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Requiem marítimo

Sagres

Como a larga maioria dos portugueses, pouco andei de barco ou em meios de locomoção afins. Mesmo os trajectos africanos foram percorridos de avião. Recordo-me de umas quantas remadelas em lagos artificiais ou modestos riachos, de duas viagens de cacilheiro e de uma travessia do estreito de Gibraltar. Também andei algumas vezes de «gaivota». Ou melhor, pedalei com força para deslocar o veículo. Muito mais do que isso só a bordo do Kon-Tiki de Thor Heyerdahl, do Calypso de Jacques Cousteau, do Relâmpago do Corsário Negro e no paquete onde se desenrolou aquele enredo «anarquista» – que valeu uma proibição em diversos países – de Monkey Business, o filme dos Irmãos Marx. Para além, claro, de ter ido por diversas vezes ao fundo com o Titanic. Isto é, apenas andei embarcado em imaginação. Mas sei o suficiente de História e de caminhos marítimos para perceber que o navio-escola Sagres tem funcionado como definitivo avatar da nossa autorepresentação enquanto «navegantes». Por isso a proibição de atracar em Macau dada ao veleiro pelo governo chinês é particularmente humilhante. E por isso não é aceitável que as autoridades portuguesas se limitem a achar o facto mais ou menos normal. Sem um lamento, um protesto, um epitáfio. Restam-nos assim os ferry-boats fretados. E, a mim, realizar a adiada travessia do Atlântico entre Portimão e o Funchal. A bordo do indomável Volcán de Tijarafe.

    Atualidade, Devaneios, Olhares

    «Intelectuais moderados» e almofadas coloridas

    almofadas

    Islão. Passado, presente e futuro, de Hans Küng, é um livro magnífico. Mas deixa no leitor uma certa sensação de ambivalência. O teólogo mal querido da Cúria Romana fala da forma como, no mundo ocidental, após o fim da Guerra Fria se procurou por vezes trocar o comunismo pelo islamismo como representação do mal. Neste âmbito, o desenvolvimento de processos de compreensão do Islão e de laços de entendimento deste com o cristianismo e com o judaísmo parece-lhe imprescindível para evitar um anunciado «choque de civilizações». Produz por isso uma síntese de dimensões históricas e sistemáticas que oferece uma perspectiva ampla e multidimensional do Islão, estimulando uma resposta perante o rastilho de incompreensão e violência que tem vindo a ser ateado. Fá-lo com sabedoria, em nome de um efectivo diálogo inter-religioso que defende desde há meio século. O seu esforço de aproximação acaba, no entanto, por cair numa armadilha, ao alimentar a quimera, comum entre muitos ocidentais, que se traduz em ver nos «intelectuais moderados» do Islão a chave para um compromisso. Na realidade, testemunhos constantes têm revelado a enorme debilidade do lugar desse tipo de pessoas no interior do universo islâmico.

    Um excelente contributo para o esclarecimento deste enredo é-nos oferecido no número de Agosto da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. O artigo «Os intelectuais árabes, entre Estados e fundamentalismo», da autoria de Hicham Ben Abdallah El Alaoui, incorpora um notável rastreio da situação e das expectativas de muitos dos intelectuais árabes na sua relação com o mundo actual e com a procura de um futuro mais justo e mais democrático para os Estados autoritários que têm o Islão como religião oficial. Ben Abdallah anota um conjunto de circunstâncias e de perspectivas para as quais vale a pena olhar.

    (mais…)

      Atualidade, Olhares, Opinião

      Quixotes

      Quixote, Welles

      Para Saul Bellow existiam dois tipos de pessoas: os beers e os becomers. Numa tradução razoavelmente livre, «os que são» e «os que hão-de ser». Os primeiros esforçam-se por não mudar, chega-lhes a vida que têm, confiam num destino previsível, num lugar certo e seguro para viver de forma habitual. Os outros não se conformam com o mundo tal qual ele é, preferindo a incerteza, o nomadismo – vivencial, não necessariamente geográfico – e, de vez em quando, uma certa dose de aventura. O nosso tempo é francamente dominado pelos cautelosos beers, enquanto os inconstantes becomers são empurrados para as margens, confinados a um trajecto que passa ao lado de um padrão de prestígio que deliberadamente ignoram. Claro que estes jamais compuseram maiorias, pois um mundo dirigido por becomers seria, na realidade, um mundo alucinante.

      Em certas épocas, em algumas circunstâncias, em momentos precisos, o seu papel foi no entanto apreciado e até citado como exemplo. Sem a intervenção que protagonizaram, «os que são» ter-se-iam encarregado de coactar a criação e a iniciativa, padronizando o código genético de gerações de autómatos. Os iluministas, os românticos, os modernistas e os indisciplinados dos anos cinquenta e sessenta do século vinte procuraram contrariá-los. Durante algum tempo ergueram como dominante o modelo dos que perseguem uma vida feita de demandas, de equívocos e de interrogações. Uma vida de Quixotes, como a do herói anti-heróico para quem a presença no mundo se fundava na busca desse outro, viageiro e inconstante, que muitos de nós queremos ser. Na ignorância desses beers que, não por acaso, fazem do quixotismo uma opção depreciada, uma experiência na fronteira do inútil e do patético. Preferem o sabor do realismo e um tempo regulado, sem audácias ou perigos.

        Atualidade, Olhares

        As mãos da opressão

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        Sabemos alguma coisa sobre como podem as vítimas de um dia converter-se nos algozes do dia seguinte. Mas sabemos pouco, muito pouco, sobre como as mãos da opressão se podem transformar, num instante, ou em menos de um instante, nas das vítimas de uma outra opressão. Nada é fácil e tudo é complexo, como toda a gente sabe. Bem, quase toda.

        Um obrigado à IC pela partilha. O título do post cita uma velha canção de LF.

          Fotografia, História, Olhares

          Pãozinho sem sal

          pão

          Procurando uma vez mais diferençar-se de Marrocos – desde a pré-época das «matrículas europeias» dos automóveis que nos deu para isto –, Portugal é a partir de hoje «o primeiro país do mundo ocidental a ter uma lei que impõe limites ao teor de sal no pão». De acordo com um diploma aprovado na Assembleia da República com os votos favoráveis de todas as bancadas (à excepção de votos contra do CDS-PP, um do PSD e uma abstenção), produzir e vender pão com mais de 14 gramas de sal por quilo passa a ser punido com coimas até cinco mil euros, se o prevaricador for uma empresa, ou 3.500, se for «pessoa singular». De fora ficam apenas os pães com «nomes protegidos», como a broa de Avintes ou o pão de Favaios. A lei é de tal forma precursora que, como disse ao Público o Prof. Jorge Polónia, da Faculdade de Medicina do Porto, só agora «os norte-americanos estão a debater a possibilidade de introduzir limites do teor de sal por via legislativa». «Estamos a servir de exemplo», orgulha-se também Luís Martins, cardiologista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão.

          Nada tenho contra o trabalho mais do que louvável que trata de prevenir as doenças cardiovasculares e o cancro do estômago num país onde se abusa tantas vezes do sal. Mas um país com uma identidade gastronómica, perdoe-se o jargão, que passa justamente pelo uso de um certo tipo de temperos em quantidades bem medidas. Pão com sal não é o mesmo que pãozinho sem sal, como lembra a cultura popular. Tal como o pão da nossa infância não é já esse produto insosso e plástico, moldado na espessura e contido nos sais, que se vende por aí. Como muamba de galinha não é muamba de galinha sem uma boa dose de jindungo, abóbora, cebola e alho. Se, no estado indiano do Rajastão, fosse proibido o abuso culinário da noz-moscada e do açafrão, substituídos por um qualquer «aroma», o crime social não seria maior.

          Uma vez mais, os fundamentalistas dos corpos normalizados, da saúde a todo o custo, atacam com a proibição, um expediente fácil para substituir as campanhas sistemáticas e imaginativas de prevenção. Uma medida antidemocrática que impede o cidadão de optar, de livre vontade, entre o tipo de alimentação e de condimento que quer ou não comer (ingerir, dirão «eles»), que deve ou não meter da mão para a boca. Assumindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade da escolha. Eu, por exemplo, convivo hoje com um problema gástrico derivado da leitura compulsiva, associada a um uso incontido, dessa obra-prima da nossa literatura que é a Cozinha Tradicional Portuguesa. E não é por isso que deixo de assumir as minhas responsabilidades nos excessos, ilibando de qualquer culpa a Dona Maria de Lurdes Modesto. De livre vontade gozei o que gozei, para o mal e para o bem, com o grande «prazer da mesa» lusitana que esta gente moralista, reguladora e intrusa pretende que esqueçamos.

            Atualidade, Olhares, Opinião

            Recordando Tony Judt

            Tony Judt

            Afectado desde 2008 pelo mal de Gehrig, uma doença neurodegenerativa incurável que enfrentou com a maior coragem, Tony Judt morreu hoje aos 62 anos. Foi um dos grandes historiadores da contemporaneidade. É, e permanecerá, um dos meus favoritos, cuja leitura tenho recomendado repetidamente em aulas e intervenções como ferramenta de conhecimento e exemplo do modo como a interpretação do passado nos pode ajudar a armar a cidadania. Se tivesse de o associar forçosamente a um campo do saber, classificá-lo-ia como historiador das ideias e dos intelectuais, habitante desse território da História, hoje relativamente pouco povoado mas essencial, que estuda de forma sistemática a expressão, a preservação e a mudança dos modos de representar o mundo no domínio do pensamento individual e das convicções partilhadas.

            Em Portugal foram traduzidos dois livros de Judt, ambos por iniciativa das Edições 70: Pós-Guerra. História da Europa desde 1945 (Postwar. A History of Europe Since 1945, de 2005) e O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias (Reappraisals. Reflections on the Forgotten Twentieth Century, de 2008). Se o primeiro é um relato exaustivo e monumental das transformações operadas no Velho Continente, e na sua relação com o resto do mundo, desde o final da Segunda Guerra Mundial até à actualidade, o segundo integra uma colectânea de escritos – inicialmente editados em publicações como a New York Review of Books – que projecta um esforço pessoal de regresso a formas de pensamento e de activismo social que têm sido esquecidas, desarmando o presente para um debate público substantivo e empurrando para o esquecimento temas tão centrais no trajecto humano como os desafios do mal, as sequelas da Guerra Fria ou a memória do marxismo. Estão por traduzir – e aqui fica a sugestão – outros três livros essenciais para compreender a intervenção do historiador inglês: Past Imperfect: French Intellectuals, 1944-1956 (1992), The Burden of Responsability. Blum, Camus, Aron and the French Twentieth Century (1998), e Ill Fares the Land, de 2010, este, já na impossibilidade de escrever, ditado por Judt, e que funciona como uma espécie de testamento político. Construído, como sempre, sob a perspectiva de quem observa o mundo como um continuum em perpétuo movimento, no qual passado, presente e futuro participam de um mesmo corpo.

            Em O Século XX Esquecido, Judt escreveu: «o que o passado pode realmente ajudar-nos a compreender é a complexidade das perguntas». Uma sugestão que nos ajudará a retirar a História dessa teia de pseudo-certezas que apenas tem contribuído para lhe diminuir o interesse público, transformando-a tantas vezes nesse território rançoso no qual repousa um passado que serve apenas para contemplar ou para comemorar. História viva, como Judt nos ajudou a perceber, é obrigatoriamente, e sempre, questionamento a partir do presente. Num movimento de vaivém que é, justamente, aquele que a devolve à vida.

            Ler aqui o obituário do New York Times

              História, Memória, Olhares

              Indiferença

              mãos cubanas

              Há três dias parei para beber um café e desentorpecer as pernas numa estação de serviço da A2. No restaurante, um pouco acima de um cartaz que anunciava ao preço de 9,55 Euros um prato de macarrão com pedaços de bacon provavelmente atingidos por uma granada de fragmentação, um enorme monitor de LCD espalhava a imagem e a voz de Raul Castro. De farda completa e boné militar, dirigia-se ao cordato parlamento instalado em Havana para anunciar que o seu governo jamais perdoará aos «inimigos da pátria». Assim designa o regime cubano todos aqueles que perturbem a «ordem revolucionária», sejam eles carteiristas reincidentes ou vendedores ocasionais de doces caseiros, blogueiros autónomos ou gays que digam que o são, intelectuais que defendam a liberdade de expressão ou gusanos com dentes de ouro e simpatizantes dos republicanos. Todos iguais, todos «bandidos» que instigam à desordem. Com a voz mais ameaçadora que consegue emitir, o Castro mais novo mostra como se governa em regimes de partido único: ameaçando as pessoas comuns com a voz mais ameaçadora que se consegue emitir, usando os mecanismos da propaganda sem concorrência, mostrando que não pode haver lugar para as razões de quem pensa de forma diferente da única «justa». Mas ninguém levantou os olhos para o ouvir Castro, ali na estação de serviço. Um grupo de turistas chineses ria de alguma coisa. Uma família portuguesa engolia sandes de mortadela enquanto conversava aos gritos. Duas raparigas passavam de mão dada e com headphones nos ouvidos. No aquário, os peixes continuaram em silêncio. Eu bebi o meu café e segui viagem, a pensar em como em Cuba até a indiferença deve doer.

                Apontamentos, Olhares, Opinião

                Sublinhado

                jornal

                «Dêem-me um jornal onde se use hoje uma voz perifrástica ou tão só um tempo composto e onde o mais-que-perfeito não tenha sido soterrado sob o pau para toda a obra do perfeito simples.» A constatação foi feita por Manuel António Pina num JN dos idos de Maio de 2006. Entretanto estes quatros anos e picos de vida colectiva doideca e intensa trouxeram consigo a vitória de um outro contributo estilístico: a presentificação do condicional. Diria mesmo que me parece.

                  Etc., Olhares

                  Nós em números

                  ai portugal portugal

                  Quem pretenda reduzir em menos de cinco minutos à completa insignificância os comentários dos sobreviventes do antigamente, ou das criaturas dos pós-Abril que não sabem do que falam, sobre como era digna e «melhor» a vida no Portugal de Salazar e Caetano, deve ter por perto um pequeno livro que chegou há pouco às livrarias. Refiro-me a Portugal: os Números, de Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, uma edição de capa dura da Fundação Francisco Manuel dos Santos à venda por apenas 5 euros. Começa assim:

                  «Se por algum exercício de ficção os portugueses de hoje acordassem no ambiente do início dos anos 60, sobretudo junto ao litoral e nas grandes zonas urbanas, sentir-se-iam bastante desconfortáveis e, por certo, com uma enorme estranheza em relação a tudo o que acontecia em seu redor. Era o seu País – mas irreconhecível.»

                  O livro fornece números, mas apenas os essenciais. Existem dados mais completos disponíveis noutros locais e o objectivo dos autores não é repeti-los, mas sim «descortinar tendências globais da sociedade portuguesa». Aquilo que deixam à vista em pouco mais de 100 páginas é, de facto, um país radicalmente outro, incomparavelmente melhor e mais feliz. E um movimento de mudança que em menos de cinquenta anos – ou de quarenta dado o facto da maioria das transformações ter ocorrido já após o 25 de Abril – o transfigurou. Os dados reportam-se à evolução demográfica (incluindo a emigração e a imigração), ao crescimento do Estado social (com destaque para as alterações no campo da educação, do conhecimento, da cultura, da saúde e de protecção social), à evolução do trabalho e dos rendimentos, às alterações no campo da justiça, às novas tendências no domínio da família e dos modos de vida.

                  Alguns dados são particularmente esmagadores: entre 1960 e 2008 a permilagem da taxa de mortalidade infantil desceu de 77,5 (a pior entre os 27 países da actual União Europeia) para 3,3 (a sexta mais baixa); a esperança de vida subiu dos 60,7 e 66,4 (homens e mulheres) para 75,5 e 81,7; entre 1972 e 2008 o orçamento do Estado para as funções sociais passou de 1,9% do PIB para 16,4%; a população com 15 ou mais anos sem escolaridade passou de 65,6% em 1960 para 9,2% em 2001; o ensino médio e superior subiu em flecha; entre 1960 e 2003 o número de livros nas bibliotecas públicas passou de 5,4 milhões para 32,2 milhões, tendo estas passado de 89 para 1.018; sensivelmente pelos mesmos anos o número de museus subiu de 96 para 300; os médicos e enfermeiros de 188 para cerca de 900 por cada 100.000 habitantes; os pensionistas da segurança social passaram de 120 mil para quase 3 milhões; o público de espectáculos ao vivo subiu de 161 mil em 1960 para mais de 6 milhões em 2008.

                  Claro que muitas assimetrias e problemas se mantêm, sobretudo no plano dos rendimentos e da igualdade entre homens e mulheres, e nem todos os factores apresentados podem ser considerados necessariamente positivos – por curiosidade e sem qualquer juízo de valor, a percentagem de divórcios aumentou de 1,1 por cada 100 casamentos, em 1960, para os actuais 61%, enquanto os casamentos foram reduzidos a metade –, mas não existe comparação possível e, por isso, possibilidade alguma de pactuar com a mistificação lançada pelos vultos que habitam as sombras ou pelos seus ignaros herdeiros.

                    Atualidade, História, Memória, Olhares

                    Fiel ao touro

                    tourada

                    Das touradas consigo entender a embriaguez do sol a pique e da poeira à solta, dos cheiros acres e bestiais, dos trajes de luces, das mantilhas negras, amarelas, em tons de rojo. E o fulgor das verónicas, das compridas chiquelinas, dos olés, dos é-lás, da música vibrante do passo doble às ordens do inteligente. Creio que também consigo alcançar – sem com ela simpatizar – um pouco da afición que experimentou Hemingway, apenas sensível ao «ventre rasgado dos cavalos» e às solidariedades masculinas tecidas em redor da corrida. Mas mantenho-me fiel ao touro. Na expectativa da volúpia suprema da cornada com justa causa. E da vingança do oprimido.

                    Nota – O Parlamento da Catalunha aprovou hoje, por maioria, uma lei que proíbe as corridas de touros a partir de Janeiro de 2012. Desde 1991 que uma lei análoga está em vigor nas Canárias.

                    Quase 24 horas depois, três apêndices suscitados por algumas interpelações.

                    # Claro que não sou indiferente ao facto dos militantes e simpatizantes independentistas apoiarem entusiasticamente a nova lei catalã. Só se fossem tolos é que o não fariam, uma vez que o documento aprovado contraria a centripetia cultural castelhana e constitui um gesto de afirmação autonómica. Discutir sobre se isto é bom, mau ou assim-assim leva-nos a um tema diferente.

                    # A minha referência à solidariedade com o touro foi, evidentemente, irónica. Mas apesar de continuar a gostar de mastigar um bom pedaço de lombo e de não simpatizar com o fundamentalismo animal, mais preocupado com os bichos do que com as pessoas, não suporto o sofrimento desnecessariamente infligido a um ser vivo. Seja ele um touro ou uma truta. E defendo uma ética da anti-violência como factor de um avanço civilizacional construído também pelo exemplo.

                    # Sei muito bem que os apaixonados da tourada como «festa», «desporto» ou «arte» jamais aceitarão esta presunção. Por isso a resolução do problema nunca poderá resultar de um consenso. Passa pelo combate político. «Transversal», provavelmente.

                      Atualidade, Etc., Olhares

                      Ici se habla português

                      travessia

                      Uns dias longe dos blogues foram suficientes para chegar tarde ao debate sobre a inclusão da Guiné Equatorial nesse quase inútil organismo que responde pelo acrónimo CPLP. Para quem se recuse a ver neste uma simples agremiação de interesses, a proposta – para já adiada, devido a algum mal-estar que levantou em circuitos menos venais, mas que fica em aberto para uma oportunidade que se prevê próxima – é um perfeito absurdo. Não se trata apenas de dar cobertura política a um regime ditatorial que dessa forma compraria alguma credibilidade internacional – mesmo sabendo-se que Angola, um dos seus anfitriões, não constitui propriamente um exemplo de vigor democrático –, mas principalmente de assegurar a entrada de um país sem fundamentos históricos, culturais ou linguísticos que o aproximem minimamente daquilo que os países de língua portuguesa podem partilhar. Tal como acontecerá com outros que pretendem entrar no mesmo processo integrador: a Austrália, a Indonésia, o Luxemburgo, a Suazilândia ou a Ucrânia. Quiçá a Gronelândia (aportada em 1500-1501 pelos manos Corte-Real) ou as ilhas Vanuatu (visitadas pelo explorador Pedro Fernandes de Queirós em 1606), pois dentro de tais parâmetros porque não deixar correr a vertigem e conquistar meio mundo para uma CPLP planetária? Além disso, no caso da Guiné Equatorial, tal entrada consagraria um gesto típico de ditador: a decisão de impor a um povo, por decreto, que uma língua importada se torne «oficial». Absurdo, repito, e inaceitável. Como o é o silêncio de algumas forças políticas portuguesas perante as propostas de Teodoro Nguema Mbasogo, para a revista Forbes o oitavo governante mais rico do mundo. Cegas pelo borbulhar viscoso do petróleo ou comprometidas com propostas vindas de países lusófonos cujos responsáveis não pestanejam quando se trata de trocar os princípios «progressistas», que outrora arvoraram nas suas bandeiras, por dólares ou euros. Muitos milhões de dólares ou de euros.

                        Atualidade, Olhares, Opinião

                        Mrs. Peel

                        Mrs. Peel

                        Diana Rigg faz hoje 72 anos. Nunca foi uma star, nove em cada dez, das que entravam em banheiras cheias de espuma para anunciarem o sabonete Lux, mas a partir de certa altura foi Emma Peel, a companheira pró-activa e multitarefas do agente John Steed na série de televisão The Avengers, Os Vingadores, rodada entre 1961 e 1969. Steed era um agente do MI6 com aspecto de inglês «típico»: chapéu de coco, fraque sem ruga, um inseparável guarda-chuva muito bem enrolado e a omnipresente dose de fleuma. Já Mrs. Peel destoava da tradicional ajudante, sedutora, um tanto tola e absolutamente secundária na trama das outras séries. Pelo contrário, o trabalho pesado – socos, cabeçadas, fugas impossíveis, activação de engenhos explosivos e uns quantos tiros bem aplicados – ficava sempre por conta da agente em roupa futurista de cabedal negro, dotada de vastos conhecimentos de karaté e praticante de elevado nível de boxe tailandês. Aqui residia, aliás, o ineditismo da série, a sua marca caracteristicamente sixtie e vagamente feminista (Barbarella, a série de BD e o filme de culto, foram contemporâneos dos Vingadores). Talvez por isto a série de televisão se tenha tornado rapidamente popular. Diana Rigg foi também uma fugaz «Bond girl» e a madrasta má numa versão da Branca de Neve, mas será para sempre a intrépida – e  por isso singularmente sexy – Mrs. Peel.

                        Duas adendas em vídeo: Mrs. Emma Peel + Emma Peel in tight leather catsuit…

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                          Elementar, meu caro Hugo

                          Hugo Chávez suspeita que Simon Bolívar (nascido em Caracas, Venezuela) não morreu há 180 anos pela influência danosa do bacilo de Koch, tal como ardilosamente contam os livros de história, mas sim envenenado com arsénico, ou então baleado. Para confirmar a tese, mandou exumar «o esqueleto glorioso», como lhe chamou, e reuniu 50 especialistas da Fiscalía General e do Cuerpo Técnico de Policía Judicial. A televisão venezuelana filmou o solene momento e, célere como é seu dever, divulgou-o à escala do planeta. Mas claro que não existe suspeita de crime – elementar, meu caro Hugo – sem que se não pense logo no suspeito. E a primeira pergunta, a eternamente clássica, é… quem lucrou de forma mais óbvia com a morte do «Libertador»? A pessoa está já identificada e desta vez não foi o mordomo: trata-se do general Francisco de Paula Santander, que viu a luz do dia em Villa del Rosario, Colômbia, e enfrentou por diversas vezes os ímpetos belicistas de Bolívar, sucedendo-lhe em nome do sector civilista ao qual este se opusera. Não sei se estão a ver: pegamos na naturalidade dos dois generais, no seu trajecto secante, na crise política actualmente vivida na região, e depois… é só fazer as contas. O historiador venezuelano Elías Pino Iturrieta afirmou a propósito, ao El País, que «não existe o mínimo fundamento científico que justifique este espectáculo nocturno», mas que importa tal princípio face à suspeita e às necessidades do omnisciente coronel? Aguardam-se «conclusões» a condizer.

                          Duas adendas:
                          – Tudo isto se passou no dia 16 de Julho. Ontem mesmo na Wikipédia em português era já possível ler: «Pelo que se descobriu após uma autópsia de Simon Bolívar, sua verdadeira morte foi causada por um envenenamento na digestão da água, que possuíam altas doses de arsénio.» O artigo da versão em inglês não fala disto.
                          – Para quem se interesse por estes pormenores: Santander caiu gravemente doente e morreu de causa não esclarecida em 6 de Maio de 1840, no próprio dia em que fez o discurso de aceitação da sua recandidatura à presidência de Nova-Granada (futura Colômbia). Durante a autópsia encontraram-lhe ainda duas marcas de bala e uma de lança.

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                            Aqui há fantasmas

                            Fantasma

                            Não diria que a profissão de ghost-writer é a mais velha do mundo. Parece que essa é outra. Mas será, com toda a certeza, uma das mais antigas: sabemos muitas vezes quem mandou gravar as tabuinhas sumérias, mas jamais conheceremos o nome dos pobres escribas que as produziram. Posso estar enganado, mas por muito ligada a uma genealogia longeva que esta actividade se encontre, ela parece-me particularmente deprimente. Dar forma, ainda que por uma soma razoável, a textos dos quais outros passam por autores, não será com toda a certeza uma experiência apaixonante e boa para a auto-estima. Sabendo, para mais, que muitas das pessoas a quem esse trabalho serve – futebolistas e actores famosos, treinadores da moda, políticos ou jornalistas de renome, cozinheiros consagrados, antigos espiões, gigolôs e socialites com muita lábia, esposas traídas ou ex-amantes com sentido de oportunidade – jamais teriam o engenho e a arte suficientes para assinarem um volume legível com mais de cinquenta páginas de memórias ou revelações ruidosas.

                            Trata-se, no entanto, de uma actividade legítima, e é a ela que, a propósito do novo filme de Roman Polanski, o quinzenário JL dedica o pequeno dossiê que vem com o número chegado hoje às bancas. Por momentos animei-me e comprei um exemplar, julgando que ali pudesse ser abordado também – penso que tal seria uma obrigação de um jornal «de Letras, Artes e Ideias» com responsabilidade cívica e cultural um lado bem menos lícito, e claramente imoral, dessa actividade que tem vindo visivelmente a crescer. Refiro-me àquele protagonizado pelos escritores-fantasma que compõem romances inteiros ao mesmo tempo que vendem a alma a supostos fazedores de «best-sellers», figuras ufanas na sua condição de «escritores» que nunca o foram. Ou, pelo menos, nunca o foram «daquela» maneira exibida e laureada. Não pedia rostos, não esperava por nomes, não queria que mencionassem casos – sei que, quando há muito dinheiro envolvido, a lei, não necessariamente justa, é sempre mais célere, e além disso não será fácil nestes casos obter provas – mas parecia-me devida a mera menção, num tema como este e que ali se pretendia inventariar, deste triste prodígio contemporâneo. Fui ingénuo: o assunto permanece tabu e o JL não gosta, como nunca gostou, de parecer inconveniente.

                              Olhares, Opinião

                              A maior infelicidade

                              vazio

                              O autor de La Chute escreveu certa vez, em carta ao amigo Guy Dumur, que a suprema infelicidade não está em não sermos amados, mas sim em não amar. Em francês talvez soe melhor, se bem que de forma não menos dramática: «le plus grand malheur n’est pas de ne pas être aimé, mais de ne pas aimer.» Parece um paradoxo, mas percebemos que o não é quando admitimos que só quem construa expectativas pode também esperar. Ninguém incapaz de dar, de procurar, de crer mesmo sem ver, pode acolher o amor dos outros. E todos os dias conhecerá a infelicidade.

                                Apontamentos, Olhares

                                Arte e espionagem

                                Olga com Albrecht Schoenhals

                                Antony Beevor tem articulado sempre a solidez de investigação histórica com uma capacidade narrativa fluida e atraente. É este, aliás, um dos motivos do êxito de obras tão merecidamente reconhecidas como Paris Após a Libertação (escrito a meias com a mulher, Artemis Cooper), Estalinegrado, A Queda de Berlim, A Guerra Civil de Espanha e o mais recente Dia D. Saído em 2004, este O Mistério de Olga Tchekova não foge à regra, embora possa, graças em parte ao título escolhido, ser tomado pelo leitor mais distraído como obra de ficção. Na verdade, o escritor e historiador britânico oferece-nos aqui um magnífico fresco, sedutor mas sempre bem documentado, no qual se entrelaçam a história da União Soviética e a da Alemanha durante as décadas que decorreram entre as vésperas da tomada do poder pelos bolcheviques e o avanço do Exército Vermelho sobre Berlim.

                                Dois irmãos de ascendência russo-alemã, sobrinhos de Anton Tchekov, são as personagens nucleares, em redor das quais se desenha a trama intensa e dramática dos grandes acontecimentos do tempo, mostrando ao leitor o modo como as duas grandes experiências totalitárias do século passado partilharam importantes momentos de uma história com muito de comum. Olga Tchekova (1897-1980), instalada a partir de 1920 na Alemanha, teve aí um percurso fulgurante como actriz de cinema, tornando-se, logo após a tomada do poder pelos nazis, próxima de Hitler e de Goebbels, e mesmo um ícone do regime. O seu irmão, Lev Knipper (1898-1974), foi um antigo guarda branco arrependido que construiu uma notável reputação como compositor durante as décadas de afirmação do realismo socialista e se tornou agente especial do NKVD, com um papel provavelmente decisivo no recrutamento de Olga como «agente adormecido» dos soviéticos em plena capital do Reich. O epicentro dos acontecimentos narrados situa-se, no entanto, na União Soviética, a partir da relação da família Knipper-Tchekov com os episódios da revolução russa e da guerra civil que se lhe seguiu, com o alastramento incontrolável do terror estalinista e com a invasão nazi, sendo a «conexão alemã» uma consequência destes.

                                O recurso à «pequena história» e ao testemunho individual, comum nos livros de Beevor, é determinante para assegurar o interesse deste livro, permitindo ao autor contornar o pesado muro de silêncios e de omissões que foi arquitectado pelo sistema de informação soviético em redor das actividades subterrâneas de Olga e de Lev. Esta valia é ainda reforçada pelo facto de ambos pertencerem a uma destacada família da antiga intelligentsia russa, que usufruíra de um prestígio considerável durante as últimas décadas do czarismo e por isso deveria, em condições normais, ter sido varrida no decurso da revolução ou do violento processo de «construção do socialismo» Pode assim observar-se de que forma uma parte deste importante mas vulnerável sector social conseguiu sobreviver – sem dúvida através de laboriosos processos de adaptação ou de dissimulação – aos longos anos da autocracia estalinista e aos pesados constrangimentos por esta impostos aos intelectuais soviéticos. [Antony Beevor, O Mistério de Olga Tchekova. Trad. de Rita Guerra. Bertrand Editora, 280 págs. Publicado previamente na revista LER.]

                                  História, Olhares

                                  Cura de modéstia

                                  Albert Camus

                                  Releio pedaços de Actuelles, a compilação de textos políticos quase todos eles escritos por Albert Camus para o jornal da Resistência Combat – que tenho numa reimpressão velhinha e amarelenta da Gallimard –, e dou de caras com um passo surgido numa crónica de Fevereiro de 1947: «A democracia não se separa da noção de partido, mas a noção de partido pode passar muito bem sem a democracia. Tal acontece quando um grupo de homens imagina deter a verdade absoluta. Eis a razão pela qual a Assembleia e os deputados têm hoje necessidade de uma cura de modéstia». Gosto da ideia – uma cura de modéstia – porque vejo esta qualidade, tomada no sentido de decência, de despretensão, de clareza, como esquecida, abandonada, sistematicamente trocada pela bazófia, pela arrogância, por uma guerra de absolutas certezas que tende a distanciar as democracias de quem as legitima e de quem elas devem servir.

                                    Atualidade, Olhares

                                    Problemática albanesa

                                    Hoxha

                                    Depois do post anterior sobre Ismail Kadaré e (um pouco) sobre o seu último livro, retorno à problemática albanesa, uma vez que esta não me sai da cabeça. Não por ser problemática, mas por ser albanesa. Acontece que sempre me pareceu profundamente injusta a menorização – por comparação com o impacto do exemplo chinês – da influência do «país das águias» na projecção, à gauche do PCP, de uma alternativa ao regime caduco do «Salazar que ri», como alcunhava o povo a Marcello Caetano. Mas a verdade é que para muitos marxistas-leninistas-maoístas, esvaziada por uma vez a Grande Revolução Cultural chinesa, Enver Hoxha é que estava a dar. E se ninguém se proclamava hoxhista era só porque a palavra soava mal e podia prestar-se a confusões pouco conciliáveis (ou talvez não) com a moral proletária. Muitas horas de nocturno descanso foram consumidas a ouvir a onda curta, vociferada em português do Brasil, que começava assim: «Aqui Rádio Tirana, voz do Partido do Trabalho da Albânia e do marxismo-leninismo, a sua doutrina sempre jovem e científica». Ao que se seguia invariavelmente uma versão bastante singular da Internacional, umas frases do camarada Hoxha «sobre a situação política mundial», as últimas novidades da guerrilha do Araguaia e 15 minutos de música folclórica do distrito de Gramsh, província de Elbasan.

                                    No que me toca, a problemática albanesa teve ainda um outro impacto, associado a um certo virar de página. Em Abril de 1977 veio a Portugal uma delegação do Partido do Trabalho da Albânia – episódio já mencionado pela Ana Cristina Leonardo na sua Pastelaria –, destinada a ornamentar o primeiro comício público do PCP(R). Num último assomo de convicção pessoal na força da tal «doutrina sempre jovem e científica», ainda fui de camioneta até ao comício no Campo Pequeno para saudar os camaradas albaneses. O momento parecia festivo: muitas bandeiras vermelhas, faixas com palavras de ordem como «os ricos que paguem a crise» e «abaixo a democracia burguesa», música do GAC, julgo que também alguns retratos de Estaline, de Mao e do camarada Hoxha. Mas a festa esmoreceu rapidamente com a entrada em cena da delegação albanesa: um pequeno grupo de idosos de rosto impassível, com chapéus à Al Capone, lenços de Cachemira impecavelmente dobrados no pescoço à maneira dos galãs dos anos 40, e enormes sobretudos cinzentos a contrastarem com o sol de Abril, que conservavam abotoados enquanto batiam palmas daquela forma compassada e aborrecida que podemos observar agora no You Tube. Uma viagem no tempo em forma de pesadelo. E nós que tanto desejáramos encontrar antigos guerrilheiros de porte enérgico e uniforme de partisan, se possível de cartucheira a tiracolo, prontos a esmagar «o imperialismo e o social-imperialismo», empenhados em dar-nos a força da qual tanto precisávamos para resistir à longa ressaca do 25 de Novembro! Creio que o meu entusiasmo esmoreceu logo ali um bom pedaço. E meses depois tinha-me convertido num «independente de esquerda» um tanto problemático. Graças, em parte, à falta de graça dos camaradas albaneses. A juventude não perdoa. Na época dir-me-iam que a «ideologia de classe» também não.

                                      Devaneios, Memória, Olhares