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Isto quer dizer alguma coisa

Deolinda

Provavelmente estará tudo dito sobre «Parva que sou», dos Deolinda. Pró, contra e assim-assim. Eu sou pró porque há muita coisa contra a qual é preciso estar. Quem já não é, ou jamais foi, capaz de pensar as dinâmicas do protesto, ou de se indignar com o que vai mal e proclamá-lo sem rodeios, inventa argumentos para desqualificar a canção. Diz que «Parva que sou» tem uma estrutura pobre, simples, sem arranjos elaborados, por exemplo. Ah, pois tem, claro que tem, mas é aí que está em parte a origem da sua pujança e da exaltação que tem despertado. A arte pode ser complexa e ter uma dimensão subversora, como toda a gente sabe, mas em democracia uma canção de intervenção, que é aquilo que esta é, tem necessariamente de ser assim simples, límpida, «dizendo coisas» preto no branco como as diz um panfleto. Não pode ser murmurada. Precisa ser directa para agitar. Diz-se também, por exemplo, que é demagógica quando declara que «para ser escravo é preciso estudar». Como se isto traduzisse um apelo ao menosprezo do valor social do ensino. Só quem já não tem pinga de capacidade para perceber os caminhos da insegurança, ou vive fechado no seu mundinho tutelado, é incapaz de entender aquilo de mau que passa pela cabeça de quem entra nas universidades com o futuro já adiado sine die e o trabalho precário ou o desemprego no horizonte. Não estive no Coliseu do Porto e só ouvi «Parva que sou» através do YouTube. Mas há muito que não pressentia por cá uma cumplicidade tão grande entre a palavra cantada, o público que a envolve, e o mundo agitado e injusto que os aguarda lá fora. De certeza que isto quer dizer alguma coisa.

    Atualidade, Música, Olhares

    Chuck B. Goode

    Desde que começou a tocar em público e gravou o primeiro hit da história do rock ’n’ roll – «Maybellene», de 1955, ainda com um costela nos blues – Chuck Berry viu nascer, crescer, vencer, arruinar-se, trair ou morrer sucessivas gerações de rockers. Ontem, aos 84 anos, depois de uma hora de concerto em Chicago, sentiu-se mal, desmaiou e bateu com a cabeça no piano em que tocava. Assistido no local, retomou o concerto, que abreviou por se sentir «um pouco cansado». Já não se fabricam motores assim. [Aqui CB com Keith Richards em «Roll Over Beethoven»]

    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=YeYF0qZBhYY[/youtube]
      Apontamentos, Música, Olhares

      Górecki

      Acaba de morrer na sua cidade natal de Katowice o polaco Henryk Górecki (1933-2010). Um dos compositores contemporâneos – navegando ao longo da vida entre o minimalismo e um certo neo-romantismo – que me são claramente mais queridos. Relembro-o aqui no quase popular andamento «Lento e Largo Tranquillisimo» da Sinfonia No. 3. A «Sinfonia das Canções Tristes» concebida como uma homenagem sentida às vítimas do Holocausto.

      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=chwDoQuD77g[/youtube]
        Memória, Música

        U2? Not me.

        U2

        No princípio gostei moderadamente da música dos U2. E ainda oiço bem alguns dos temas mais antigos, saídos dos primeiros álbuns. Boy (1980) e October (1981) são rudes, ingénuos, verdadeiros como a primeira bebedeira. War (1983) já integra a intervenção política como parte da arte do grupo (oiça-se o épico «Sunday, Bloody Sunday»). Por sua vez, The Unforgettable Fire (1984) é um álbum mais elaborado, quase adulto, com a produção decisiva de Brian Eno e Daniel Lanois a sublinhar as melodias e a guitarra de The Edge a moderar o protagonismo de Bono. The Joshua Tree (1987), prolonga-o em parte, sendo o último que ouvi com algum prazer. A partir do disco seguinte, Rattle And Hum (1988), a banda «americaniza» a produção, globalizando-se e tornando-se o «supergrupo dos megaconcertos» que hoje conhecemos (Achtung Baby, de 1991, e blá-blá por aí fora).

        Como acontece tantas vezes neste terreno movediço da música popular, a fixação numa sonoridade repetida e sem chama tornou-a mais facilmente reconhecível, fazendo-a chegar a um sector de público com menos interesse pelo áspero e pelo autêntico. E com maior vontade de ouvir aquilo que já ouviu e que espera continuar a ouvir até à eternidade. Os U2 são agora um mero produto de mercado, como um Big Mac ou a Lady Gaga, e até a sua «rebeldia» foi completamente incorporada na máquina de fazer dinheiro que promove a imagem industrial de um «grupo de causas» com a mesma facilidade com que num mercado se vendem t-shirts do Che ou medalhinhas com a efígie do papa ou de Lenine.

        É esta a banda que vai estar em Coimbra nas noites de 2 e 3 de Outubro, em concertos, esgotadíssimos há quase um ano, com bilhetes a 125 euros (entretanto inflacionados para 200 ou mais). Por mim, que moro a dez minutos do local do crime, vou passar ao lado: a música recente dos U2 não me interessa de todo, as versões antigas são tocadas em piloto automático e não sou suficientemente basbaque para me deixar impressionar com a «aranha» e a pirotecnia megalómanas que a magnânima Câmara da cidade ajudou a financiar com a módica quantia de 200.000 euros. Além disso, não me apetece encontrar-me com o Pedro Passos Coelho ou algum clone seu. «É uma coisa que me chateia, pá.»

          Apontamentos, Música

          Do Dr. Goebbels a Eminem

          música

          Acaba de sair por cá o número de Julho-Agosto da revista literária Books (estranho nome este para revista francesa, sinal definitivo de mudança). Domina-o um dossiê, «Le pouvoir de la musique», no qual se enunciam e debatem muitos dos problemas relacionados com a dimensão social e política da produção e dos consumos musicais. Recorda-se, por exemplo, que de Goebbels e Jdanov a Khomeini e aos talibãs, «o poder da música não deixou de preocupar os arautos do Estado totalitário», cujo coração balançou sempre entre o controlo e a interdição. Refere-se a propósito aquilo que Goebbels escreveu numa carta dirigida a Wilhelm Furtwängler, então maestro-titular da Orquestra Filarmónica de Berlim: «A música deve preservar a sua forma original e nenhuma inovação pode ser admitida, uma vez que ela transporta sempre consigo grandes perigos para o Estado. Sempre que as formas musicais se alteram, as leis fundamentais do Estado mudam também». Descreve-se também de que forma o estalinismo se serviu das obras de Prokofiev e de Chostakovitch para ao mesmo tempo as condicionar, ou como foi a rumba «domesticada» em Cuba pelo castrismo. Fala-se do modo como a música serviu para humanizar um pouco a vida e a morte em alguns dos campos de concentração nazis. Viaja-se até às origens do reggae e do seu potencial subversivo, esclarecendo-se ao mesmo tempo de que maneira o disco-sound serviu na década de1970 a afirmação da identidade gay e como, em menos de vinte anos, o hip-hop passou de cultura de rua a modalidade de contracultura e depois a instrumento do capitalismo global. Mas há ainda bastante mais, em dezenas de artigos nos quais por vezes se abre espaço à controvérsia.

            História, Música

            Pequenos pequenos nadas

            Brel e Gitanes

            Depois do anterior post sobre o desaparecimento dos cigarros Gitanes do mercado, recebi uma dezena de mails sobre o assunto. Chegaram todos de pessoas que não conheço do mundo material, nem elas a mim, com as quais jamais me cruzei, mas que se aproximaram na tristeza solidária e na revolta por verem desaparecer esse momento especial que era ao mesmo tempo um hábito e um ritual. Agora eclipsado por troca com sensaboria normalizada de um tabaco claro e sem alma. Num dos mails recebidos evocava-se um aspecto crucial que me escapara no post: «aquela sensação de ter um Gitanes no meio dos dedos, dada a sua espessura única». É realmente verdade que essa ausência pesa também: aquele milímetro a mais de circunferência, suficiente para conferir ao momento uma robustez que se impunha na experiência do fumador e na forma como este concebia o seu lugar social, vincando a margem de diferença em relação aos vulgares consumidores de tabaco light. E como são importantes para nós, certas vezes, estes pequenos pequenos nadas.

            Jacques Brel, fumeur de Gitanes – J’en appelle
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              Apontamentos, Etc., Memória, Música

              Do estado a que isto chegou

              GAC

              Fui dos que trautearam, cantarolaram, tamborilaram, os álbuns do GAC (Grupo de Acção Cultural). Em 1975-1976, na época da primitiva edição dos dois primeiros álbuns, com José Mário Branco a adestrar os arranjos – e já como GAC-Vozes na Luta –, a sua música manteve-se como uma excepção de elevada qualidade no que respeitava às harmonias, à escolha das vozes e dos músicos, ao trabalho de estúdio, sobretudo se comparada com uma «canção de intervenção» que quase sempre privilegiava a «mensagem» e a redução jdanovista do gosto do público destinatário ao menor denominador comum. Foi popular, sim, mas sem se tornar populista ou armar-se em popularucha. Os dois últimos álbuns perderam alguma da frescura inicial, mas guardaram ainda boa parte do cuidado com o feitio e com a intenção militante. A reedição em CD da discografia do grupo, que acaba de acontecer, vem comprovar essa originalidade e essa pujança. Significativo também é que as letras – laboriosamente panfletárias e inequivocamente anticapitalistas – pouco envelheceram. O que é um bom indicador do estado a que isto chegou. E de que a cantiga ainda pode ser uma arma.

                Atualidade, Memória, Música

                Beatlemania

                The Beatles

                «Attraverso la loro musica quei quattro ragazzi di Liverpool, splendidi e imperfetti, sono stati capaci di leggere e di esprimere i segni di un’epoca che a tratti hanno persino indirizzato, imprimendovi un marchio indelebile.»

                Lembro-me bastante bem. Há quarenta e quatro anos, as minhas pré-borbulhas regurgitavam de emoção porque John Lennon proclamara serem os Beatles mais famosos do que Jesus Cristo. Não sabia para que servia uma afirmação daquelas, mas soava-me bem: queria dizer que «nós, os jovens» estávamos a caminho de tomar o mundo, e que o Nazareno escanzelado e barbudo, já na altura com uns provectos 1966 anos, estava decididamente «velho» e deveria aposentar-se. Claro que a Igreja Católica Apostólica Romana não reagiu de forma tão entusiástica e resolveu tratar mal as Quatro Cabeleiras do Após-Calipso. A partir dessa altura, quem assobiasse «Strawberry Fields Forever» candidatava-se a viver até à eternidade ao lado de Lúcifer, com os pés nus bem assentes num tapete de brasas.

                Pois agora, tanto tempo depois, e com dois dos Beatles já arrumados e os outros de mala aviada, L’Osservatore Romano decide prestar tributo às suas «belas melodias», concedendo o seu perdão aos antigos guedelhudos. Procura mostrar-se convincente: «sim, eles drogavam-se […] e tiveram vidas dissolutas», mas agora «ao ouvir as suas músicas, tudo isso parece distante e sem importância». A Igreja católica passou assim a amar os Fab Four e as «jóias preciosas» que são as suas músicas. E já quase podemos imaginar o Papa, de iPod e earphones nas Santas Orelhas, a bater o pé com o seu sapatinho vermelho Prada enquanto cantarola «Yesterday». Não sei porquê, este aggiornamento 2.0 soa-me a farisaísmo. Sim, porque a melhor forma de Roma se penitenciar por mais esse «erro de percepção» não é, de novo, batendo no peito em acto de contrição. É, ou deveria ser, evitando repetir a falta de capacidade para perceber na devida altura, de forma aberta e tolerante, os anseios, as expectativas e os problemas do mundo actual. E desses continua a Igreja católica, frequentes vezes, a procurar esquivar-se. Como o Diabo da cruz.

                  Apontamentos, Devaneios, Memória, Música

                  Vozes da Revolução

                  Silvio Rodriguez

                  Depois do cantautor Pablo Milanés é agora a vez de Silvio Rodriguez. Não se passa mesmo nada em Cuba para além dos murmúrios de uns quantos «mercenários do imperialismo», como se esforçam por fazer-nos acreditar os patéticos publicistas da Revolución traída e da ditadura?

                  Nota posterior importante – Como fui uma das pessoas enganadas pela informação que me chegara acerca da posição de Silvio Rodriguez, não posso deixar de apontar agora para o post «Diálogos Cubanos», no qual Joana Lopes oferece alguns links importantes para um mais completo esclarecimento do caso.

                    Atualidade, Democracia, Música

                    Un jour, un jour [na morte de Jean Ferrat]

                    Jean Ferrat

                    PLAY Un jour, un jour

                    No inverno de 1971-1972 (ou seria no seguinte?) fui algumas vezes ao Porto em missão de risco. O perigo era real (a prisão, talvez a tortura – não, não era pouco), mas apesar da possibilidade a convicção era mais forte. O objectivo era trabalhar na ligação orgânica com estudantes da mesma área e os encontros obrigavam-me por vezes a passar a noite na cidade. Atravessei algumas delas, enregelado e enroscado num cobertor nauseabundo, deitado sobre um velho sofá que jazia numa das duas únicas divisões da pró-Associação de Estudantes de Economia (ou foi antes no TUP, ó querida memória?). Para mim vinha algo de especial e de fantástico com aquelas noites. Uma certa sensação de façanha e de aventura, admito, já que o edifício fazia paredes-meias com um quartel da temida GNR. Tratava-se pois, praticamente, de dormir com o inimigo, concebendo, ao mesmo tempo, um poder sobre ele que apenas podia advir da dose de «razão histórica» da qual me supunha investido. Mas existia também, naquelas madrugadas, um momento sublime de exaltação para o combate antifascista: um enorme gravador de bobinas no qual encontrei, pela primeira vez, as canções combatentes e sentimentais de Jean Ferrat (1930-2010). Foi com a sua voz preenchendo a escuridão que adormeci algumas vezes, imaginando um país livre, projectando um mundo melhor e sem dúvida feliz. Não seria bem este onde agora habito, mas enfim, vocês sabem, un jour, un jour… «un jour d’épaule nue où les gens s’aimeront / un jour comme un oiseau sur la plus haute branche». Fico a dever alguma coisa, como perceberam, a Jean Tenenbaum Ferrat.

                    Ler também o que escreve e faz ouvir Joana Lopes.

                      Memória, Música, Olhares

                      Há 34 anos em Praga

                      Plastic People of the Universe

                      Plastic People of the Universe
                      Oh Yeah – How Nicely You Sleep [Egon Bondy’s Happy Hearts Club Banned, 1978]
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                      A música pop era um perigo para o Estado. E os Plastic People of the Universe (1968-), a banda mais conhecida de todas, eram perigo elevado ao quadrado. Com os seus cabelos compridos, blusões de couro, calças de ganga, t-shirts tingidas à mão, não passavam, para as rígidas autoridades socialistas, de «gente preguiçosa que foge ao trabalho». Estas consideravam que a sua música não tinha a ver com arte, «ameaçando seriamente os valores morais da sociedade», e que as letras das suas canções eram «de uma vulgaridade impressionante e com um impacte anti-socialista e anti-social, glorificador do niilismo». Muitos checos consideravam, no entanto, que «se Husák e a o regime estavam contra os Plastic People, então era porque a banda fazia aquilo que estava certo».

                      Apesar de, junto com outros grupos checos, terem sido proibidos de actuar em lugares públicos, conseguiam sempre arranjar forma de tocar em casamentos e festas de aniversário, em «reuniões privadas», em jardins ou pracetas de subúrbio. Mas a polícia secreta, a Stání Bezpecnost, seguia-lhes os passos, ao mesmo tempo que a sua popularidade irritava cada vez mais as vozes neo-estalinistas do regime saído da derrota da Primavera de Praga. Numa noite de Março de 1976, perfazem-se agora 34 anos, os Plastic foram finalmente detidos, acusados de «alcoolismo, toxicodependência e comportamento anti-social», e condenados a entre um e três anos e meio de prisão. Cerca de dois meses depois do julgamento, Václav Hável e outros escritores, artistas, académicos e músicos, originalmente 243 pessoas, lançaram uma campanha pela libertação da banda e a chamar a atenção para as violações dos direitos humanos na Checoslováquia e nos restantes países do leste europeu. Foi esta a origem da Carta 77. Tinha começado a contagem decrescente para o fim do regime.

                        História, Música, Olhares

                        Tónico Verdi

                        Faço parte daquela minoria de extravagantes para os quais os desejos do réveillon não se esgotam na «paz no mundo», «saudinha», «muito amor» e «sorte no euromilhões». Claro que sou contra a guerra e a doença, completamente pró-amor e não me importava mesmo nada de ver a conta bancária reforçada. Mas tenho também a expectativa de uma vida mais digna que passa pela invenção de melhores pessoas. E o que há de melhor para operar a mudança que não seja a disseminação desse sopro, dessa brisa – de alguma forma, de um certo estado aurático da experiência estética – que a grande literatura ou a grande música permitem quando retirados dos seus templos, disseminados, democratizados? Foi do que me lembrei frente a este vídeo comovente e feliz.

                        [youtube width=”400″ height=”324″]http://www.youtube.com/watch?v=Ds8ryWd5aFw[/youtube]

                        «Un día cualquiera de mercado, la música empieza a sonar entre los puestos de frutas y verduras.» Fragmentos da Traviata, de Verdi, interpretados em pleno Mercado Central de Valência. [obrigado ao Elísio Estanque pelo link]

                          Atualidade, Música, Olhares

                          Getting older, but not losing their hair

                          Bruce Tom

                          Eu deveria falar só sobre o Tom Waits, que fez ontem sessenta anos. Mas meto também na jogada o Bruce Springsteen, que os ultrapassou há perto de dois meses. Está escrito no cartão do cidadão que a minha data de nascimento se encontra perigosamente mais próxima da deles do que daquela da qual se pode gabar o Devendra Banhart ou mesmo o Pedro Passos Coelho, e talvez seja por isso que os aniversários de Tom e de Bruce não me façam uma impressão por aí além. Mas já justificam a evocação de dois trajectos inacabados e ainda debaixo da luz dos projectores.

                          Sempre olhei Springsteen como vestígio de uma América ideal que já se via de partida quando ele saiu lá de New Jersey, mas que foi depois desaparecendo lentamente, como pegada de dinossauro em trilho paralelo a uma qualquer highway. Um hobo fora do tempo, talvez mesmo um beatnik retardado, se não desnaturado, do qual o que sobra na América de uma cultura protestativa e de tradição sixtie se tem apropriado como se fosse um balão de oxigénio. Como de uma bandeira rasgada, volúvel, mas ainda visível e a drapejar sobre um horizonte que se não pode prever. Dele gosto, verdadeiramente, apenas de dois álbuns publicados um a seguir ao outro: o fremente e corsário The River (um duplo de 1980) e o quase intimista e acústico Nebraska (1982). Os outros pertencem, basicamente, ao processo de fixação do Bruce naquela imagem de cool guy que «representa o povo» em tribunas do Partido Democrata ou em anúncios da Pepsi Cola. Mas que certas vezes ainda comove, porque insiste em falar-nos da vida «como ela é». Como boss mais camarada afinal do que patrão.

                          Tom Waits é outra coisa e a mesma. Resíduo da contracultura dos anos sessenta, signo de uma ressaca difícil que encontra, na figuração narcísica da marginalidade e do individualismo, um lugar de exílio das utopias que pareciam ter sido abandonadas de uma vez por todas. Música de cave, com cheiro acentuado a bourbon e a fumo, como em Nighthawks at the Diner (gravado ao vivo e editado em 1975), ou Small Change, ou Blue Valentine, saídos nos anos seguintes, que a música de Mr. Waits, embora progressivamente mais intelectualizada, hoje mais elaborada, estranhamente controlada no seu descontrolo, na verdade jamais deixou de ser. Sempre um registo «fora de género» que encontra os seus inflexíveis cultores – aqueles que preferem caminhar do lado oposto à «sunny side of the street» – mas não deixa de conter uma amargura que escapa sempre ao lado exultante desse modelo americano de vida que os europeus jamais desejarão. Por isso, talvez, tantos deles, tantos de nós, gostam ainda de um tipo assim, sem voz para adormecer bebés e uma presença física um bocado pungente.

                          Afinal os sessenta anos de Tom e de Bruce não contam assim tanto, pois não?

                            Atualidade, Memória, Música