Arquivo de Categorias: Memória

De um Portugal português

Enquanto este blogue respira uns dias para ganhar outro balanço, aqui vai um post publicado há um pouco mais de quatro anos. Talvez não esteja muito desatualizado.

Portugal Anos 50Numa tarde destas, enquanto me esforçava uma vez mais por dar algum sentido aos livros acumulados sem grande nexo, reencontrei um conjunto de postais reproduzindo fotografias de Gérard Castello Lopes tiradas ao Portugal dos anos 50. Foram editadas em 1999 na companhia de pequenos textos de dois Antónios. «Outros tempos, outros lugares», sublinhava um deles, o Tabucchi, na contracapa. O outro, o Barreto, falava de um país passado que Castello Lopes revirou e nos ofereceu contrariando uma quase crónica escassez de imagens. Mas será realmente assim? Estaremos a olhar aqui para um país inteiramente outro, mergulhado num sono coletivo e prolongado do qual só na década de 1960 teria sido possível despertar? Revejo as imagens e encontro em quase todas elas vestígios de um Portugal que me parece o de sempre, diverso daquele que hoje habitamos mas nem por isso imóvel, nem por isso falho do movimento que é parte da memória comum. Na qual continua a apoiar-se aquilo que nos aproxima, ajudando a desenhar a comunidade que imaginamos. (mais…)

    Atualidade, Fotografia, História, Memória

    Memória da esquerda da esquerda

    Mao e o Lótus Azul
    Mao e o Lótus Azul

    Nos últimos anos tem vindo a crescer o  volume de estudos e de testemunhos de caráter autobiográfico sobre os trajetos da «extrema-esquerda» em Portugal nos tempos que precederam ou se seguiram à Revolução dos Cravos. Esta tendência tem ajudado a superar dois equívocos que durante algum tempo integraram a «lenda» pública construída a propósito desse setor da oposição ao antigo regime. Um deles, talvez o mais conhecido, é o proposto de um modo quase sempre ligeiro e sensacionalista por alguma comunicação social, mais interessada em explorar os «pecadilhos» juvenis desta ou daquela figura pública cujo trajeto de vida passou por ali do que em compreender historicamente o seu compromisso. O outro, mais profundo, assenta na perspetiva divulgada pelos setores que os militantes dessa área consideravam então reformistas, ou «revisionistas», e que ainda hoje não convivem bem com o facto de, apesar da sua «doença infantil» (seguindo o diagnóstico de Lenine) ou do seu «radicalismo pequeno-burguês», as organizações «esquerdistas» terem crescido e protagonizado sob o marcelismo importantes lutas contra o regime e a Guerra Colonial. Desempenhando também, apesar de confinadas aos meios estudantis e intelectuais, e ainda a estreitas franjas da juventude operária, um manifesto papel de catalisador no teatro político do imediato pós-25 de Abril. (mais…)

      Biografias, História, Memória

      A Voz da rádio

      No velho Programa 1 da Emissora Nacional, do tempo pré-Abril, existia uma rubrica, típica da Guerra Fria, que continha essencialmente propaganda anticomunista e se destinava a reforçar o semblante psicologicamente atemorizador da «Cortina de Ferro». Encerrava sempre o arrazoado em tom autoritário com a mesma frase, bradada por voz masculina, que dava até o título ao programa: «A verdade é só uma, Rádio Moscovo não fala verdade.» A verdade a que os portugueses tinham direito era então determinada pelo controlo ou pela vigilância das quatro estações de rádio em onda média, curta ou FM permitidas pelo regime. Do outro lado do continente, pela mesma época, para a imensa maioria dos cidadãos a questão punha-se de uma forma muito idêntica: apenas podiam ouvir rádio, em casa, nas lojas, nas cantinas ou nos locais de trabalho, através de aparelhos como este, construídos sem sintonizador, com um só botão para ligar/desligar e para aumentar ou diminuir o volume. Desta forma forçados a ouvir sempre a mesma voz. Como aquela que se podia ouvir deste lado, apresentada como certa, segura e rigorosamente indiscutível. A pesada Voz da Verdade.

        Apontamentos, Etc., Memória

        Oshima e a educação sexual

        Morreu ontem aos 80 o realizador japonês Nagisa Oshima, a quem, no obituário, o Público chama com justiça «um dos mais importantes cineastas do corpo». Todavia, em Portugal, para muitas pessoas o cinema de Oshima permaneceu na memória devido apenas à exibição pela RTP, numa noite de 1991, do seu O Império dos Sentidos. O erotismo do filme, focado na relação obsessiva entre a prostituta Sada e Kichizo, o dono do bordel, gerou algum escândalo e teve destaque de primeira página, com o arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, a insurgir-se contra a inclusão da obra na grelha do canal público. Ficou para o futuro a sua frase sobre o que vira: «Aprendi mais em dez minutos deste filme do que no resto da minha vida». À volta da exibição de O Império dos Sentidos, tenho aliás para contar uma história igualmente curiosa, ainda que um pouco mais antiga. O filme foi estreado em Portugal em 1976, o ano de produção, e vi-o no meio de um tumulto. Dado o erotismo patente nos fotogramas que acompanhavam a sua divulgação, no cinema onde o pude ver – o velho Avenida, de Coimbra – o público era composto por uma estranha mescla de pessoas interessadas em «cinema de autor» e outras, menos dadas às artes e desinteressadas da crítica, que acreditavam tratar-se simplesmente de mais um filme pornográfico. Como não era obviamente o caso e as cenas se arrastavam sem qualquer exibição de sexo explícito, gerou-se rapidamente um tumulto, com os amantes do hardcore a manifestarem a sua indignação, abandonando a sala e exigindo aos berros a devolução do dinheiro do bilhete. Nunca soube em que ficou o episódio, uma vez que fui dos que permaneceram sentados e viram o filme até ao fim. Ainda que sem o proveito pedagógico que teria mais tarde o arcebispo de Braga.

          Apontamentos, Cinema, Memória

          Nós, albaneses

          Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. (mais…)

            Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

            A capital e o país nos anos 60

            A historiografia que se ocupa da fase final do Estado Novo tem enfatizado, entre as condições que conduziram à queda do regime, os fatores políticos, militares, diplomáticos, económicos e sociológicos que foram limitando a sua capacidade para se renovar ou mesmo para se manter de pé. Tem sido destacado, com toda a justeza, o papel das oposições organizadas na construção do espaço de resistência e favorável à sublevação que tornou possível, ou inevitável, o 25 de Abril. O que raras vezes tem sido mostrado é que essa dinâmica de mudança teve uma outra componente, ao mesmo tempo subterrânea e aparatosa, traduzida na importação de valores e de hábitos internacionais, já em curso nos países industrializados, na afirmação da uma nova cultura juvenil e na introdução de práticas de consumo capazes de abalar a fortaleza política e moral que, desde a sua já distante génese, o salazarismo e a propaganda do regime tinha procurado defender e apresentar como modelar. (mais…)

              História, Memória, Olhares

              As escolhas

              Quanto mais difíceis, incertas e dramáticas são as épocas e as situações, mais facilmente se reconhecem as grandes qualidades e os piores defeitos daqueles que as vivem. Aquilo que de melhor e de pior todos nós temos. E isso acontece mesmo em situações-limite, quando o medo do sofrimento, da exclusão e da morte pode fechar cada um sobre si próprio, aparentemente impenetrável e dúctil, ocupado com as tarefas mais elementares da sobrevivência. Calar-se, não ver, passar ao lado, sair dali, é então a atitude mais comum. No entanto, os relatos dos que sobreviveram ao internamento nos campos de concentração e de extermínio recordam, com insistência, que mesmo nos limites mais extremos da barbárie dos carcereiros e da desumanização dos detidos foi possível, em instantes fugazes, aparentemente impercetíveis, mas muito intensos, encontrar sinais de compaixão e de coragem, bem como, ao invés, marcas indeléveis de impiedade e traição. (mais…)

                Atualidade, Cinema, Memória, Música

                Imaginar o outro

                Amoz Oz

                Num tempo no qual se repetem, uma vez mais, as tentativas sistemáticas de representar Israel e o sionismo como um universo unívoco, parte integrante de um odioso «império do mal», sem se ter em conta, por ignorância, casmurrice ou má-fé, a diversidade e as contradições que separam, por vezes profundamente, os cidadãos israelitas e as distintas formas de sionismo, retomo, quase três anos depois, um fragmento da entrevista ao escritor Amos Oz, conduzida por Alexis Lacroix, que saiu no nº 494 do Magazine Littéraire, de Fevereiro de 2010. (mais…)

                  Atualidade, Democracia, Memória

                  Pobreza e caridade

                  Sábado. Dia das compras da semana. No hipermercado deparo com brigadas do Banco Alimentar Contra a Fome. Estranhamente, por comparação com outros anos, muito menos pessoas param, aceitam os sacos vazios para encher de alimentos para quem precisa, oferecem o que podem com um sorriso de compreensão. Não sei se será consequência do agravamento das condições de vida da classe média, de onde provinha a maioria dos doadores, se será resultado das infelizes declarações da presidente do Banco, ou se advirá de ambas as coisas. Por um acaso, quando no final da manhã entrei num quiosque, dei de caras com este texto, incluído na reimpressão em fac-simile de um Livro de Leitura da 1ª Classe editado em 1957. Também a mim, como a Isabel Jonet, com quem neste particular concordo, dói a possibilidade da miséria e da fome em Portugal poderem chegar ao nível do que acontece atualmente na Grécia. Mas não me doerá menos ver o meu país a regredir até ao passado infame e desditoso que este texto apresentava como natural.

                  Adenda

                    Apontamentos, Democracia, Memória

                    A House Is Not A Home

                    Um amigo que sem querer perdi algures disse-me uma vez que a música mais noturna que conseguia conceber era a de Bill Evans. Mas nunca se explicou, não teve tempo ou alguma coisa nos separou antes desse tempo chegar. Talvez ele a associasse, imagino-o agora, à sombra longínqua da cave nova-iorquina onde nunca estivera, ao ruído dos copos cheios e vazios por cima das conversas que ouvira em filmes, ao fumo denso dos cigarros exibidos nas capas dos discos. Nunca o contrariei, embora tivesse uma outra percepção, bem mais diurna e próxima do piano de Bill. Tardes quentes da infância com os febrões próprios da infância. O termómetro a subir e os lençóis frescos, mudados de fresco. Uma mosca a espiralar. A luz filtrada pelas cortinas da casa que um dia foi a minha. Os passos suaves da minha mãe na escada exterior. A porta entreaberta e, vindo lá do fundo do fundo do corredor, aquele timbre singular no velho rádio de onda média. Um Bill febril a chegar com a luz do dia.

                      Memória, Música, Olhares

                      A noite berlinense

                      Sob a pressão dos muitos milhares de manifestantes da antiga RDA que exigiam nas ruas e praças do país democracia, liberdade e pares de jeans, o Muro de Berlim caiu na noite de 9 de novembro de 1989. O episódio representa, a par das passadas de Neil Armstrong na Lua e do derrube das Torres Gémeas, um dos três acontecimentos a que assisti e de que tenho memória nos quais tive a imediata perceção de viver em direto um «momento histórico». A Queda do Muro teve aliás um impacto brutal em quem, por essa época, tinha passado alguns anos no clima pantanoso e sombrio da Guerra Fria. No que me diz respeito, a intervenção da propaganda – associada a um visionamento talvez demasiado precoce de Cortina Rasgada, de Alfred Hitchcok – levara-me em criança a imaginar que a Cortina de Ferro era mesmo uma pesada rede metálica, eletrificada, impenetrável e letal, separando para sempre o Bem do Mal em dois mundos antagónicos. E ainda em 1975, no contacto breve mantido por motivos fortuitos com dois cidadãos soviéticos, tive a estranha sensação de lidar na Quinta Dimensão com uma parelha de perigosos alienígenas. Mais do que uma alteração do equilíbrio do mundo, da qual continuamos a sofrer as fortes e imprevisíveis ondas de choque, foi pois uma mudança radical na perceção que então era possível ter desse mundo que a Queda do Muro começou por impor. E é principalmente a memória desse espanto de ver a vida toda a mudar em poucas horas que permanece em quem passou, incrédulo e sem conseguir dormir, essa intensa noite berlinense pregado ao televisor. Foi há 23 anos.

                        Acontecimentos, Democracia, História, Memória

                        Alemanha’45. Coreografia da queda

                        O trabalho do britânico Ian Kershaw tem sido ocupado principalmente com a história alemã do Terceiro Reich e o trajeto pessoal e político de Adolf Hitler. Em Até ao Fim aborda os últimos dez meses da existência do regime nazi, aqueles que vão da tentativa de assassinato do Führer, em 20 de julho de 1944, até à rendição do regime, ocorrida em maio do ano seguinte. Fá-lo procurando obter uma resposta para uma pergunta posta logo no início do livro: o que terá feito com que a Alemanha, cuja derrota já então se mostrava inevitável, optasse por combater até ao fim? Afinal, mesmo nas guerras mais mortíferas do passado, sempre ocorrera um momento no qual os comandantes vencidos reconheciam a derrota e chegavam a um compromisso com os vencedores, na tentativa de evitar males maiores ou de salvar a própria pele. Todavia, com a Alemanha de Hitler nada disto aconteceu, tendo o território germânico de ser conquistado aldeia a aldeia, rua a rua, cidade a cidade, numa espiral de violência que fez com que na classificação macabra das baixas civis e militares da Segunda Guerra Mundial os alemães tenham ficado num macabro segundo lugar, logo após os soviéticos. A larga maioria das vítimas, incluindo cerca de metade dos soldados alemães mortos na guerra, pereceu no entanto, justamente, nesses derradeiros meses, sobretudo como consequência dos bombardeamentos maciços dos Aliados e do avassalador avanço do Exército Vermelho. (mais…)

                          História, Memória

                          O retorno e os retornados

                          La Revedere. Fotografia de Vlad Savin

                          Durante um quarto de século, o passado das centenas de milhares de portugueses chegados ao Portugal europeu com a descolonização pareceu ter sido apagado. A integração foi dramática, difícil e em larga medida incompleta, mas se o seu futuro continuou a preocupar, o que ficara para trás parecia «merecer» o completo apagamento. Foi só quando a normalização possível da situação dos «retornados» deixou de ser um problema coletivo que estes adquiriram uma nova visibilidade. Esta foi conquistada recentemente e de um modo muito lento, apenas projetada no interesse público, aliás, numa fase bem posterior à abordagem da própria Guerra Colonial, também ela silenciada e só a partir da década de 1990 em condições de começar a ser objeto de um grande número de leituras de natureza crítica, jornalística, histórica, política ou ficcional. Neste caso, afora a publicação de alguns romances (como o recente O Retorno, de Dulce Maria Cardoso) e de textos de natureza memorialística e nostálgica, poucos livros abordaram o tema do regresso de uma forma equilibrada, sem com isso querer dizer desvinculada da emoção invocada pela memória e da mágoa imposta pelo silêncio. Mas é isto que procura e consegue Voltar, da autoria da jornalista Sarah Adamopoulos. (mais…)

                            História, Memória, Olhares

                            23 de Outubro em Budapeste

                            Em 23 de outubro de 1956, há exatamente 56 anos, uma manifestação estudantil ferozmente reprimida pela polícia política em Budapeste tornou visível, mais de uma década antes da «Primavera de Praga», a primeira tentativa de democratizar o socialismo de Estado, associando-o a uma maior transparência política e a mais liberdades públicas no contexto do que foi então chamado «um socialismo verdadeiro». O movimento de oposição ao regime de partido único cresceu rapidamente e prosseguiu com a formação de milícias que tomaram o poder na capital e em outras cidades. O derrube da estátua colossal de Estaline teve na altura um particular simbolismo. Num ambiente efervescente, foram levadas a cabo ações de vingança sobre os agentes da ÁVH, a Polícia de Segurança do Estado, bem como sobre muitos quadros do Partido dos Trabalhadores Húngaros. O seu Comité Central ensaiou então uma abertura e Imre Nagy, um comunista reformista em tempos quadro do Comintern, foi nomeado primeiro-ministro, mas o Bureau Político mudou de ideias e acabou por apelar à intervenção militar de Moscovo. Em 4 de novembro, uma poderosa força soviética entrou em Budapeste. (mais…)

                              Democracia, História, Memória

                              MAP, herói

                              Manuel António Pina

                              Em memória do Manuel António Pina (1943-2012), o MAP, com quem falei apenas em duas ocasiões, mas que sem o saber, e com toda a certeza sem o querer, foi um dos meus heróis. Uma crónica sua.

                              Aos Nossos Heróis

                              Éramos jovens e habitávamos um lugar cercado de paredes onde os ecos do longínquo mundo chegavam esparsos e abafados. E, no entanto, o nosso coração pequeno-burguês (des gens de la moyenne como cantava Colette Magny sobre o Dia do Estudante de 1966) estava maduro, pulsante de sentimentos excessivos e de palavras por dizer. De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nos­so coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então con­tra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e la chienlit. (mais…)

                                Biografias, Memória, Olhares, Recortes

                                Fui maoista e não me arrependo

                                Esta noite sonhei que voltara ao passado. Ainda melhor: sonhei que fora ao passado roubar, para poder usar nestes dias sem luz, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude por alguns revista como insana, a energia sem medida, cuja evocação nunca me encheu de nostalgia porque as troquei por outras coisas e porque sei que a memória mais bela e perfeita tem sempre a forma de fábula. Pensando bem, afinal nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que por motivos diferentes. Fui antes buscar outra coisa, que ao contrário das fases e das dinâmicas da vida, permanece imortal porque transcende o tempo curto que nos cabe. Falo da esperança e da vontade indómita de mudar as coisas do mundo, sabendo sempre que nelas se misturam, em partes iguais, a imaginação do que há-de vir e o banho de realidade que sempre defronta o futuro.

                                Em La Chinoise, o filme que Godard rodou em 1967, numa parede do pequeno e bem burguês apartamento de Paris que serve de quartel-general ao bando de jovens irredutíveis, aprendizes de alquimista da Revolução que há-de vir, que protagonizam o filme, encontra-se escrito, com letras delicadamente decalcadas, «é preciso confrontar as ideias vagas com as imagens claras». Uma frase, se a memória desgastada não me engana, justamente da autoria de Mao Tsé-tung. Nela se resume o princípio que no meu sonho procurei trazer de volta para este lado do tempo. O de que não há intervenção política capaz sem que a precedam o esboço de impossíveis quimeras. Porque o excesso de realismo e a ditadura da «política do possível», imune à ideia de salto, de viragem, deu no que deu. Como o comprovam os noticiários assustadores, soturnos, deprimentes, que ainda somos capazes de ouvir.

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                                  Deus lhe perdoe

                                  Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava. (mais…)

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                                    Era uma vez (na caserna)

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                                    Quando cumpri os três meses de recruta do serviço militar, apesar de o fazer contrariado habituei-me rapidamente a quase tudo o que tinha a ver com a disciplina e o esforço físico. No entanto, sofria bastante com as noites de caserna. Posso descrever o cenário do horror: 200 mancebos numa espécie de hangar povoado de beliches em ferro e que produzia um eco danado, 50% a ressonar, 20% a escrever cartas às namoradas e 30% a jogar ruidosamente infinitas partidas de king ou de sueca. À luz de velas, obrigatoriamente, já que depois das 22 horas a iluminação era limitada às lâmpadas de presença. Quem, como eu, não tinha sono, não tinha luz para matar o vício da leitura e era hipersensível ao cheiro a estearina queimada, passava horas seguidas de inferno na Terra. (mais…)

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