Arquivo de Categorias: Música

«Portugal, one point»

Madalena Iglésias

Pela década de 1960, ambém eu fazia parte daquela maioria de portugueses para os quais o Festival da Eurovisão representava um momento relevante das suas vidas. Uma diversão rara, num quotidiano onde elas escasseavam, e, em parte por influência do canal único da televisão, uma espécie de fórum internacional de transcendente importância. Dos poucos nos quais Portugal era ouvido, ainda que apenas sob forma canora. As expectativas eram sempre grandes e alguns jornais traziam até umas tabelas para os seus leitores irem anotando, ao longo do serão, a votação dos diversos júris nacionais. No que me dizia respeito, todos os anos agarrava num lápis, numa régua e numa folha de papel quadriculado, e desenhava uma outra tabela, para a qual convocava a atenção dos adultos que se juntavam à frente do televisor na esperança de vibrarem com uma cançoneta como vibravam com os golos europeus do Eusébio. E todos colaboravam, não sei se por condescendência se com verdadeiro empenho.

O fim da noite, como se sabe, era sempre tristonho e desconsolado, com a cantoria nativa invariavelmente entre os piores classificados. E se o último lugar jamais aconteceu, foi porque o júri madrileno acamaradava connosco e, por obra e graça da solidariedade franquista, nos dava os pontos suficientes para escaparmos à tangente da humilhação das humilhações. A mágoa era enorme e recordo-me muito bem de uma vez ter até chorado de raiva e impotência. O que servia de consolo era que no dia seguinte os jornais faziam coro com a cólera dos portugueses e davam a entender que a pátria tinha sido enxovalhada por uma qualquer intriga da responsabilidade conjunta do comunismo internacional e das ingratas social-democracias europeias. A verdade é que ainda hoje, sempre que se aproxima mais uma das monumentais exibições de kitsch nas quais se transformou o Festival – nesta precisa noite apresentado aos berros, em inglês, a partir da outrora funesta Moscovo – experimento uma secreta esperança revanchista, indelével cicatriz deixada na alma pelo oxigénio salazarista: «Será desta? Será desta?»

    Apontamentos, Memória, Música

    Mahler on the beach

    Gustav Mahler

    Não sou mahleriano suficientemente conhecedor das maquinações da arte para reconhecer sem pestanejar qualquer intérprete ou leitura da obra do boémio. Apenas um melomaníaco suficientemente tenaz e q.b. treinado de ouvido para separar o irrepetível, o excepcional, do que é apenas técnica, competência e gosto da arte. Das versões que conheço da Sinfonia No. 2, «Ressurreição», de Gustav Mahler, aquela que me chega agora aos ouvidos, com o venezuelano da moda, Gustavo Dudamel, à cabeça da Orquestra Sinfónica Juvenil Simón Bolívar, destaca-se como espantosa e absolutamente única. Uma música ecuménica, jogando a todo o instante com o risco, com uma vibração cantante, latina, que dilui o eco sombrio e funesto, em regra associado ao trabalho do compositor, que tem condicionado a maioria dos seus intérpretes. Notável numa peça que possui a morte e a possível eternidade da vida como motivo central. O encontro feliz com um Mahler estival. Eu gosto muito, alguns mahlerianos provavelmente não.

      Etc., Música

      Um sentido para a esquerda

      Nuages

      Publicado originalmente na revista LER de Março

      Celso Cruzeiro é reconhecido principalmente pela sua actividade como advogado e por ter sido um dos rostos principais da «crise estudantil» coimbrã de 1969. Conhece-se-lhe o activismo constante em alguns dos combates da esquerda geralmente não-alinhada, bem como o interesse por uma leitura interpretativa dos episódios de militância pelos quais passou, mas era-lhe até agora ignorado o gosto persistente e actualizado por uma reflexão teórica aprofundada sobre as circunstâncias, as coisas e as causas da esquerda. Este A Nova Esquerda retoma no título a designação utilizada para definir politicamente alguns dos movimentos radicais das décadas de 1960-1970, mas nem por isso se ocupa em excesso com uma busca retrospectiva das referências que naquele tempo moldaram o percurso do autor. Ao invés, a actualização das leituras e dos debates aos quais este se reporta conferem ao livro uma dimensão exemplar, rara entre nós, de adequação do reconhecimento da mudança do mundo ao pulsar mais contemporâneo do pensamento crítico e da intervenção política.

      Esta é, no entanto, uma daquelas obras das quais é habitual dizer-se que valem pelo todo. Não é possível lê-la de forma fragmentada, pois resultaria quase indecifrável um discurso erudito que não se compraz com sublinhados ocasionais. Trata-se de facto de um texto denso, consistente, resultante de um trabalho aturado de cerca de treze anos, através do qual Celso Cruzeiro conduz o leitor por quatro inquietações com correspondência noutros tantos capítulos. A primeira delas diz respeito à busca de um sentido, no domínio da epistemologia das ciências e da reflexão filosófica, para um mundo que hoje, mais que nunca, se revela instável e desconforme os grandes sistemas explicativos da modernidade colapsados a partir do segundo pós-guerra. A segunda ensaia um trabalho de compreensão da realidade actual do capitalismo, da renovação das suas vias e métodos, das consequências da ordem injusta que materializa para a vida das pessoas comuns. A terceira inquietação prende-se com a busca de indícios que permitam entrever a construção de uma teoria revolucionária capaz de fazer frente às novas realidades, à desesperança e às carências impostas pelo actual processo de mudança histórica. E, por fim, o quarto problema conduz o autor ao vasculhar das consequências mais nefastas da presente ordem económica mundial e do aparecimento de algumas das vozes e das tendências capazes de lhe fazerem frente no terreno.

      Quando, a dado momento, recorre à voz do economista e filósofo neoliberal Friedrich von Hayek onde este declara não existir actualmente «critério algum através do qual nós possamos descobrir o que é socialmente injusto», Cruzeiro aponta justamente para o inverso: para a necessidade de perceber as causas da injustiça de modo a que se torne possível combatê-la e aniquilá-la. Uma obra marcada, por isso, mais pela esperança que pelo desencanto.

      Celso Cruzeiro (2008). A Nova Esquerda. Raízes teóricas e horizonte político. Porto: Campo das Letras – Âncora Editora. 250 págs.

        Música, Opinião

        Flamejante

        Pet Shop Boys

        Já desisti de tentar explicar por que razão um sujeito de meia-idade como eu, com uma educação clássica, responsabilidades profissionais e um problema com o excesso de glicemia no sangue, gosta tanto da música pop descarada e adolescente dos agora já meio-avelhados Pet Shop Boys. Aqueles dois tipos de country town, nascidos na Inglaterra deprimida dos anos 50, que desde os eighties andam por aí a colar à pop as chamadas «letras inteligentes». Eu próprio não percebo a origem da atracção. Evoco só antigas viagens matinais a caminho da praia, com o Neil e o Chris a rodarem no leitor de cassetes do carro em segunda mão. E sei que um dia gostaria de viver no universo epopeico e elementar que durante todo este tempo os rapazes da loja dos bichos me têm feito imaginar.

        «King of Rome» é de Yes, o álbum já de 2009:

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          Memória, Música, Olhares

          ♪ Angels of Ashes

          Scott Walker

          Fim de tarde com a chuva que regressa com o fim de Fevereiro. Agora sem televisão e sem notícias, sem ruído, sem murmúrio que não o de um velho álbum, 4, de Scott Walker. Quase uma cantiga de embalar, nua mas enfática. «The Angels of Ashes/will give back your passions/Again and again…huumm/Their light shafts/will reach through the darkness/and touch you my friend…huumm huumm». Scott tónico, vintage de 1969.

          [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2009/02/04-scott-walker-04-angels-of-ashes.mp3]
            Apontamentos, Música

            ♪ Last Goodbye (um post triste)

            escarletxi

            Miss Johansson, a moçoila trigueira que impressiona favoravelmente 90% dos homens de meia-idade (e 89% dos outros), afinal canta um bocadinho pior ainda – ah, aquele «it’s over, it’s over» em re sustenido maior! – do que cantava outrora a Dra. Marilyn. Estarei errado?
            [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2009/02/17-scarlett_johansson-last_goodbye.mp3]

              Devaneios, Etc., Música

              ♪ É ou não é?

              Rui Reininho

              O Rui Reininho é, admito, um rapaz da minha geração. Ou é um rapaz, ponto – . –, pois sou ligeiramente mais velho e, posso apostar duas minis, enquanto ele aprendia a soletrar já eu multiplicava as dezenas. Talvez por isso me amolece ouvi-lo agora, do lado de cá do milénio, com rugas, cabelos brancos e a voz completamente fanada. A arfar quase tanto quanto eu quando subo três lanços de escadas. Transmutando uma cantiga parvinha e preguiçosa (as Doce, lembram-se?), numa canção pop triste e enorme. E 100% nocturna. É ou não é?

              Música: Rui Reininho – Bem Bom [Companhia das Índias]
              [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/12/04-rui_reininho-bem_bom.mp3]

                Apontamentos, Devaneios, Música

                ♪ Índios de Natal

                Que me absolvam os proprietários e as titulares dos restantes, mas os mais originais votos de ditoso Natal que recebi do mundo-dos-blogues chegaram-me da autora de amor e outros desastres. Na pele de uma bela ária do Montezuma, de Vivaldi. Temendo desiludir quem considera «interessantíssimo» aquilo que por aqui vou escrevendo – mas como, se me aborreço mortalmente a mim próprio? – retribuo, agradecido embora fora do tempo, com este outro excerto, «orientalista» em sentido contrário, das Indes Galantes de Jean-Philippe Rameau.

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                  Etc., Música

                  Uma canção de Natal

                  Bing Crosby

                  Uma das mais enfadonhas canções de Natal – que escuto sempre com uma certa sensação de entorpecimento físico e mental – é também uma daquelas que mais continua a ouvir-se como fundo sonoro dos corredores dos pequenos, médios e grandes centros comerciais para o mês de Dezembro. Tanto tempo depois de surgir, em 1942, no musical Holiday Inn (um filme só com brancos que a televisão portuguesa de canal único passou dezenas de vezes), White Christmas, de Irving Berlin, permanece, na voz branda e xaroposa de Bing Crosby – ou em outras mil versões –, como «sinónimo de Natal» e um dos temas fora do tempo que, a par da Silent Night ou de Let It Snow, somos forçados a ouvir até à náusea nas voltas consumistas que a quadra nos obriga a dar. Nada tenho contra o Natal e o seu «espírito», mas, honestamente, preferia vivê-los ao som de Paranoid.

                    Apontamentos, Devaneios, Música

                    ♪ Para sempre

                    Love

                    O objectivo de uma cadeia voluntária que circula por aí é achar aquilo que não existe: «a melhor canção de amor de sempre». Porque todas as canções de amor são como todas as cartas de amor: um pouco estúpidas, sim, como dizia o menino Fernandinho, e fugazes, mas «para sempre». Por isso são quase todas boas. Avanço com uma fiftie, febril e imortal. Podiam ser outras mil.

                    Paul Anka – Put Your Head on My Shoulder [aumentar bastante o som]

                      Música, Olhares

                      ♪ Nocturna

                      Marianne Faithfull

                      Easy Come, Easy Go é o seu mais recente álbum, acabado mesmo de editar. Há já muitos anos que Marianne Faithfull deixou de ser a miúda em trajecto borderline que em 1965 cantarolava As Tears Go By como se fosse dissolver-se ali mesmo. Sobreviveu a várias tormentas, a maldita, e aos 62 continua a sussurrar-nos coisas a meio da noite.

                      Aqui Children of Stone e Black Coffee

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                        Música, Olhares