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As duas vias da alternativa

Se não quisermos naufragar no desânimo, temos de mudar de agulha, de procurar outra rota. O empobrecimento da maioria das pessoas, a diminuição do papel social do Estado, o crescimento brutal do desemprego, a redução progressiva das liberdades e dos direitos, a instalação de um clima de medo e descrença, a desconfiança dos cidadãos em relação aos seus governantes, a desvalorização do ensino e do conhecimento, o menosprezo pela criação e pelos criadores, a ausência generalizada de expectativas, a destruição apressada de tudo aquilo que de positivo foi erguido sob o regime democrático, exigem dos cidadãos cientes desta desgraça uma atuação rápida e enérgica. A construção de uma alternativa ao atual governo, mas também de uma mudança clara em relação às lógicas de sistema que delapidaram os dinheiros públicos, instituíram o «aparelhismo» rotativista partidário como princípio de governo e desvalorizaram a democracia. Esta é uma necessidade que ganha, visivelmente, um número cada vez maior de adeptos entre os convictos de que não será com o fatalismo, a desistência e a depressão coletiva que se poderá inverter a situação. Que se poderá voltar a viver num país minimamente justo e com um lugar para a dignidade e a esperança. (mais…)

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Os novos bárbaros

    A palavra «bárbaro» deriva, como é sabido, do grego βάρβαρος, significando «não grego». Era dessa forma que os antigos helenos classificavam os estrangeiros e todos os povos cuja língua não era a sua. Começou por ser uma alusão aos persas, cujo idioma de toada gutural entendiam como um estranho e indecifrável «bar-bar-bar». Por extensão, também os romanos foram por eles designados como bárbaros. Depois, já sob o Império Romano, a expressão passou a ser utilizada com a conotação de «não-romano» ou de «incivilizado», aplicada em primeiro lugar aos hunos, aos celtas e aos diferentes povos germânicos, cujo comportamento, reputado como brutal e cruel, era inexplicável e totalmente fora dos parâmetros da sua matriz cultural, parecendo bastante ameaçador. A palavra foi-se mantendo entretanto, ao longo dos séculos, no léxico ocidental. Apesar de contestável na sua dimensão etnocêntrica, o seu uso superou em algumas significações este limite, para se vincular negativamente à classificação de todos aqueles que se opunham, recorrendo à violência ou pela força da ignorância, ao que parecia serem as conquistas partilhadas da humanidade. Ajustado, sucessivamente, a todos os que se afastavam de um ideal de paz, de bem-estar, de saber, de liberdade, de igualdade, de proteção dos mais fracos, de supremacia do interesse da comunidade ou coletivo, de defesa do indivíduo frente ao pensamento único e a todas as modalidades de opressão, de desrespeito das minorias, dos excluídos, dos mais pobres e mais fracos. (mais…)

      Apontamentos, Olhares, Opinião

      Depardieu já não mora ali

      Com aquele perfil de Napoleão Bonaparte aquilino, sorridente e bem nutrido, visivelmente menos dado a cavalgadas e a batalhas que o original, Gérard Depardieu, 64 anos, grande ator, realizador episódico e agora empresário de sucesso, oferecia-nos, até há pouco tempo, uma excelente representação visual do «verdadeiro francês». No ecrã, foi o Conde de Monte-Cristo. Foi D’Artagnan. Foi Porthos. Foi Mazarino. Foi Cyrano de Bérgerac. Foi Jean Valjean. Foi até o gaulês Obélix. E ficou para sempre, já do lado meridional dos Alpes, como o inesquecível Olmo Dalco, protagonista pobre do 1900, de Bertollucci. Durante anos viveu também como um homem de causas, tendo apoiado em 1987 a reeleição de François Mitterrand, que lhe aplicou na lapela o emblema da Legião de Honra.

      Entretanto engordou bastante, tornou-se empresário vinhateiro e hoteleiro de sucesso, investiu empenhadamente na bolsa, e, em 2007, passou-se para o outro lado da História, apoiando a eleição, e depois a frustrada reeleição, de Nicolas Sarkozy. Pelo meio foi-se tornando um Olmo bem-sucedido na vida, arrivista e colérico, e de tal forma podre de rico que foi um dos alvos da lei Hollande destinada a taxar poderosamente os franceses que juntam muito mais dinheiro do que aquele que conseguem contar. Por isso se mudou para a Bélgica, onde a intervenção fiscal do Estado é consabidamente mais branda. E agora acaba de, apenas em duas semanas, obter de Vladimir Putin a nacionalidade russa. Pode ser que, nas suas queixas de contribuinte, tenha até algumas justificadas razões de queixa. Mas da imagem futura de egoísta, vira-casacas e oportunista já não se livrará mais. E no nosso imaginário partilhado deixou para sempre de representar uma certa «França francesa», heróica, democrática e combativa. Dá pena mas a escolha foi dele.

        Apontamentos, Cinema, Olhares

        Imaginem lá

        Lembro-me bem de todas as meias-noites da mudança de ano. Mesmo nos momentos difíceis, ou naqueles mais tristes, sem presságio de futuro ou com morte próxima, elas aconteceram em ambientes partilhados de bem-estar e de esperança. Até aquela, irrepetível, passada enregelado e à luz de uma vela, na casa clandestina, a comer fatias de um bolo-rei minorca misturadas com cerveja choca. Quando a televisão mudou os hábitos e, no tempo do regime velho, se passou a mostrar ao povo o réveillon dos ricos, de fato completo ou vestido de noite – exibindo alegria de circunstância entre cornetas de plástico, serpentinas, chapéus cónicos, pandeiretas e línguas de sogra –, havia ainda assim uns minutos para sair à rua e olhar os artifícios de fogo lá no alto, no céu. E para ouvir os cláxones dos carros, as pancadas nos tachos e nas panelas, os votos gritados de bom ano, os estampidos secos das rolhas, sob o clarão festivo da luz pública.

        Este ano, porém, e pela primeira vez, fui à varanda para dar de caras com um quase silêncio, a rua quase deserta, as janelas com as cortinas corridas, uns petardos pobres, isolados e sem graça alguma, a fazer de conta que assinalavam um momento especial. Engoli então a minha dose de passas com uma sensação de perda. Aquilo que estamos a viver faz-nos assim, mais tristes e semi-mudos, menos esperançosos, mais pobres e inevitavelmente inseguros, enquanto escutamos aqueles que escolhemos para organizarem a esperança de todos a prometerem-nos o pior. Se não para todo o sempre, dizem eles de olhos no chão, seguramente até ao fim das nossas vidas. E das vidas dos que vierem depois. Expiando, porque merecemos, o pecado de termos um dia confiado em que a cada trânsito do calendário se seguia um futuro. Um futuro melhor, mais feliz, imaginem lá. Imagine-se lá.

          Apontamentos, Democracia, Devaneios, Olhares

          A capital e o país nos anos 60

          A historiografia que se ocupa da fase final do Estado Novo tem enfatizado, entre as condições que conduziram à queda do regime, os fatores políticos, militares, diplomáticos, económicos e sociológicos que foram limitando a sua capacidade para se renovar ou mesmo para se manter de pé. Tem sido destacado, com toda a justeza, o papel das oposições organizadas na construção do espaço de resistência e favorável à sublevação que tornou possível, ou inevitável, o 25 de Abril. O que raras vezes tem sido mostrado é que essa dinâmica de mudança teve uma outra componente, ao mesmo tempo subterrânea e aparatosa, traduzida na importação de valores e de hábitos internacionais, já em curso nos países industrializados, na afirmação da uma nova cultura juvenil e na introdução de práticas de consumo capazes de abalar a fortaleza política e moral que, desde a sua já distante génese, o salazarismo e a propaganda do regime tinha procurado defender e apresentar como modelar. (mais…)

            História, Memória, Olhares

            Imagem, «real» e realidade

            Susan Sontag

            Os seis ensaios que este livro de Susan Sontag foram publicados entre 1973 e 1977 na New York Review of Books, e logo de seguida editados em conjunto, rapidamente convertidos em clássicos dos estudos sobre a semiótica da fotografia. Passando quase incólumes pelas últimas décadas, abordam um assunto – o lugar central que a fotografia detém na cultura contemporânea – que não só permanece inteiramente atual, como tem sido reforçado até no seu interesse devido aos progressos ocorridos entretanto no domínio da captação, da reprodução e da disseminação da imagem. Como seria de esperar pelo seu entendimento do papel da crítica, Sontag excluiu de todo uma observação estritamente técnica da prática fotográfica, que pudesse desligá-la do quadro social dentro do qual é produzida e consumida. Abrangentes e reflexivas, as observações que vai propondo dialogam constantemente, de um modo erudito e sedutor, com a filosofia, a sociologia, a história, a estética e a pintura, partindo sempre do princípio segundo o qual, atualmente, «tudo existe para terminar numa fotografia». (mais…)

              Artes, Fotografia, Olhares

              Olha, é Natal

              Porque já fiz o mesmo, estou à vontade para olhar agora como sintoma de uma qualquer doença, eventualmente infantil, o esforço de alguns, incréus ou intransigentes, para evitarem referir-se ao Natal como data primordial do nosso calendário. Escrevem então «natal» com minúscula, evitam desejá-lo «Bom» aos outros, preferindo falar de felizes «Festas», consideram a Consoada coisa para idosos semiadormecidos e a parafernália do presépio cristão como uma brincadeira de crianças, de ociosos ou de retardados. Para mim, um ateu graças a Deus convicto, o Natal, enquanto episódio simbólico fundador do cristianismo, conserva um lugar central na agenda da vida coletiva, na organização dos afetos partilhados, e, acima de tudo, na construção da identidade cultural desse Ocidente que escreveu a sua própria história e a sua tradição. Bem sei, como Roger Garaudy um dia escreveu, que ele, o Ocidente, «é um acidente», mas este deu-se, aconteceu, e agora estamos todos envolvidos nas suas peripécias e consequências. Por isso, é com pena e também com preocupação que vejo as nossas cidades e vilas quase sem as mágicas e habituais iluminações da época, as paredes exteriores das casas ainda mais nuas e frias, sem «Pais Natal» anafados e vemelhuscos a tentarem desesperadamente escalá-las, as lojas de prendas semivazias ou com produtos de saldo. E que encontro muitos milhares de compatriotas, tantos deles agora desempregados, sem o suplemento de esperança e de breve bem-estar que nesta altura lhes oferecia o magro mas quase sempre merecido e seguro… subsídio de Natal.

                Apontamentos, Etc., Olhares

                Les artistes

                Praticamente ninguém fala deles, embora não sejam invisíveis. A não ser quando falam deles próprios, em monólogo. Ou então para os seus. É fácil perceber o porquê desse silêncio e desse insulamento: a sua voz sem valor acrescentado, «inútil», é depreciada pelo discurso dominante, particularmente nestes tempos de «salve-se quem puder» que acompanham o naufrágio coletivo. É também ignorada por quem passa ao lado do universo infinito mas peculiar que habitam. Não «produzem valor», não são «competitivos», não lutam como lobos por um lugar ao sol, não têm como mola vital o desejo animal de sucesso e riqueza a qualquer preço. Não vivendo do ar, o reconhecimento de que precisam é principalmente o dos espetadores, o dos leitores, o do público que entra e sai. Porque, como cantava Ferré, Léo Ferré, «ce sont des gens d’ailleurs». Gente de outro lugar.

                São os que vivem da criação e das artes. Que apenas precisam de tempo e meios essenciais para escrever, para representar, tocar, montar espetáculos, pensar. Muitos sacrificaram «carreiras de sucesso», empregos estáveis, bem-estar material, até pequenas heranças, para habitarem, quase sempre com pouco dinheiro mas amor pelo que fazem, nesse universo que vive de e para a imaginação e a representação do mundo. Mas preferiram viver assim, sabendo que jamais seriam ricos, para fazerem aquilo de que gostavam. Viviam no entanto remediados pois, apesar de se alimentarem de trabalhos ocasionais e precários, sabiam que depois de um viria outro. Com tudo à sua volta a desabar, sem apoios para a sua arte, com menos público, ficaram agora mais sós e desamparados que nunca. Sem segurança material, reserva para a velhice, uma noção de futuro. Sujeitos a fazer qualquer coisa, menos aquilo que foi da sua escolha, para terem o pedaço de pão que lhes cabe. Num país para todos ainda mais triste e sem luz. Até que…

                Adenda: Já depois de escrito este post fui recuperar este.

                  Apontamentos, Artes, Etc., Olhares

                  Vargas Llosa e os livros

                  Em novembro de 1972 li pela primeira vez Mario Vargas Llosa. Sei precisá-lo porque na altura tinha o hábito infalível de escrever a lápis o lugar e a data de compra de cada livro e é essa a data que se conserva no meu exemplar d’A Conversa na Catedral. O romance, contendo um jogo de vozes e de sombras no Peru do tempo da ditadura do general Manuel Odría, fora lançado em Lima apenas três anos antes. E digo apenas porque a distância temporal entre os livros publicados no estrangeiro e as edições portuguesas, quando as havia, era então, por via de regra, muito maior. Para mim, a data é importante também porque daí para a frente, com oscilações de gosto, li uma grande parte do que o escritor peruano foi produzindo: todos os seus dezoito romances, vários dos seus livros de ensaio, as crónicas semanais no El País sobre temas da atualidade, e até o discurso de aceitação do Nobel da Literatura, ganho em 2010. Nem sempre concordei (ou concordo) com as suas posições políticas, mas sempre o olhei como uma referência moral, um grande contador de histórias e um homem corajoso, capaz de enfrentar tanto alguns tiranos quanto a lógica redutora do politicamente correto. E não tenho problema algum em declarar que foi por causa dele, e do debate que levou ao fim da velha amizade com Gabriel Garcia Márquez, que me tornei menos benevolente para com algumas das posições públicas do autor de Cem Anos de Solidão. (mais…)

                    Apontamentos, Cibercultura, Olhares

                    Os anjos indiferentes

                    Por estes dias em que permanecer indiferente, calar-se bem calado e fazer de conta que não é connosco, desinteressar-se do drama comum que estamos a viver, da política consciente e sistemática de destruição de um princípio de solidariedade que levou mais de um século a erguer, da ausência de uma ideia de esperança e de futuro para os mais jovens, do destino dos que trabalharam durante décadas para agora viverem no temor da miséria, da fome de quem nunca a tinha sentido e de mais fome ainda para quem já sabia que coisa era viver com quase nada, representa, cada vez mais, um ato deliberado de colaboração com o crime. A História mostra-nos, vezes sem conta, como foi fácil virar a cara para o lado oposto e deixar, por inação, que o pior acontecesse. Por ignorância, cobardia ou estupidez. Ou oportunismo. Ou, pior, por isso tudo e ainda por se assumir a convicção de que existe algures uma figura providencial à espreita, capaz de pôr todas as coisas «no sítio» e de instaurar um tempo de tranquilidade que assistirá à recomposição da «ordem natural» da existência humana. Com os mais ágeis a viverem a sua vida boa e higiénica – laborando, orando, amando os pobrezinhos – e os outros, à distância, a pedirem pares de peúgas, camisolas com defeito, latas de atum ou sopa de grão. E, por isso, que não é pouco, a ficarem atentos, veneradores e obrigados. Quietos e apáticos no seu lugar de escravos. Ou então de auxiliares de quem manda, anjos decaídos de uma ordem que ultrapassa o humano porque emanada de entidades transcendentes. Como Deus – um deus castigador, é suposto – ou a mecânica sobrenatural dos mercados financeiros.

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                      Crime na estrada

                      Já conheci um mecânico de automóveis, por acaso ainda um meu parente, que desmontava, reparava e lubrificava motores, testando-os depois no meio do trânsito em hora de ponta e recorrendo com insistência ao uso da buzina, sem jamais ter possuído carta de condução. Agora pude ver mais longe na lógica do empreendedorismo sem barreiras e do crime consciencioso aplicado aos assuntos do asfalto: na LER deste mês, o fazedor de livros Vítor Silva Tavares (ele não gosta que lhe chamem editor e eu faço-lhe a vontade) conta ter trabalhado em Angola como «engenheiro» examinador dos candidatos a condutores encartados… sem sequer saber guiar.

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                        PCP: esperança e abertura

                        Em reportagem publicada no Diário de Notícias a propósito do início do XIX Congresso do PCP, a jornalista Fernanda Câncio descreve uma parte do que ouviu a alguns novos militantes para explicarem a sua adesão. Numa curta frase – «acredito que a política que o PC defende pode restituir sonhos» – um deles terá realçado, provavelmente sem de tal se aperceber, aquela que continua a ser a essência da capacidade de atração do partido: o lugar que este mantém, reforçado agora em contexto de crise económica, social e moral, como espaço partilhado de crença, capaz de projetar na vida de muitas pessoas uma dimensão de esperança. Como uma experiência de resistência, de trincheira, da qual se espera partir um dia à conquista da Terra Prometida da justiça e da igualdade. No entanto, pouco parece importar, à generalidade dos entrevistados, o conceito de democracia que deve ser aplicado a esse futuro: parte-se do princípio de acordo com o qual esta em que vivemos é má, é «falsa», para alguns «burguesa», e outras experiências, com uma base histórica que julgam «ao serviço dos trabalhadores» – a da antiga União Soviética e dos Estados «do socialismo realmente existente», a da China, a de Cuba e, pasme-se, por vezes a da própria Coreia do Norte – estarão bem mais próximas daquela que pode ser a boa, a «verdadeira». Aquela pela qual vale a pena lutar. (mais…)

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                          Sobre o fascismo na América

                          «Estamos realmente em guerra – uma guerra longa, global, uma guerra pela nossa civilização», mas também «para salvar a nossa democracia.» A ensaísta e consultora política americana Naomi Wolf deixa estas palavras como um aviso e um apelo no último capítulo de O fim da América. Mas afinal de contas que guerra é essa e que padrão de democracia é este, merecendo ser salvo e que se combata por ele? A guerra, para a autora, ocorre dentro dos próprios Estados Unidos da América e é travada para que os fundamentos da democracia, propostos durante o processo de constituição da Nação pelos seus Pais Fundadores, não sejam esmagados por uma insidiosa «viragem fascista», capaz de replicar, e não apenas por analogia, a experiência que levou à queda da Alemanha da República de Weimar e à fatídica emergência do Terceiro Reich. Já a democracia da qual fala a ensaísta tem a forma daquela que, recorrendo à Carta dos Direitos, à Constituição, ao habeas corpus e a uma continuada tradição de diversidade e acolhimento, projetou a utopia de liberdade e de igualdade presente no momento de formação da nação americana e conservada ao longo de uma grande parte da sua história, definindo o essencial da sua identidade profunda. (mais…)

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                            A norte do paralelo 38

                            Apesar do condicionamento endémico de stocks com o qual convivem hoje as nossas livrarias, não deve ser difícil encomendar alguma leitura sobre a República Democrática Popular da Coreia, a remota Coreia do Norte. Encontro três traduções mais ou menos recentes: Os Aquários de Pyongyang, de Kang Chol-Hwan (Hespéria), «Aqui é o Paraíso!», de Hyok Kang e Philippe Grangereau (Ulisseia), e A Longa Noite de um Povo, de Barbra Demick (Temas & Debates). Todas incorporam depoimentos de norte-coreanos que nos dão a ver o caráter absoluto, extremo, implacável, da experiência totalitária e da ditadura paranoide, supostamente comunista, que condicionam e subjugam o seu povo e o seu país.

                            Existe sempre um público para a exposição do horror e do sofrimento dos outros, mas tal não é necessariamente um sinal de perversão. Afinal, quem leia obras desta natureza não pode evitar uma relação de repulsa diante de tanto sofrimento e de tanto negrume. Mas a atração por esse tipo de testemunhos vem também do isolamento extremo do país e da dificuldade que todos sentimos de cada vez que procuramos obter informação credível, não contaminada pela fantasmagoria norte-coreana ou pela contra-propaganda. De facto, estas leituras ajudam-nos bastante a reduzir a distância, recolhendo experiências que, em regra, os noticiários, mais curtos e forçosamente truncados, acabam sempre por manter na sombra. (mais…)

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                              A China que aí vem

                              O mundo concebido de acordo com a ordem americana, que prevaleceu a partir de 1945 e saiu reforçado do termo abrupto da Guerra Fria, encontra-se em declínio. Aparentemente, tudo aconteceu com enorme rapidez. Pela viragem do milénio ainda era possível – os conselheiros de George W. Bush cultivaram tal ideia no início do seu primeiro mandato – conceber os Estados Unidos da América como «hiperpotência», e, desmembrada a União Soviética, falar de «unipolaridade» para descrever o que parecia ser uma nova e única forma de poder, projetada à escala mundial com sede declarada em Washington. Na sequência do 11 de Setembro de 2001, a imposição da segurança global através de uma pax americana parecia em andamento. O que pretende demonstrar Quando a China mandar no mundo, do jornalista e académico britânico Martin Jacques, é que esta ideia representou um logro e que, na verdade, estamos a viver uma mudança histórica apenas iniciada mas já destinada a transformar irreversivelmente o planeta. Dela derivará uma nova ordem, tendo a China como eixo do poder económico, da força militar e, provavelmente, do equilíbrio político internacional. (mais…)

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                                A House Is Not A Home

                                Um amigo que sem querer perdi algures disse-me uma vez que a música mais noturna que conseguia conceber era a de Bill Evans. Mas nunca se explicou, não teve tempo ou alguma coisa nos separou antes desse tempo chegar. Talvez ele a associasse, imagino-o agora, à sombra longínqua da cave nova-iorquina onde nunca estivera, ao ruído dos copos cheios e vazios por cima das conversas que ouvira em filmes, ao fumo denso dos cigarros exibidos nas capas dos discos. Nunca o contrariei, embora tivesse uma outra percepção, bem mais diurna e próxima do piano de Bill. Tardes quentes da infância com os febrões próprios da infância. O termómetro a subir e os lençóis frescos, mudados de fresco. Uma mosca a espiralar. A luz filtrada pelas cortinas da casa que um dia foi a minha. Os passos suaves da minha mãe na escada exterior. A porta entreaberta e, vindo lá do fundo do fundo do corredor, aquele timbre singular no velho rádio de onda média. Um Bill febril a chegar com a luz do dia.

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                                  25 livros para 25 anos

                                  A LER propôs-me para o número de Novembro que destacasse 25 livros de autores portugueses de diferentes géneros publicados ao longo dos últimos 25 anos. Precisamente aqueles que a revista mensal do Círculo de Leitores leva de vida. Eis a minha resposta ao desafio.

                                  Encontrar 25 títulos portugueses que tenham deixado uma marca visível nos meus últimos 25 anos de vida de leitor não foi fácil. Vivendo dos livros, em longas temporadas para eles, custa um tanto, e pode ser um exercício de injustiça, escolher uns porque supostamente são melhores que outros. A solução foi encontrar um critério suficientemente amplo, maleável, mas ao mesmo tempo razoavelmente objetivo, que me deixasse fazer a escolha, sem com ela, ao excluir obras que li com prazer e sublinhei com proveito, sentir que estava a ser arbitrário. Separei assim alguns livros – sempre mais obras do que autores – que em algum momento determinaram um salto na perceção de interpretações, de tempos, de narrativas, de géneros que eles ajudaram a descobrir ou a ver de outro modo. (mais…)

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