Luta política e teatro da rua

Uma nota sobre a manifestação de ontem, convocada pela CGTP três dias antes do movimento nacional «Que se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas de Volta!», de 15 de setembro, e à qual aderiram entretanto outras organizações e movimentos. Não pude de todo estar presente em Lisboa, mas apoiei a convocatória, ajudei a divulgá-la e tive muita pena de não ter podido fazer parte da multidão que encheu o Terreiro do Paço. Ainda assim, segui-a diretamente ou em diferido através das televisões, dos jornais online, dos blogues, do Facebook e do Twitter, tendo depois conversado com pessoas que estiveram presentes. Por isso, a minha leitura não deriva apenas de «ouvir falar». Se bem que, nos tempos que correm, o que se ouve e o que se à distância possa ser, muitas vezes, mais completo do que aquilo que podemos observar na escala direta e calorosa da presença física.

Como se esperava, esta manifestação teve características políticas, sociológicas e formais muito diferentes daquelas que percorreram o país no 15 de setembro. Encostando então o governo às cordas, forçando-o a reconsiderar na imposição da TSU e demonstrando que, ao contrário do que prematuramente constava, a paciência e a obediência da maioria dos portugueses não eram eternas e infinitas. Do ponto de vista político, naturalmente, esta ultrapassou a dimensão da revolta em estado puro a que assistimos duas semanas antes, assumindo uma orientação mais voltada para algumas das opções da esquerda, em particular as do PCP (com um lugar na organização dada a sua implantação sindical), as do BE e as dos seus aliados que as circunstâncias impuseram. Por isso, apesar de ter um sentido formalmente unitário, aqui já foi visível a expressão de propostas pré-estabelecidas que não poderiam ser aceites pelos setores mais moderados, ou mesmo que nada têm a ver com a esquerda tradicional, mas que por raiva ou desespero desceram à rua na outra.

Como consequência, o número de pessoas presentes diminuiu – apesar de ainda assim ser bastante elevado – e foi visível uma alteração do espetro sociológico, com um volume muito maior de trabalhadores assalariados e a diminuição da presença da classe média. Que em boa parte jamais se reveria no tratamento datado, e sociologicamente restritivo, dado aos manifestantes no seu discurso por Arménio Carlos, o secretário-geral da «nova» CGTP, ao chamá-las repetidamente, sob a influência da eterna langue de bois, de «camaradas, amigos e amigas». Aliás, a assumida redução do arco social foi desde logo marcada pelo anúncio de uma greve geral sem ao mesmo tempo se propor uma aproximação à outra central sindical, com quem nesta altura dramática será imprescindível alguma unidade na ação. E sem sugerir saídas políticas concretas para a crise (sim, também é essa uma função dos sindicatos). Por outro lado, o formato foi substancialmente alterado, desde logo pela intervenção das organizações sindicais tradicionais, que disciplinaram o desfile, dando forma à maioria dos seus cartazes e palavras de ordem, diminuindo, em consequência, o aspeto, bem mais assustador para quem manda, contido na força e na espontaneidade das demonstrações, pacíficas mas incendiárias, de há duas semanas.

Nesta segunda quinzena de setembro ficou demonstrado que aquilo que faz tremer o governo é a unidade e a ameaça de desobediência assumidas pela maioria dos cidadãos que se opõem às suas políticas. Porém, está historicamente provado que esse descontentamento público só pode ter como consequência lógica uma alteração radical da situação política se for apresentada, de facto, uma alternativa de governo apoiada numa maioria sociológica da qual a rua é um eco e um sintoma. Por isso estas demonstrações, que alienam alguns setores de descontentes e são num certo sentido demasiado enquadradas no terreno, apesar de importantes se mostram claramente insuficientes para darem a volta à ordem injusta e voraz que se desenha. Os nossos vizinhos aqui do lado, sob muitos aspetos apesar de tudo em situação menos gravosa do que a nossa, já o perceberam há semanas e têm feito da rua o teatro aberto da sua rebelião. Não apenas um eco do que se discute e resolve no interior do sistema democrático representativo. Ele também, nesta altura, a ser poderosamente questionado nas insuficiências e no afastamento dos cidadãos em que se foi deixando acomodar.

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