«Intelectuais moderados» e almofadas coloridas

almofadas

Islão. Passado, presente e futuro, de Hans Küng, é um livro magnífico. Mas deixa no leitor uma certa sensação de ambivalência. O teólogo mal querido da Cúria Romana fala da forma como, no mundo ocidental, após o fim da Guerra Fria se procurou por vezes trocar o comunismo pelo islamismo como representação do mal. Neste âmbito, o desenvolvimento de processos de compreensão do Islão e de laços de entendimento deste com o cristianismo e com o judaísmo parece-lhe imprescindível para evitar um anunciado «choque de civilizações». Produz por isso uma síntese de dimensões históricas e sistemáticas que oferece uma perspectiva ampla e multidimensional do Islão, estimulando uma resposta perante o rastilho de incompreensão e violência que tem vindo a ser ateado. Fá-lo com sabedoria, em nome de um efectivo diálogo inter-religioso que defende desde há meio século. O seu esforço de aproximação acaba, no entanto, por cair numa armadilha, ao alimentar a quimera, comum entre muitos ocidentais, que se traduz em ver nos «intelectuais moderados» do Islão a chave para um compromisso. Na realidade, testemunhos constantes têm revelado a enorme debilidade do lugar desse tipo de pessoas no interior do universo islâmico.

Um excelente contributo para o esclarecimento deste enredo é-nos oferecido no número de Agosto da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. O artigo «Os intelectuais árabes, entre Estados e fundamentalismo», da autoria de Hicham Ben Abdallah El Alaoui, incorpora um notável rastreio da situação e das expectativas de muitos dos intelectuais árabes na sua relação com o mundo actual e com a procura de um futuro mais justo e mais democrático para os Estados autoritários que têm o Islão como religião oficial. Ben Abdallah anota um conjunto de circunstâncias e de perspectivas para as quais vale a pena olhar.

Os factos – Começa por evocar a histórica capacidade do Islão para absorver múltiplas influências culturais e o facto dela ter sido posta em causa, durante as últimas décadas, pela emergência dos movimentos de natureza fundamentalista e de correntes que com eles pactuam. Ambos partem de uma visão intransigente da tradição islâmica para transformá-la em instrumento de um poder autoritário cuja legitimidade política se baseia, em termos públicos, na resistência à ocidentalização e a formas de neocolonialismo.

O problema – «Há algumas décadas atrás, esta forma de religiosidade chocava com um nacionalismo árabe triunfante. Hoje até as vozes seculares moderadas hesitam em contestá-la abertamente.» Apanhadas na armadilha identitária, «essas vozes temem passar por inimigos da autenticidade árabe aos olhos do regime, dos conservadores e até das populações.» Calam-se então, ou procuram outras vias e outros espaços para sobreviverem na relativa diferença.

A realidade – Todavia, a dinâmica imposta pelo rigorismo islâmico não impede que as populações apreciem muitos produtos culturais difundidos através da televisão, do vídeo, da Internet ou da literatura popular. Existe até um certo «engenho» na forma como muitos árabes «se apropriam de toda a gama da produção cultural contemporânea.» Mais: a maioria das suas práticas culturais populares «não tem conteúdo religioso», mostrando-se até «saturadas de influências globalizadas», não só ocidentais, mas ainda indianas, latino-americanas, etc.

Esquizofrenia – Na maior parte dos autoproclamados Estados islâmicos, «em privado, ou em espaços semipúblicos prudentemente segmentados, consome-se cultura profana», mas em público «mostra-se a preocupação de exibir uma identidade muçulmana». Por exemplo, evitando ir ao cinema, indo habitualmente à mesquita, usando barba ou véu islâmico. No campo jurídico repete-se esta duplicidade. «Cada Estado determina a sua própria visão da legalidade e da ‘islamicidade’, na maior parte dos casos incorporando na legislação princípios de direito modernos ao mesmo tempo que reconhecem a charia como fonte última.»

Os moderados – Por vezes o Estado adapta-se a correntes islamitas «moderadas», assumindo um programa que «consiste sobretudo em mobilizar ideólogos religiosos – e não a polícia – para fazer reinar a piedade no interior das comunidades», evitando ou contornando as disposições mais severas da charia. A sua presença pode dar, sobretudo para os sectores menos empenhados na severidade religiosa e para os observadores ocidentais, a ideia de que se evita uma islamização completa, mas na realidade essa aparente abertura acaba por legitimar uma relação de dominação e uma norma social que tem a tradição religiosa como fundamento.

Capitulação – Entre os intelectuais, esta situação conduz muitas vezes a diferentes formas de capitulação política. Uma está associada à fuga de cérebros, real ou virtual: muitos artistas e escritores vivem agora no estrangeiro ou trabalham para um público estrangeiro. Mas a mais perigosa (e tortuosa) é outra: perdendo o contacto com os seus países e sociedades de origem, e definindo-se genericamente como «árabes», muitos desses intelectuais passam a dedicar-se a causas consensuais, como a Palestina ou o Iraque, das quais os governantes árabes nada têm a temer, «em vez de se comprometerem com o terreno da vida política nacional.» Transformam-se assim em coloridas almofadas que ajudam a atenuar ou a camuflar as graves contradições internas e os enormes desequilíbrios sociais.

Cultura asséptica – Reduzidos então a espaços de exílio, muitos intelectuais árabes oferecem ao exterior uma imagem inexacta de riqueza cultural, contrariada em cada país por uma total falta de apoio dos governos à criação e ao ensino, bem como por um apertado controlo da opinião. Essas pessoas ficam assim limitadas a um território asséptico, servindo objectivamente a propaganda externa dos Estados mas vivendo isolados do seu povo. Por isso, com poucas ou nenhumas hipóteses de divulgarem junto deste a sua presumível «moderação». Muitos deles «parecem-se mais com uma facção de cortesãos acomodados pelo Estado» ou por alguns protectores ricos e poderosos.

Onde estão então os «intelectuais moderados» que Hans Küng – falando generosamente de uma «linha da frente de críticos e não críticos que percorre todo o Islão» – anseia trazer para um proveitoso «diálogo de civilizações»? A verdade é que Ben Abdallah não reconhece a existência dessa linha. Aborda antes, no final do seu artigo, as possibilidades de criação de «uma norma pública» adaptada ao mundo e às tradições presentes no universo islâmico, como «um dos pilares de qualquer projecto autêntico de democratização». Esta mais facilmente nascerá de movimentos sociais de largas proporções, que consigam forçar a mudança e dissolver o poder dos ditadores e dos mullahs, do que da intervenção decisiva dos «intelectuais moderados».

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