta-se em poucas palavras. Um aluno de 17 anos foi condenado a quatro meses de prisão por maus-tratos a um colega de nove, mas a pena foi depois anulada pelo Tribunal da Relação que considerou adequado o castigo aplicado ao menor: palmadas no pescoço, flexões, abdominais, saltos de cócoras e posição de Cristo (de pé com os braços abertos). A vítima, um aluno hiperactivo, acabou por sair do Colégio, tendo os pais apresentado a queixa que conduziu a situação a tribunal. A Relação acabou por acolher o argumento de um antigo director da instituição, segundo o qual «apesar de não estar inscrito no regulamento, é habitual as faltas menos graves serem sancionadas pelos graduados com exercícios físicos». «Graduados» podem ser aqui, assinale-se, simplesmente alunos mais velhos, que assim adquirem informalmente o direito de exerceram formas de violência física sobre os novatos. A notícia refere ainda inúmeros casos de agressões, algumas delas, as mais graves, apenas associadas a ligeiras sanções internas.

                  Trocando isto por miúdos: um tribunal português aceitou castigos físicos praticados entre alunos do Colégio Militar como actos lícitos. Numa altura em que, finalmente (e felizmente), nas instituições de ensino superior os abusos das «praxes» começam a ser prevenidos e punidos, é no mínimo espantoso que este tipo de práticas, brutais, arcaicas e perigosas, possa sobreviver numa instituição de ensino. A aprendizagem da disciplina no trabalho e na vida faz parte de um bom processo educativo – obviamente mediada, no meio paisano como entre os militares, por condições de razoabilidade e de protecção dos direitos individuais – mas tal não pode significar a admissão do abuso de poder e da violência como «prática pedagógica» normal. Sob pena de continuarmos a formar – neste caso, de continuar o Colégio Militar a afeiçoar a este mundo – disciplinados monstrozinhos. Diz o actual director que «onde há rapazes, há sempre bulhas». O problema começa quando se considera que a suposta «naturalidade da violência» – temos aqui um director hobbesiano, nitidamente – possa ser enquadrada como instrumento normal de uma boa prática educativa. Foi o prussiano Conde de Schaumburg-Lippe quem entre nós, de 1762 a 1764, procurou associar, codificando nesse sentido os procedimentos disciplinares castrenses, a sageza militar à brutalidade dos castigos físicos e vexatórios. Mas isso aconteceu há perto de 250 anos atrás e entretanto o mundo deu umas voltas.

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                    Foucault e o falso Zola

                    Foucault e a rua

                    No prefácio a uma edição recente de Renaissance Self-Fashioning, o historiador da cultura (e não só) Stephen Greenblatt conta um episódio curioso ocorrido em Berkeley no ano de 1975. Michel Foucault, que acabava então de publicar o seu Surveiller et Punir, encontrava-se naquela universidade para leccionar um seminário semestral organizado pelo Departamento de Francês e divulgado aos potenciais interessados como sendo sobre a obra de Émile Zola. Greenblatt tinha pouco interesse por Zola, mas muita vontade de ouvir Foucault, e por isso inscreveu-se no referido seminário. No entanto, ao longo de todo o semestre, o filósofo não mencionou uma única vez o seu compatriota romancista. As sessões foram todas sobre o conceito de penitência na história da Igreja católica medieval, o que não parece ter caído mal em qualquer um dos inscritos. Na Europa à bolonhesa que nos cabe agora na rifa, com tudo previsto e aprovado para valer «créditos» destinados a oficializar «competências», esta sorte de golpe-de-rins já quase parece impossível.

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                      O da Joana

                      Gli italiani si voltano [Mario di Biasi]

                      Sinceramente, começo a ficar um tanto farto de passar por tanto blogue que refere repetidamente, explícita ou implicitamente, a beleza da Joana Amaral Dias, a difícil relação do Bloco de Esquerda com a beleza da Joana Amaral Dias, a ligação directa entre a beleza da Joana Amaral Dias e a sua maneira de actuar no combate político. Perorando nos intervalos sobre a fealdade ou as rugas de uma ou outra mulher politicamente empenhada. Os jornais e a televisão têm demonstrado, ao menos nestas matérias, e talvez porque por eles circula uma percentagem muito maior de mulheres, um pouco mais de pudor. Porque não discorrer também sobre a forma como a feiura de João Ratão de certos políticos, sindicalistas e outros homens públicos prejudica a empatia com muitos cidadãos, polui o microclima visual maltratando a nossa qualidade de vida, desfeia horrivelmente o outdoor da rotunda ou o recanto da televisão? Será assim tão importante insistir nesse pormenor do requebro e do busto? Para os sexistas, é. E o sexismo é ainda quem mais ordena neste alegado paraíso democrático em linha. Mesmo entre muitos daqueles gauchistes que por aqui declaram a pés juntos combatê-lo. A Joana Amaral Dias é uma mulher muito bonita, é sim senhor(a). Mas isso agora não interessa rigorosamente nada.

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                        O Expresso tresvaria

                        O comissário desaparecido

                        Num acesso de extremo ridículo, o Expresso compara a saída de Joana Amaral Dias da direcção do Bloco de Esquerda a uma purga à maneira de José Estaline. E para ilustrar o absurdo – num apontamento que intitulou de um modo supostamente irónico «Do passeio no Volga à Convenção do Areeiro» – nada melhor que relembrar a recorrente prática estalinista de fazer desaparecer dirigentes dos lugares que ocupavam no Partido, na vida e na história, ilustrando a referência com uma conhecida imagem manipulada na qual ocorreu o apagamento de Nicolai Yezhov, desta maneira apresentado como um mártir da liberdade. Saberá o relator anónimo de tal apontamento quem era o seu momentâneo herói Yezhov, mais conhecido por «o Anão», Comissário do Povo para os Assuntos Internos e responsável entre 1936 e 1938 pela chamada «Yezhovschina», a fase mais aguda do Grande Terror durante a qual centenas de milhares de comunistas e de quadros do Estado soviético foram torturados, executados ou, com um pouco mais de sorte, condenados a um exílio siberiano geralmente sem retorno? Yezhov ousou a dada altura chantagear figuras próximas do «Pai dos Povos» – começara mesmo a reunir material para chantagear o próprio Estaline – acabando por ser substituído pelo nosso bem mais conhecido Lavrentiy Beria. Foi executado em 1940. A analogia estabelecida pelo «semanário de referência» é demasiado absurda para parecer cómica. O Bloco lá terá os seus defeitos, mas não consta que Joana Amaral Dias tenha saído aos empurrões e sido enviada para uma abjecta masmorra. Ou apagada, credo!

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                          Política de medo

                          Abusador

                          A forma como vejo a proibição de entrada no Reino Unido de Geert Wilders, o deputado holandês de extrema-direita que tem difundido, no seu país e fora dele, posições abertamente xenófobas, não entra no coro dos aplausos nem no dos apupos. Também me parece que pessoas que pensam e agem como Wilders devem ser contidas nos seus direitos políticos (que usam contra a democracia que os alimenta) e no uso do espaço público que lhes é concedido (do qual se servem para sustentarem formas de ódio e de violência social). A sua intervenção deve ser criminalizada de forma clara e as autoridades policiais e judiciais dos países democráticos devem depois agir em conformidade com a qualidade do crime. Esse seria o princípio que me levaria a aplaudir a medida de proibição imposta pelo governo britânico.

                          Aceitando-a, não posso, todavia, deixar de ver nela – num registo um pouco diferente, João Tunes fez já a mesma coisa – não a expressão de um meritório princípio democrático, mas o seu contrário. Sendo claro: trata-se de uma cedência cobarde, e não declarada sequer, às práticas intolerantes associadas aos partidários, europeus ou não, de um certo Islão que se crê acima da própria democracia e da cultura laica (e laicista) que a Europa conserva ainda como matriz. As notícias que chegam sobre Fitna, o filme de Wilders que iria ser projectado na Câmara dos Lordes e que o seu autor iria apresentar, coincidem em considerá-lo uma manipulação barata do Corão destinada a criminalizar os muçulmanos apenas pelo facto de o serem, e para isso – o apelo ao ódio religioso – existem, julgo, leis próprias que deveriam ser aplicadas dentro do país no qual o delito fosse cometido. Mas em vez desse gesto arrojado e justo, as autoridades britânicas optaram uma vez mais, como noutras paragens da Europa tem sido feito também, por ceder às pressões dos islamitas e por conservarem o criminoso à distância apenas pelas suas «opiniões radicais contra o Islão», não por ser um potencial e «algemável» criminoso. Outro passo atrás na política de medo e de autodepreciação.

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                            Entretanto no Bloco

                            À esquerda

                            Dez anos após a fundação do Bloco de Esquerda, a VI Convenção que decorreu neste fim-de-semana colocou um ponto final e abriu um parágrafo na sua curta e agitada história de sucesso. Se quisermos, o «velho» Bloco de causas, resultante de uma amálgama complexa de percursos colectivos e individuais que em 1999 procuravam sobretudo a construção de uma plataforma que lhes permitisse entenderem-se, seguiu o seu caminho natural, alijando algumas vozes discordantes que se foram afastando (quase sempre pacificamente, sem dramas, o que foi só por si uma novidade para quem vinha de um universo dogmático e habituado a purgas), mas conquistando ao mesmo tempo uma base social alargada e uma visibilidade pública que, nos seus tempos de prática política isolada, militante algum das organizações que lhe deram corpo vislumbrara nos seus melhores sonhos. Quando as sondagens são unânimes a considerarem a grande possibilidade de o Bloco ultrapassar o Partido Comunista, é agora todo um outro horizonte que se abre e que passa, previsivelmente, por uma intervenção cada vez mais apostada em apresentar alternativas de poder, ou com capacidade de intervenção num plano legislativo e de gestão política, no interior do sistema democrático que habitamos. A «esquerda grande» da qual falou ontem Francisco Louçã – expressão que traduz um daqueles tiques popularuchos que de vez em quando ainda escapam –, supõe também uma suposta maioridade que se traduz na superação de uma auto-representação do Bloco e dos seus presumíveis aliados como meras forças protestativas e de contrapoder.

                            O futuro dirá para onde nos leva o caminho agora aberto. Ficam, no entanto, dois problemas urgentes por resolver e não sei como irá o Bloco lidar com eles, uma vez que, enquanto partido adulto e «de confiança», não pode continuar a manter a seu respeito uma posição de público alheamento. O primeiro deles tem a ver com a posição face ao PCP, que continua assumir-se como um partido anti-sistema e que já declarou publicamente ver no Bloco um dos adversários a abater. A aproximação com os comunistas, como quase toda a gente sabe, apenas será possível numa situação crítica e de confronto com um inimigo maior – que felizmente não se vislumbra -, uma vez que lhes está nos genes identitários a vontade de se assumirem como força dirigente, arrastando atrás de si os sectores que considera «menos consequentes» e que apenas respeitarão enquanto os puderem instrumentalizar. O segundo problema tem a ver com o apagamento quase completo de uma esquerda radical, de protesto e de denúncia, não comprometida com as máquinas do poder, que o Bloco praticamente «secou». Este campo é necessário porque é ele quem pode dizer «inconveniências», apontando em quaisquer circunstâncias para a nudez do rei, e em breve os dirigentes bloquistas pensarão duas vezes, se é que o não fazem já, no preço político e eleitoral que pagam pelo empenho dado a combates demasiado delicados e a causas minoritárias.

                            Em todo o caso, e independentemente da forma como estes dois problemas poderão ser resolvidos, digo sempre a mesma coisa a quem me pergunta, perante as posições independentes e muito críticas que vou tomando aqui e ali – quase sempre distanciadas da minha frágil e efémera antiga militância bloquista -, se afinal irei votar nas próximas eleições. Digo que sim, que irei votar. No Bloco de Esquerda, claro.

                              Atualidade, Opinião

                              Corporativismo

                              Operários

                              São inquietantes, e muito, as manifestações de milhares de pessoas, junto às refinarias de Lindsey e de Grangemouth, à siderurgia de Teesside e à central eléctrica de Aberthaw, no Reino Unido, contra a presença de operários estrangeiros, sobretudo de portugueses e italianos. O apoio de alguns sindicatos britânicos a medidas xenófobas destinadas a protegerem o emprego dos trabalhadores locais – que em regra até há pouco rejeitavam as tarefas mais difíceis cumpridas pelos imigrantes – vem reforçar pesadamente a dimensão sinistra do episódio, mas indiciam também uma tendência que vem cruzando fronteiras.

                              Os nossos sindicatos, demasiadas vezes envelhecidos nos métodos, nas estratégias e até nos rostos, ainda não chegaram tão longe, mas mostram muitas vezes sintomas umbiguistas e corporativistas igualmente inquietantes. Refugiados numa dimensão ultrapassada e muitas vezes partidarizada da luta sindical, esquecem quase sempre os imigrantes (legais e ilegais, que raramente votam ou se sindicalizam), os jovens (que não constam dos seus planos e lhes pagam na mesma moeda), os desempregados e os reformados (que não são trabalhadores, não tendo por isso peso nos conflitos laborais), as mulheres (cujas especificidades reduzem quase sempre à condição supostamente paritária de trabalhadoras), acantonando-se também na defesa de algumas formas de proteccionismo que são, no mínimo, socialmente perigosas. Ainda não chegámos a Inglaterra, mas indícios de que nos podemos aproximar rapidamente do mau exemplo começam a surgir. E não só no horizonte.

                              PS – Houve entretanto quem «enfiasse a carapuça» a propósito deste brevíssimo comentário (que, obviamente, não é «análise» alguma). Nele não se atacam «os sindicatos», como qualquer leitor que não leia isto no «registo do acossado» facilmente percebe. Referem-se apenas algumas características presentes na prática de um certo modelo de sindicalismo. Velho, dependente, autofágico, e, é esse o problema aflorado, tendencialmente corporativista.

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                                Sublinhar o irrelevante

                                Parece-me inapropriado que em 2009, num país europeu, um jornal de referência destaque numa notícia sobre a viragem em curso na Islândia, a quatro colunas e com chamada na contracapa, que «uma lésbica assumida vai governar o país».  A concessão ao fácil não deve colher no leitor-comum do Público, que gosta de ver este tipo de informação, se ela for relevante, integrada na notícia, sem dúvida, mas sem destaque maior que aquele atribuído à idade, à profissão, à actividade política e, eventualmente, aos passatempos da pessoa em causa. Falo por mim, mas julgo não estar sozinho.

                                P.S. Muitas horas depois de, bem pela manhã, ter redigido o anterior parágrafo, revisito a notícia no Público online. Pelo estendal de comentários sórdidos que se lhe seguiu, percebo como o título utilizado pelo jornal ainda é mais perigoso e lamentável do que inicialmente parecia.

                                  Atualidade, Opinião

                                  «Estas coisas são antigas»

                                  Tempo

                                  Eu sei que mais tarde ou mais cedo se quebrará o feitiço. E que sempre que falamos de patriotismo remexemos na caixa maldita que a filha primogénita de Zeus enviou a Epimeteu e este abriu libertando os males do mundo. Mas foram de facto raras, «antigas», inscritas numa dimensão ética quase fora deste tempo, algumas das frases do primeiro discurso oficial de Barack Obama. São trechos nucleares sobre os grandes princípios da convivência política e social, palavras que já não se costumam ouvir no refrão ajustado para os momentos de campanha, e que por isso mesmo a maioria dos comentadores ignorou ou achou desinteressantes. Esquecidas também porque centradas em desígnios, em princípios de vida, traduzidos em palavras que já não inteiram o ar do tempo. Mas é mesmo por isso que sabe bem ouvi-las sem ligarmos  à grande ilusão que sabemos conterem e tudo aquilo que o futuro nos reserva. Ler mais aqui.

                                    Atualidade, Opinião