Arquivo de Categorias: Olhares

O prémio

Capitão Haddock

Nos meses longos e intensos que se seguiram à Revolução dos Cravos, a publicidade paga dos jornais encontrou uma invulgar fonte de receita. Muitos portugueses que por um qualquer motivo se viram acusados de terem sido agentes ou informadores da PIDE resolveram declarar em público a sua putativa boa-fé, atestando perante Deus e a Nação que jamais haviam pertencido à famigerada corporação. Um dos casos com mais impacto na época foi o do «Inspector Varatojo», que por se ter servido deste pseudónimo num programa da RTP sobre literatura policial e criminologia se tornou suspeito, como aconteceu aliás com alguns inspectores, estes dos verdadeiros, da Polícia Judiciária, das Finanças ou do Ministério da Educação, de ser agente da PIDE.

Evoco este episódio por me ver envolvido numa situação relacionada com a nomeação para «blogger do ano» numa votação promovida pelo programa de televisão Combate de Blogs. Já aqui disse que distingo os presentes dos prémios e que me parece fazerem os segundos algum sentido quando se apoiam num colectivo e exprimem reconhecimento. Como me pareceu ser o caso, não me mexi e até estava a achar alguma piada ao lado puramente lúdico da iniciativa. Não me afligiu sequer a possibilidade longínqua de poder vir a ganhar o referido prémio. A Terceira Noite é um blogue individual, sem comentários – a média de acessos únicos diários desceu aliás quando por motivos de higiene mental acabei com eles –, escrito sem a intenção de falar para toda a gente e mais interessado em estabelecer laços com uma pequena comunidade do que em fazer doutrina e pôr os contadores a girar. Convenci-me por isso de que o número de pessoas que votariam em mim seria sempre residual. Limitei-me a tomar nota e a dormir sobre o assunto, visitando o site uma ou outra vez para acompanhar o jogo para o qual tinha sido convocado.

Ora acontece que estando de início num honroso mas modesto lugar a meio da tabela, saltei de repente para um destacado primeiro lugar. Não pulei de alegria pois sabia que ninguém me iria dar um cheque com muitos zeros em caso de vitória. Bem pelo contrário, fiquei ligeiramente preocupado quando constatei que a esmagadora maioria dos votos tinha entrado de forma maciça algures entre as 4 e as 7 da manhã, hora na qual todos os gatos são pardos e, em Portugal, a maioria das pessoas sã de corpo e de espírito se dedica a pôr o seu sono em dia. Daí a correrem suspeitas públicas de se terem instalado «rotativas de IPs» (é quase certo, aliás) ou de eu me dedicar a pressionar cidadãos eleitores maiores e vacinados, foi um passo. Claro que tudo isto vale dois caracóis, mas admito que não gosto de ver-me envolvido em eventuais fraudes para alcançar um qualquer galardão.

Como é evidente, as pessoas que estão na origem da votação nada têm a ver com os contornos deste episódio lamentável. Acredito por isso que compreendam ser legítimo que eu mantenha algumas suspeitas – se elas forem infundadas, tanto melhor, mas estou convencido de que o não são – e não goste de me ver atascado em terrenos pantanosos dos quais quero distância. Como diria o Almirante Pinheiro de Azevedo, nosso Capitão Haddock de carne e osso: «É uma coisa que me chateia, pá!»

Adenda em 1/1/2011 – Espero não ter de voltar a escrever sobre este assunto (triste, embora não insignificante, dada a sua relativa visibilidade). Relato apenas um episódio que deixo à consideração de quem aqui chegar por causa dos ecos. Nas últimas horas da votação choveram mais umas chapeladas, tendo a última decorrido a segundos da meia-noite, quando seria suposto estar toda a gente a festejar a passagem do ano: nessa altura entraram mais de 200 votos, fazendo com que o meu nome cortasse a meta em primeiro e ao sprint. Como qualquer pessoa inteligente entenderá, só alguém completamente estúpido cometeria uma falcatrua tão óbvia em causa própria. Quanto aos objectivos de outrem, desconheço-os.

    Atualidade, Cibercultura, Oficina, Olhares

    Liberdade a sério

    liberdade

    É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

    Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

    Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

      Fogo-de-artifício

      WikiLeaks

      Kim Jong-Il «é um gajo com aspecto flácido» e «com traumas físicos e psíquicos». Silvio Berlusconi «é irresponsável, vaidoso e ineficaz como um líder europeu moderno», mostrando «um gosto pronunciado pelas festas». Dmitri Medvedev «serve de Robin ao Batman Putin», sendo este «o macho dominante». Nicolas Sarkozy «tem a pele fina» e «um estilo pessoal muito susceptível e autoritário». Muamar Kadafi «usa botox e é um verdadeiro hipocondríaco», trazendo sempre consigo «uma enfermeira ucraniana de peito bastante avantajado». Angela Merkel é uma pessoa que «evita correr riscos», a quem «falta muitas vezes a imaginação». E Robert Mugabe «um homem maluco». Mais: Condoleeza Rice e Hilary Clinton reforçaram as iniciativas de espionagem da Casa Branca, os sunitas sauditas odeiam os xiitas iranianos, o primeiro-ministro turco tem uma agenda islamista escondida e a China andou a sabotar o Google e várias redes de computadores. A sério? Não me digam!

      Pouco mais parece ser do que conversa para consumidores de headlines e de notícias sensacionalistas, ou então de tema a explorar por bloggers com falta de assunto, a informação que a WikiLeaks acaba de libertar baseada em informações trocadas entre 2006 e 2009 pelos serviços diplomáticos e militares americanos espalhados pelo planeta. Os jornais rejubilam com as «grandes notícias», anunciando que «EUA espiam líderes estrangeiros» ou que os seus serviços secretos os «ridicularizam» comentando de forma demasiada directa, por vezes chistosa ou brutal, o perfil pessoal e político deste ou daquele. Perante tanta banalidade, vista e revista por quem conheça uma ponta da história da espionagem e da actividade diplomática que decorre longe dos microfones e das objectivas, podem fazer-se umas quantas perguntas tolas. Por exemplo: seria então suposto os EUA não possuírem um serviço de informações activo e diligente associado à actividade diplomática? não deveria este fazer relatórios sobre as personalidades e os comportamentos das pessoas que tomam as decisões centrais em cada país? encontra-se por ali informação que espante alguém atento à política internacional e às suas figuras mais destacadas? Tente-se perceber os motivos de uma admiração tão deslocada seguindo, por exemplo, os dossiês editados no El País, no Le Monde e no New York Times. Por mim, que já andei por lá a esquadrinhar, ainda não deparei com uma só informação completamente nova, um dado realmente perturbante ou sequer uma fofoquice verdadeiramente decente. A quem servirá então (ou para que servirá) todo este festival de fogo-de-artifício com alguns pormenores cómicos?

        Atualidade, Etc., Olhares

        Maremoto

        Franco e Millán-Astray

        Na crónica de hoje da Babelia, Antonio Muñoz Molina evoca as excursões provincianas a Madrid que sempre reservavam um dia para visitar o Escorial e o Vale dos Caídos. Lembra que fez essa peregrinação quando tinha 14 anos, ido do sul andaluz na companhia dos avós, comentando que, à excepção dos franquistas exaltados, então as pessoas já só cumpriam o ritual «porque era o que todos faziam quando iam a Madrid, e porque uma parte da vida consistia misteriosamente em cansar-se calcorreando espaços monumentais que pertenciam ao vago mundo do histórico». Muitos portugueses de passagem por terras de Castela faziam o mesmo – não sei se ainda o fazem – e, sim, eu fui também um deles. Mantenho na memória a percepção que tive daqueles espaços e as impressões que troquei, porque já tinha idade para isso, com outros romeiros portugueses, partilhando a convicção de que aquela monstruosidade arquitectónica separava com clareza a brutalidade asfixiante da monarquia filipina e do franquismo da mesquinhez sórdida do salazarismo, sem rasgo para erguer um santuário ao seu próprio destino. Por isso os nossos vizinhos podem perpetuar naquelas horríveis proclamações em pedra, pedagogicamente, a memória de um passado de ódio e de força bruta do qual a democracia os libertou. E por isso elas devem ser preservadas. No que nos diz respeito, quase nada temos para convencer as gerações mais recentes de que o «salazarismo real» existiu e que podemos tocá-lo com as mãos para garantir que existiu mesmo. Se não contarmos, claro, com as paredes de reboco da Capelinha das Aparições ou do Portugal dos Pequenitos, já que até as prisões do regime permanecem esquecidas e maltratadas. É bem mais difícil garantir que o demónio passou por aqui se dele não pudermos exibir a pata cascuda ou os pontiagudos cornos.

          Apontamentos, História, Memória, Olhares

          Maremoto

          Maremoto

          A Greve Geral não é uma greve qualquer. Não representa a mera reivindicação pontual, o protesto isolado, apenas a jornada de luta de um grupo social por melhores salários e condições de trabalho, por direitos mais justos e uma vida melhor. Tem antes uma dimensão superior, uma vez que comporta uma carga assumidamente política. Porque contesta sem rodeios um governo, um regime, um sistema. Nesta Quarta-Feira e em Portugal, como noutros momentos e em outros lugares, será este, uma vez mais, o sentido da Greve Geral que as duas centrais sindicais convocaram e prepararam.

          É verdade que os muitos trabalhadores que a ela aderirem apontam a objectivos concretos. Vão erguer-se contra as medidas de austeridade, contra a redução do poder de compra e dos salários, contra a ofensiva apontada aos direitos conquistados a pulso, contra o bloqueio das negociações colectivas, o congelamento das pensões e a eliminação dos abonos de família, contra o empobrecimento da população e aumento das desigualdades. Irão bater-se pelo investimento no sector produtivo, pela criação de emprego e pelo combate à precariedade, pelo aumento dos salários e uma distribuição mais equitativa da riqueza, pela melhoria da protecção social, por serviços públicos de qualidade e uma garantia do cumprimento das funções sociais do Estado. Mas a afirmação de objectivos tão claros e tão justos deve obrigatoriamente passar pelo crivo da realidade: no contexto actual, todos sabemos que a sua materialização no curto prazo não só é improvável como é impossível. Tal não significa, porém, que a greve apenas sirva para «marcar uma posição dos sindicatos», como já li por aí. Pelo contrário, ela pode servir para afirmar dois objectivos que ultrapassam o imediato.

          Servirá, por um lado, para mostrar que o mundo do trabalho não se transformou numa força passiva, que aceita sem grandes lamentos ser transformada em bombo da festa ou em batuque de funeral. Que a gestão das sociedades tem obrigatoriamente uma componente social e humana não convertível à lógica fatalista da religião dos mercados financeiros. Servirá, por outro, para proclamar que não existe uma única via para a definição política da governabilidade. Em Portugal, como em muitas outras partes, este é um problema delicado, uma vez que o impasse e o recuo das esquerdas, divididas entre a administração de um imaginário «capitalismo de rosto humano» ou a mera gestão do protesto social, as conduziu a uma real impotência para apresentarem soluções alternativas. Porém, actos como este podem ajudar a alargar o processo de consciencialização e de amadurecimento político e orgânico que um dia – esperemos, sem ser de forma passiva, que ele não tarde muito – conduzirá a formas mais justas e solidárias de governar o social. Sem qualquer sentido messiânico e meta-histórico, como aconteceu num passado recente, mas como uma força tendencialmente optimista e afirmativa. É à espera deste salto em frente que adiro a esta greve. As reivindicações não vingarão de um dia para o outro, mas do remoinho poderá nascer o maremoto.

            Atualidade, Olhares, Opinião

            Efeitos especiais

            manif

            Não encontrei grandes ecos do texto do provedor do leitor do Público, José Queirós, editado no passado sábado e intitulado «Contar Cabeças». Nele se refere o facto de, pela primeira vez em Portugal, um estudo levado a cabo por uma equipa de investigadores, dirigida no caso por Steve Doig, professor da Universidade do Arizona, ter contado o número de participantes na manifestação convocada no passado dia 6 pela Frente Comum dos Sindicatos da Administração Pública, e que desfilou em Lisboa entre o Marquês de Pombal e os Restauradores. Os organizadores apontaram para 100.000 pessoas presentes, mas a equipa do professor Doig fez contas, fotografou a manifestação, mediu o espaço, e provou que não tinha sido bem assim. «Resultado: uma estimativa de 8000 a 10.000 participantes no desfile, e cerca de 5000 concentrados nos Restauradores.» Acrescentando José Queirós o seguinte: «Não creio que seja possível, depois desta experiência, que um jornal independente continue a ignorar as suas responsabilidades informativas e se limite a servir de eco preguiçoso aos números avançados por organizadores de manifestações ou por fontes oficiais.» Inteiramente de acordo com a conclusão; todavia, este episódio pode levar-nos ainda mais longe. (mais…)

              Atualidade, Olhares, Opinião

              O combate dos chefes

              O combate dos chefes

              Em tempo de guerra – leia-se, de crise económica grave, profunda e imprevisível, embora, como tudo na vida, sempre reversível – não se limpam armas. O proscrito da esquerda reemerge como salvador do Estado social e de um sistema «sabiamente gerido». Mr. John Maynard Keynes, o defensor, contra as teorias da «ordem espontânea» de Herr Friedrich Hayek, da intervenção económica contracíclica, renasce das cinzas nas maiores livrarias, nos seminários académicos, nos suplementos dos jornais, nos blogues que falam de economia política. Um sinal da viragem dos tempos? Apesar de tudo, gostava de acreditar que sim.

                Apontamentos, Atualidade, Olhares

                Ler é lutar

                ler de cabeça

                Acabo de assinar uma «petição» online com a qual não concordo inteiramente. Neste como noutros casos, porém, parece-me que uma certa noção de consenso, imprescindível para o impacto público de determinada posição, nos dispensa de transformar em questão de princípio aquilo que em dado momento é acessório. E por isso assinei esta «petição» destinada a exprimir a solidariedade dos signatários para com a greve geral de protesto do próximo dia 24 de Novembro. É muito mais importante o gesto colectivo de apoio do que questionar agora o significado de petição (a «petição» pede, solicita, e o texto proposto declara, manifesta). É também muito mais importante assinar do que colocar em causa que se proponha como forma de luta «fechar os livros no dia 24». Isso eu não faço, porque a noção de trabalho associada à leitura e ao estudo só em parte tem a ver com a gestão capitalista da actividade intelectual. E ler, estudar, é também uma forma de luta pela apropriação social do quotidiano. Prioritária até, na minha opinião. Sem horários, férias, feriados ou greves de braços caídos. Sem esquecer este aspecto, se quiserem assinar – em princípio, só se forem ou tiverem sido bolseiros, investigadores, professores e estudantes – podem ir aqui.

                  Apontamentos, Olhares, Opinião

                  O Avante!, a China e outras coisas

                  As botas de Estaline

                  Não sou leitor habitual do Avante! Salvo quando o meu trabalho o requer, leio apenas artigos do jornal para os quais me chamam a atenção. Isto nada tem a ver com a concordância ou a discordância em relação à linha política partidária que veiculam. Todos os dias oiço ou leio posições políticas muito diferentes, das quais me aproximo ou discordo, por vezes radicalmente, e não é por isso que me recuso a lê-las ou a dar-lhes a atenção crítica que merecem. Quanto muito, se não me interessam desligo e passo ao lado. Democracia é acima de tudo combate e diálogo, falar e saber ouvir, argumentar e respeitar, ser arrojado mas procurar consensos. É escolha. Mas é também expor razões sem debitar juízos de valor de natureza casuística sobre as pessoas das quais discordamos, é não insinuar frases retiradas do contexto mas procurar compreendê-las de forma integrada, é mostrar paixão sem destilar constantemente o ódio. A negação de tudo isto, está nos livros, é própria do pensamento único, que aduba o terreno para a vertigem totalitária, começando por desqualificar toda a diferença que a sua lógica cheia de certezas seja incapaz de integrar. E é esta a atitude que o Avante! constantemente propaga.

                  Mas não é apenas por isso que não leio o jornal. Nem é sequer porque não tenho tempo para tudo ler, o que, infelizmente, até é verdade. É também porque gosto de textos arrebatadores que ali é impossível encontrar, é porque me aborrece mortalmente a linguagem previsível e repetitiva que o percorre de uma ponta à outra, é porque rejeito a inaptidão que demonstra para debater com a verdadeira diferença, é porque não gosto de omissões escolhidas a dedo, é porque me incomoda o tom agressivo, crispado e repetidamente insultuoso de quase todos os articulistas. Um tique leninista que tem o seu livro sagrado no opúsculo miserável sobre A Revolução Proletária e o Renegado Kaustky, uma autêntica cartilha sobre a arte de bem caluniar.

                  Um bom exemplo no qual todas estas características se encontram juntas pode ser dado pelo artigo «Duas sílabas apenas», de Jorge Cordeiro, no qual se retoma a tendência relativamente nova do PCP para elogiar a China contra aqueles que criticam a forma como ali o direito à expressão do pensamento livre e ao pluralismo político é brutalmente espezinhado. Para além da lengalenga sobre o «preconceito anticomunista» – equiparado na verborreia a qualquer forma de combate pelos direitos humanos, o que é logo bastante significativo –, veja-se a forma ali tomada pelo ataque pessoal (pessoal, sublinho, pois nada tem de crítica de ideias) a Ana Gomes e a Francisco Louçã. A defesa abstracta da política nacionalista – que a par do obreirismo é um dos actuais esteios ideológicos e orgânicos do partido –, conduz à afirmação do mais completo desdém pelo «federalismo» de Ana Gomes, «para quem o valor da soberania nacional é como água em deserto». Uma vende-pátrias, pois. Ao mesmo tempo, remói-se o suposto passado de Francisco Louçã, «para quem só o soletrar do par de sílabas daquele país lhe aviva irresolúveis problemas de consciência que acompanham o seu percurso político», seguindo-se uma tentativa de desqualificação pessoal. Isto tão-só e apenas a propósito da crítica que a eurodeputada socialista e o dirigente bloquista fizeram às escolhas políticas da China e à intervenção das suas opções económicas no contexto da actual crise mundial. Repare-se bem que o articulista, um importante membro de penúltima geração da Comissão Política do Comité Central, se refere precisamente a dois responsáveis dos únicos sectores (a mítica «Esquerda do PS» e o famigerado Bloco de Esquerda) com os quais o PCP poderia, por um passe que desta forma só poderá mesmo ser de mágica, ensaiar a construção de uma alternativa política para o país. A não ser que conte fazê-lo com os «amigos» do Partido Ecologista Os Verdes, os veneráveis e semiclandestinos senhores da «Intervenção Democrática» e uns quanto distraídos que aparecem sempre no horário de expediente.

                  Claro que o facto de eu não gostar de ler o Avante!, e de não recomendar a outros que o leiam, não significa que aquilo que escrevo neste blogue e que refira de algum modo o PCP não seja imediatamente objecto de escrutínio e, como não poderia deixar de ser pois essa é «a escola», de pequenas campanhas difamatórias por parte de alguns dos seus leitores mais fiéis e mais nervosos. O mesmo acontecerá eventualmente com este post. A verdade é que até posso escrever 324 que falem do tempo que tem feito na ilha de Páscoa, do campeonato de críquete no Paquistão, da descoberta de um filme inédito com o Buster Keaton e dos chilreios dos passarinhos, mas se ao tricentésimo vigésimo quinto escrever a palavra PCP toca algures uma sirene de aviso e os bombeiros-incendiários de serviço descem pelo varão para se meterem no carro e saírem a alta velocidade pelas ruas mal iluminadas da blogosfera. Vida difícil a deles. Mas foram eles quem a escolheu.

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    O medo (Hobbes vs. Rousseau)

                    Medo

                    Uma nota no Facebook chamou-me a atenção para um artigo de Viriato Soromenho Marques publicado no Diário de Notícias da última Terça-Feira. Este retomou ali a conhecida opinião de Thomas Hobbes acerca do papel do medo como factor capital para a instauração da ordem pública e do bom governo. De caminho, distanciou-se de uma opinião do filósofo José Gil a propósito do lugar do mesmo medo no actual alastramento, pelas ruas, moradias e locais de trabalho, de um clima de intimidação imposto pela fragmentação do social. No essencial, Soromenho Marques pretende dizer que esta situação não é um mal em si, podendo até, muito pelo contrário, funcionar como instrumento para a construção de um bem maior. Usando as suas próprias palavras: «O medo combate a desmesura, estimula a inteligência, promove o raciocínio estratégico, incentiva a disciplina, ajuda-nos a conhecer os nossos limites, e a respeitar os limites dos outros.» Sob diferentes rostos, esta posição tem fundamentado todas as formas de exercício discricionário da autoridade, justificando-as em nome de um arbítrio imposto por «o homem ser o lobo do homem» e necessitar de trela para não despedaçar o seu semelhante.

                    Este género de opinião deriva de uma filosofia social, de uma consideração do humano e até de uma uma concepção de vida na cidade que contém uma dimensão particularmente deprimente e perigosa. Ela implica a aceitação absoluta da desigualdade, já que o medo se apoia sempre numa relação de poder que subordina, sem remissão, o amedrontado a quem o amedronta. Supõe uma maldade intrínseca à essência do humano que bloqueia a construção de uma ideia de justiça que não seja a justiça do carcereiro. E ataca uma das bases fundamentais da democracia que é a expressão de uma opinião informada, fundamentalmente livre e não sujeita a coacções de toda a ordem. Regresso, para usar idênticas armas, às palavras de Jean-Jacques Rousseau, a velha bête noire de Hobbes no campo da filosofia política, retiradas do seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, escrito em 1754 para a Academia de Dijon:

                    «Eu teria escolhido aquela [República] na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos, elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação sincera e perpétua.»

                    Eis a essência desejável da democracia, seja ela representativa ou participativa, que o artigo sinistro de Soromenho Marques revela desprezar em absoluto, ao propor uma harmonia assente não no justo consenso e na dádiva mas sim na pura coerção. Talvez este exprima uma tendência que emerge do lado mais sombrio da História e que de vez em quando sai do caixão e regressa para nos atormentar, criando a ficção de que a paz dos escravos alicerça o melhor dos mundos, uma vez que nos afasta do território tumultuoso, «decaído», onde se constrói com dor a emancipação, a liberdade e o bem-estar. Talvez este seja um sinal de perigo ao qual devamos prestar atenção.

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      Um ataque injusto e gratuito

                      O escrevedor

                      O último número, o de Novembro, da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, globalmente excelente como sempre – destaca-se desta vez um dossiê sobre a recusa da «ordem insustentável» na qual somos forçados a sobreviver –, contém um artigo lamentável assinado por Ignacio Ramonet. Não se trata de uma raridade na intervenção do autor, pois desde há muito que Ramonet vem, repetidamente, mesclando posições justas de crítica e de combate no campo da esquerda com profissões de fé contra ideias e experiências que perturbam o núcleo idiossincrático no qual fixou a sua concepção do que é ou não é esquerda. Ou, mais abrangentemente, do que é ou não é democrático, de acordo com a noção de democracia que o seu conceito de esquerda recolhe. Não esqueço, por exemplo, a série de conferências que proferiu (estive pelo menos em duas), de artigos e livros que escreveu (alguns deles foram editados em Portugal), dedicados, há cerca de uma década atrás, ao combate contra alguns dos inúmeros «malefícios da Internet» que depois foram instrumentais no levantamento de novas formas de sociabilidade e de determinados movimentos sociais.

                      Desta vez Ramonet atira-se, em «Os dois Mario Vargas Llosa», ao mais recente «escrevedor» laureado com o Nobel da Literatura. Começa por confirmar enfaticamente a sua valia como escritor, reconhecendo-o como «extraordinário na capacidade de misturar as técnicas de romance social, histórico e realista, ou mesmo do romance policial», tendo-o, aliás, mostrado «brilhantemente». Mas logo de seguida, e é esse o objectivo central do artigo, volta-se contra o que considera ser a deriva de direita do escritor. Está, naturalmente, no uso do seu mais do que legítimo direito à crítica. Aliás, partilho de algumas das suas perplexidades em relação a determinadas posições tomadas no passado, no plano político, por Vargas Llosa. Mas o jornalista vai muito para além da discordância, insinuando mesmo questões de carácter cuja invocação, para além de incorrecta, é até profundamente injusta. Ouçamo-lo: (mais…)

                        Atualidade, Olhares, Opinião

                        Três inspirações

                        estação de comboios

                        O serviço público dos correios fez-me chegar esta semana três livros que encaixam, cada um à sua maneira, no grupo das obras que podem interromper o opressivo discurso realista a propósito do que merece verdadeiramente a nossa atenção. Qualquer um deles nos ajuda a identificar no trânsito de outros tempos, recorrendo a vozes e a lugares distantes, formas de mágoa, de desilusão mas também de alguma esperança. Estados de espírito não contabilizáveis em termos de utilidade, que nos aproximam muito mais do humano do que os malabarismos especulativos para justificar a crise do sistema e as incomodativas arengas que asseguram nada podermos fazer para a derrotar, salvo esperar, tal como acontecia com as pragas medievais, que faça as suas vítimas e passe o mais rápido possível. Fecho pois a porta da rua, ligo o candeeiro, acendo um cigarro e mergulho nos papéis.

                        O primeiro livro é A Tomb for Boris Davidovich, do jugoslavo Danilo Kiš. Sim, jugoslavo, pois morreu em 1989 e, como descendente de sérvios, croatas, montenegrinos, húngaros e judeus, não fora Tito e os seus partizans e teria uma vida muito diferente. Kiš publicou em 1976 este conjunto de sete contos – convocado por Harold Bloom para The Western Canon – que são biografias ficcionadas de pessoas que existiram, confrontadas a dada altura do seu passado com a degenerescência do regime socialista e a impiedade do seu sinistro aparelho repressivo. A particularidade destes contos reside numa característica dos protagonistas: todos eles se distinguiram das pessoas comuns por terem acreditado um dia no ideal comunista e no mundo novo que este parecia poder produzir sob condições «reais». Porém, todos também viveram para testar a brutalidade de um sistema capaz de engolir muitos dos que confiaram nos seus fundamentos, que lhe dedicaram parte das suas vidas e que o ajudaram a erguer. Com todas estas histórias se aprende, no entanto, que a injustiça coabita sempre com a confiança no que trará o dia seguinte.

                        O segundo é Café Europa. Life after communism, da croata Slavenka Drakulić, lançado em 1996. Ao contrário do que pode ser encontrado no também seu Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor (já aqui comentado), neste livro fala-se do universo renovado, cravado de vícios antigos mas também de grandes expectativas e de enormes logros, que resultou das transformações ocorridas no leste europeu nos anos que se seguiram imediatamente à Queda do Muro e ao colapso do comunismo institucional. Fala-se principalmente do vácuo deixado pela derrocada do poder socialista nos sistemas de crenças e nas expectativas da generalidade das pessoas, comuns e incomuns. Forçadas todas elas, de um momento para o outro, a esquecerem a ficcionalização da utopia com a qual tinham convivido ao longo de décadas, e obrigadas a trocá-la pela convivência difícil com o deserto do real. Detecta-se todavia um halo de confiança, traduzido numa certa convicção de que a integração na casa europeia comum abriria um caminho novo para a felicidade possível. Como se sabe, a história parece estar a correr mal, mas os sinais de esperança tendem sempre a persistir.

                        O terceiro livro, a única novidade, é The Memory Chalet, de Tony Judt, a cuja voz regresso uma outra vez. Este sim, é mesmo o derradeiro livro do historiador, escrito já num estado de enorme debilidade motivada pela doença que o foi diminuindo e acabou por levar. O anterior Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos foi redigido, aliás, já nesta situação. No entanto o processo utilizado foi aqui prodigiosamente único. Noite fora, totalmente imobilizado na cama, Judt passou a empregar o tempo com evocações e devaneios, através dos quais a sua prodigiosa memória foi ocupando, divisão a divisão, o «chalé suíço», como lhe chamou, no qual este livro se foi transformando. De manhã ditava as suas evocações, algumas delas publicadas ainda na New York Review of Books. Trata-se pois de um conjunto de 25 «ensaios ditados», provavelmente um género novo, através dos quais Judt nos foi falando da juventude em Londres, do ano de 1968 e dos grandes projectos da sua geração («uma geração revolucionária que falhou a revolução»), de viagens através da Europa e da América, de cheiros, de sabores, de comboios, chegadas e partidas. E sobretudo de pessoas no tempo, presas sempre, umas às outras, através desse «fio da História» que nunca desistiu de perseguir.

                          Ficção, História, Memória, Olhares

                          Um combate pelo real

                          combate

                          A proposta requer coragem: «Terras de ninguém, espaços de anonimato, interioridade comum… eis as armas de uma política nocturna cujo objectivo é sempre o mesmo: atacar a realidade. Atacar a realidade para poder respirar.» É pois a realidade o princípio e o destino desta colectânea de ensaios de Santiago López-Petit. Subjugada a um capitalismo sem freios, que hoje nada deixa de fora, que tudo envolve, é nela que se encontra a chave para a compreensão de um mundo opressivo que urge superar. Quatro conceitos primordiais guiam o trabalho do autor. O primeiro reconhece o «Estado-guerra»: após o 11 de Setembro, a política global passou a ser determinada pelo combate, pela via do bombardeamento ou da «legislação furtiva», contra um inimigo que o Estado escolheu. O segundo conceito refere um «fascismo pós-moderno» construído sobre o reconhecimento público da diferença para melhor poder neutralizá-la. O terceiro fala do poder «como poder terapêutico», assente num contrato que apenas nos permite viver a vida que nos é concedida. O quarto conceito coloca-nos perante uma nova questão social: o «mal-estar» que esta situação intensamente tirânica suscita, forçando «um gesto radical de rejeição» que não é já «o gesto moderno que depois da destruição anunciava e preparava um novo começo». Este livro de filosofia política invoca pois um dever: mobilizar, a partir do próprio real e não contra ele, o combate diário contra a opressão instalada e o capitalismo. [Santiago López-Petit, A Mobilização Global. Seguido de O Estado-Guerra e outros textos. Deriva. Trad. e comentários de Rui Pereira. 248 págs. Nota publicada na LER.]

                            Atualidade, Olhares

                            Sem culpa mas com desculpa

                            Lombardi

                            De acordo com o director da Sala de Imprensa da Santa Sé e porta-voz do Vaticano, o teólogo, presbítero e padre jesuíta Federico Lombardi, a Igreja católica é mais vítima do que culpada da «praga dos abusos sexuais», a qual avisadamente vê como «uma das pragas do mundo actual». Os motivos do flagelo parecem-lhe óbvios: a presente «crise da família», a desordem trazida pelo turismo e o comércio sexual facilitado «pela Internet e pelas novas formas de comunicação.» Eis de novo a reacção típica da hierarquia da Igreja católica, que a propósito do tema confunde causas e instrumentos. Insiste em ignorar, em termos públicos, uma ligação mais do que óbvia entre a autoridade da função sacerdotal e da própria Igreja junto de numerosas pessoas e comunidades, a intensa repressão sexual que esta insiste em pregar e impor como norma de conduta, e os abusos recorrentes, que na esmagadora maioria dos casos permanecerão aliás no mais completo silêncio, devido ao pudor ou ao receio dos envolvidos. Na Irlanda, para não ir muito longe, conhecem-se números aterradores sobre a proliferação deste tipo de situações, ocorrida de forma transversal e vertical no conjunto da instituição e das suas ramificações, mas o volume de denúncias públicas é ainda bastante moderado. Para não falarmos daquilo que inevitavelmente aconteceu nos mais variados recantos do mapa ao longo de séculos de coacções e silêncios. Nessa longa era de paz e de sossego sem Internet ou outras formas livres de comunicação que perturbassem, com conversas bastante inoportunas e indecorosas sugestões, o casto descanso, por vezes aromatizado com suor e sémen, das celas, das camaratas e das sacristias.

                              Atualidade, Democracia, Olhares

                              A Ovelha Xoné, John Wayne e o Verão de 69

                              boinas verdes

                              Domingo. Hoje de manhã, ao deambular por entre escaparates repletos de DVD enquanto tentava fintar as crianças que corriam destrambelhadas à procura de filmes da Ovelha Xoné, dei de caras com um episódio do passado. Com um incidente que não esquecera mas estava claramente adormecido no fundo mais fundo da minha memória RAM. A razão da lembrança foi ter deparado com uma versão remasterizada de uma «película» estreada em 1968, The Green Berets (Os Boinas Verdes), com John Wayne no esplendor da sua compleição de trangalhadanças reaccionário a actuar também como realizador. Trata-se do primeiro filme americano sobre a Guerra do Vietname, rodado no auge da intervenção militar de Washington na Ásia do Sudoeste, e que assume uma posição claramente anticomunista e pró-Saigão. Tendo em consideração a política externa americana da época, a dimensão simbólica ocupada pelo conflito vietnamita, o perfil particularmente odioso de Wayne e o sentido ideológico do filme, é fácil de ver que este fez levantar protestos em muitos lugares do planeta, chegando mesmo a registar-se casos de violência e de boicote a salas de cinema que se atreveram a passá-lo.

                              Em Junho ou Julho de 1969, quando o filme passou em Portugal, eu vivia em Tomar, onde me preparava para concluir o ensino secundário. Recordo-me de ser Verão porque fui, na minha inocência política daqueles anos – que provavelmente se mantém bem conservada – ver o filme, como se de um simples filme de aventuras se tratasse, a um cinema ao ar livre que funcionava mesmo no centro da cidade, no parque que faz, ou fazia, paredes-meias com o Estádio Municipal. Lembro-me apenas de o filme ter começado, e, pouco minutos depois, do ruído de pés a bater no chão de cimento e de gritos a impedirem as famílias pacatas e ordeiras de continuarem a seguir as proezas do Coronel Mike Kirby e dos seus subordinados. De repente um brado em crescendo: «Abaixo a Guerra Colonial! Abaixo a Guerra Colonial! Abaixo a Guerra Colonial!» Afinal uma grande parte dos espectadores – alguns deles, presumo, estudantes de Coimbra que já tinham abandonado a cidade por ser altura de férias e a luta estudantil estar interrompida – eram manifestantes anticolonialistas que aproveitaram o filme para gritarem contra outra guerra, a sua Guerra, que detestavam e queriam ver terminada. Claro que depois de alguma hesitação também gritei. E quando chegaram meia dúzia de polícias para terminarem com a sessão corri também pelas ruas mais próximas tentado escapar das bastonadas. Foi a minha primeira manifestação anticolonial. Thank You, Mr. Wayne! R.I.P.

                                Apontamentos, Memória, Olhares

                                Bastidores do crime

                                Ialta segundo Motchalov
                                A Conferência de Ialta segundo Vladimir Motchalov

                                Um dos mitos popularizados que envolve a Segunda Guerra Mundial põe frente a frente, como numa versão hollywoodesca da História, uma aliança de «bons» e outra de «maus». O escritor e produtor de séries para a BBC Laurence Rees reconhece ser esta uma forma reconfortante mas bastante redutora de olhar para o passado, mostrando em Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada, com recurso a um aparato documental retirado dos arquivos e de testemunhos de participantes directos nos acontecimentos, que é urgente abandoná-la. Na verdade, entre a assinatura do acordo Molotov-Ribbentrop – o infame pacto germano-soviético de não-agressão e de divisão de despojos assinado em Moscovo em Agosto de 1939 – e o período subsequente à Conferência de Ialta, os líderes das potências responsáveis pela derrota militar de Hitler – Estaline, Churchill, Roosevelt – não pararam de levar a cabo actos de um cinismo, crueza e falta de sentido de justiça que deveriam bastar para retirar-lhes de vez o halo que ainda possam conservar de heróis abnegados e impolutos.

                                Esta obra perturbante trata de passar em revista e de nos colocar mesmo à frente dos olhos uma teia complexa de manobras de bastidores, de apagamentos suficientemente dolorosos e de brutais iniquidades que tiveram os povos da Europa Central e Oriental, e principalmente a desgraçada nação polaca, como vítimas de matanças e deportações em larga escala, dos quais os três tiveram conhecimento mas que jamais se esforçaram por evitar. Quando não as promoveram. Deste banho de sangue é no entanto a figura do ditador soviético, o decantado «Paizinho dos Povos», que emerge como particularmente sórdida: pelas ruas reduzidas a pó de Varsóvia ou de Berlim, como nos acontecimentos da floresta de Katyn, as demonstrações que patrocinou de completo desprezo pela vida humana de civis e de combatentes mantiveram-se ao nível da sua ambição imperial. [Laurence Rees, Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente. Dom Quixote. Trad. de Manuel Marques. 504 págs. Versão de uma nota publicada na LER.]

                                  História, Memória, Olhares

                                  A vida de Marcelino

                                  Marcelino Camacho

                                  Muitos são já os que não sabem quem foi Marcelino Camacho, desaparecido hoje aos 92 anos. Por nada de especial: os anos vão passando e vão pesando, a saúde fraqueja, e a dada altura não é fácil permanecer na primeira linha do combate e ter a atenção dos meios de comunicação, para os quais os velhos são tantas vezes trapos que não atraem audiências. Além disso, ser sindicalista não constitui uma «profissão de sucesso»: os sindicalistas não aparecem nas páginas da ¡Hola!. No entanto, quem acompanhou o seu percurso sabe do papel interveniente que teve em momentos tão dramáticos e decisivos da História de Espanha como a Guerra Civil (batendo-se, naturalmente, nas fileiras republicanas), a resistência clandestina ao franquismo ou a construção de um movimento sindical combativo e autónomo. Foi militante do Partido Comunista de Espanha desde 1935, e jamais deixou de o ser, tendo-se aliás oposto, em 1991, à dissolução do PCE na Izquierda Unida. Mas foi ao mesmo tempo um dos principais impulsionadores das Comissiones Obreras, a poderosa organização sindical que manteve sempre uma atitude modelar, de combate mas politicamente bastante aberta, unitária sem ser unitarista, de cuja prática se excluía o centralismo e onde o sectarismo não foi a regra mas sim a excepção. Durante décadas, foram «as CCOO de Marcelino Camacho» e estava tudo dito. Ficou-nos um exemplo e os exemplos não são para esquecer.

                                    Apontamentos, Democracia, Memória, Olhares

                                    A lista de Lopes

                                    A parede

                                    No filme A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, a frase é de Bruno Hempf, o ficcionado ministro da Cultura da RDA, e destina-se a servir o elogio público de Georg Dreyman, um escritor que ele crê, apesar das suspeitas da Stasi, ser fiel ao regime: «Como disse um grande filósofo marxista cujo nome neste momento me escapa, os escritores são os engenheiros das almas.» O «esquecimento» pretendia ser irónico, uma vez que essa frase foi repetidamente atribuída a José Estaline, que aliás a teria aplicado para se referir aos intelectuais no seu conjunto. Nela, a perversão encontra-se num entendimento puramente instrumental do papel do escritor ou do artista, apenas toleráveis enquanto intelectuais se aplicados sem hesitações numa «causa do socialismo» orientada por quem se arrogava dirigi-la num sentido unívoco e historicamente irrevogável. Materializado na União Soviética de forma crescentemente inflexível a partir de Junho de 1925, quando se adoptou uma resolução «Sobre a política do Partido no domínio da literatura artística» assinada por Nikolai Bukharine, o princípio passou posteriormente a ser aplicado na generalidade dos Estados do chamado «socialismo real». Aí determinando privilégios e exclusões, o direito à voz ou a obrigação do silêncio, por vezes a linha entre a vida e a morte.

                                    (mais…)

                                      Atualidade, Olhares, Opinião