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Do lado negro da História

No dia da canonização de Nuno Álvares Pereira, recupero um post publicado há dois meses atrás. Independentemente do carácter polémico e discutível que possa ter a tese de António Borges Coelho nele evocada, é lamentável que a mesma tenha sido, tanto quanto pude perceber durante estas semanas, completamente ignorada nas peças jornalísticas que têm acompanhado o processo. Algumas redigidas num tom de proselitismo religioso completamente despropositado.

Quando iniciei o curso de História trazia ainda comigo a imagem de um Nun’Álvares paladino e devoto, campeão da independência em Aljubarrota, e, anos depois, converso a uma nova existência: a vida simples feita de oração e cilício do Beato Nuno de Santa Maria. Era essa a imagem, construída pelos finais do século XIX e que o Estado Novo reproduzira, que havia transformado o Conde de Ourém e Condestável de Portugal numa espécie de ícone simultâneo do brio indígena e da piedade cristã. Foi então que li um livro, onde se afirmavam algumas teses sobre o sentido da crise política de 1383-1385 hoje algo contestadas, contendo informações sobre a vida verdadeira de Nuno Álvares Pereira que não circulavam pelas vias tradicionais de acesso ao registo do nosso passado colectivo.

Fora em 1965 que o historiador António Borges Coelho publicara na Portugália esse A Revolução de 1383 que vim a conhecer na sua edição de 1977, a 3ª, consideravelmente aumentada e revista de acordo com as novas possibilidades oferecidas pela Revolução de Abril (existem ainda edições posteriores). Foi aí que vi emergir da penumbra um senhor de Cernache com um rosto menos harmonioso, como nobre feudal cioso dos seus direitos, interventor pelo fio da espada nos campos alentejanos e andaluzes, do lado de cá e de lá das marcas do reino, contra os camponeses sublevados, que não se coibiu, por vezes, de perseguir e massacrar. Porque, como contou Borges Coelho apoiado principalmente em Fernão Lopes, Nun’Álvares dizia preferir morrer combatendo «nas fraldas» do próprio rei castelhano que serem depois, ele e os seus, «apanhados de lugar em lugar como perdigotos e enforcados uns e uns pelos sobreiros». Pela acção desses miseráveis campónios que visivelmente temia e essencialmente desprezava.

Ora é esse homem, «herói» também de uma guerra suja, com acções nada abonatórias no registo individual, com sangue nas mãos que não apenas o do invasor castelhano – mas apontado como «exemplo para a sociedade actual» pelo frade carmelita «vice-postulador da causa da canonização» -, que a Igreja católica, apostólica e romana de Bento XV beatificou em 1918 e que Bento XVI vai agora transformar em santo. Tendo como fundamento mais imediato, dizem, a cura milagrosa num olho de uma sexagenária que deixara de ver por ter sido atingida «com salpicos de óleo a ferver enquanto cozinhava». Cavaco já se congratulou publicamente com o evento e pode ler-se em alguns blogues de direita que esta é uma das melhores notícias para Portugal que temos recebido nas últimas décadas. Para as pessoas comuns o facto não aquecerá nem arrefecerá as suas existências, mas será sempre de proveito e exemplo conhecer também o lado negro da História. E saber de onde chegam os esquecimentos.

    Atualidade, História

    Sobre o silêncio dos mortos

    O genocídio arménio

    Um século depois dos acontecimentos de 1915, o governo conservador de Erdoğan toma, no mínimo como equivalentes, a morte de soldados turcos em combate e as actividades sistemáticas de genocídio que Istambul então levou a cabo, provocando o extermínio sistemático de um milhão e meio de arménios e iniciando uma política de supremacia racial na região que ainda continua a fazer vítimas. Mas ficou agora particularmente incomodado com as palavras de Barak Obama ao reconhecer publicamente os actos de barbárie então levados a cabo e que se encontram amplamente documentados. Construir a paz na região procurando, ao mesmo tempo, rescrever a História por cima do silêncio dos mortos, não será por certo um bom princípio para quem deseja tornar-se um bom «europeu» e obter a confiança de um lado do mundo que viveu longos séculos no temor das intenções otomanas.

      Atualidade, História

      O Largo

      Forgive| Never

      Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.

        Atualidade, História, Memória, Opinião

        Toda a revolução

        Revolution

        Outubro é uma edição da Angelus Novus que resulta de uma série de posts – publicados originalmente neste blogue, mas entretanto revistos – sobre o impacto mundial da Revolução de 1917 e do seu mito. O livro estará à venda muito em breve. Adianta-se aqui, em pré-publicação, uma parte substancial do último capítulo.

        A revolução, toda a revolução, é enunciada como ruptura mas propõe um regresso. A mudança que encena aponta desde a fundação para um restabelecimento, para um retorno, a uma ordem essencialmente antiga, primordial e benigna, que se crê ter sido corrompida algures e em algum momento. Mudar, mudar profundamente, mas para reverter. A «revolução» humana que permitiria aceder à cidade ideal, tal como a concebeu Platão, requeria um esforço de recuperação de uma ordenação primordial perdida: era uma métabolê, uma alteração radical, mas também um ponto de viragem que antecedia uma regressão. Nesta direcção, François Châtelet entende que «por paradoxal que pareça a afirmação, Santo Agostinho, Bossuet, Rousseau ou Engels são platónicos», uma vez que neles a superação radical da ordem do mundo visa sempre – entre a descoberta da Cidade de Deus e o triunfo final do comunismo – a recuperação de um passado perdido, a restituição de uma ordem utópica e edénica aniquilada por um declínio que remonta a tempos ancestrais, pontuadas ambas pela intervenção do pecado, pela ruptura do estado de natureza ou pela divisão social do trabalho.

        Mas a «verdadeira revolução», aquela que sobrevive ao efémero, ao fluir simples dos acontecimentos, não envolve apenas a destruição de uma ordem política injusta e caduca. Ela implica também a desconstrução da organização social imperante e dos princípios que a governaram. Mesmo quando existe uma agenda política que admite medidas graduais, esta toma sempre por horizonte a mudança decisiva, não aparecendo como um desvio, uma cedência diante dos princípios, mas antes como um diferimento, um instante de preparação para a batalha definitiva apontada ao que importa, que é a demolição definitiva da ordem pré-revolucionária.

        Marx e Lenine anunciaram a necessidade objectiva desta operação de devastação do real ao excluírem a capacidade regeneradora de qualquer «revolução parcial»: era necessário tudo mudar, inclusive de etapa histórica, ainda que em alguns dos momentos do aguardado «assalto aos céus» pudesse lançar-se o ataque apenas sobre um dos flancos do inimigo. Toda a atitude reformista se tornava inútil e abominável, salvo quando servisse como instrumento da mudança integral. Daí o desdém de Lenine pelo gradualismo reformador do marxista veterano Karl Kautsky ou do menchevique Julius Martov. Porém, aquilo que acontecerá após o instante crucial da viragem revolucionária, permanece sempre como algo de impreciso: por mais inevitável que se revele, toda a revolução é pobre, lacunar, uma vez que funciona mais como instrumento de demolição, operando sobre a realidade objectiva, do que como via para um horizonte tangível a alcançar. De Platão a Mao, passando por Rousseau, Robespierre, Marx ou Trotsky, a teoria da revolução aponta para um futuro mais afortunado e harmónico, mas jamais lhe define os contornos. Apenas declara que este chegará algum dia, como resultado de um processo que deposita nas mãos dos seus executantes as decisões sobre o caminho a percorrer. Num tempo longínquo e incorpóreo, apenas uma ideia de felicidade por cumprir.

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          Atualidade, História, Olhares

          Veias abertas

          Eduardo Galeano

          Quem possa ter interesse em conhecer a argumentação que Hugo Chávez acaba de oferecer a Barack Obama sob a forma de livro, pode encontrar aqui, em formato pdf, uma versão em português de As Veias Abertas da América Latina, do jornalista e escritor Eduardo Galeano. Originalmente publicado em 1971 e nesta versão com um posfácio de 1978. Naturalmente, a escrita de denúncia sob a forma de ensaio histórico pode sempre ser manipulada por cérebros messiânicos que nela buscam a sua própria legitimidade.

            Atualidade, Democracia, História

            Coimbra’69

            Coimbra'69

            17 de Abril. A maioria dos cidadãos que conservam reminiscências da Coimbra dos idos de sessenta – do meio pequeno, professoral, santacombadense, mas também universal, quimérico e inquieto – conhece aquilo que a data significa. As prestimosas autoridades locais, essas dormem na ignorância de uma parte da memória viva da cidade que vão gerindo. Por vezes na cumplicidade ao retardador com o lado mau do filme. Dia da audácia de uns quantos, das oportunidades conquistadas, do mito que enuncia parte da verdade e inventa e reinventa a outra. Primeiro dia do resto da vida da cidade salazarenta que um dia há-de morrer.

            Seguir o testemunho ocular do Marcelo Correia Ribeiro, a visão de retrovisor do Miguel Cardina e o olhar de viés do Luís Januário.

              Apontamentos, Cidades, Coimbra, História, Memória

              Spartakus em Berlim

              spartakus

              Publicado no Manuel de Leitura de Tambores na Noite, de Bertolt Brecht. Encenação de Nuno Carinhas. No Teatro Nacional São João do Porto até 26 de Abril.

              Brecht escreveu Tambores na Noite muito cedo. Em 1919, B.B. acabava de dobrar os vinte anos e não passava ainda de um rapaz bávaro com uma actividade não muito bem definida. Interessava-se pelas artes de palco, isso era certo, e havia já começado a redigir Baal – peça com uma forte componente autobiográfica sobre o velho tema do artista enquanto marginal, em boa parte inspirada pela frequência regular das aulas de Arthur Kutscher -, mas a guerra tinha-o apanhado sem projectos imediatos e no Outono do ano anterior fora mesmo incorporado no exército. A experiência militar seria breve – por ser estudante de medicina trabalhou algumas semanas como enfermeiro num hospital militar de Augsburgo, sendo desmobilizado com o fim do conflito – mas nem por isso deixou ela de perturbar o retorno à condição civil e a maneira de Brecht observar o mundo à volta. Em Munique, onde vivia, como em Berlim e nas outras grandes cidades alemãs, para a maioria das pessoas o ambiente era agora pesado, muito marcado pela realidade da derrota, pelo regresso em massa dos soldados, por conflitos sociais cada vez mais acentuados e também por uma activa luta pelo poder. «Os tempos que correm são inseguros. (…) a desmobilização está a fazer jorrar desordem, cobiça e desumanização animalesca para dentro dos oásis dos que trabalham em paz», proclama Frau Balicke logo no primeiro acto.

              Tambores na Noite, obra de juventude ainda sem as marcas do teatro épico que o autor desenvolverá na maturidade, foi primitivamente redigida nesse período de adaptação a uma paz podre, aparecendo muito marcada pela sublevação espartaquista ao dramatizar o ambiente que conduzira à revolta, as suas diversas ocorrências, a repressão e depois o refluxo do movimento. A personagem de Friedrich Murk, o anti-herói que não combatera, fizera fortuna com os lucros de guerra e ainda por cima se preparava para roubar a noiva do proletário que fora mobilizado, expõe de certa maneira o sentimento de traição e de frustração que os trabalhadores fardados, constrangidos durante anos a combaterem, sentiam naquele tempo de regresso a casa na condição de vencidos. A peça anuncia também a definição vitoriosa de uma nova ordem contra-revolucionária, manifesta quando Andreas Kragler, o soldado que fora dado como morto e tornara à pátria para a ver acabrunhada, e a casa para ver quase destruído o seu futuro, decide no final optar pelo confortável refúgio da vida privada.

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                Artes, História, Olhares

                O dress code e a política do corpo

                In the sixties

                Quando falo em algumas aulas das grandes alterações dos anos 60, recorro muitas vezes ao exemplo do vestuário diverso que todos usam na sala, à atitude física que mantemos dentro e fora daquele espaço, ao modo informal como falamos uns com os outros, olhando-nos nos olhos e defendendo os nossos pontos de vista sem receio de estarmos a ofender alguém, para mostrar de que maneira existiu um tempo – para a maioria dos alunos o dos seus pais, ou mesmo o dos seus avós; para muitos destes, porém, algo que jamais conheceram – no qual o mundo como eles o observam, este mundo, se formou, rompendo abertamente, assumidamente, com um tempo-outro que o precedeu e que para muitos é hoje inimaginável. No centro da mudança uma nova política do corpo, que terá sido talvez o eixo em volta do qual as transformações políticas, culturais e vivenciais que marcaram aqueles anos – e que todos herdámos, mesmo aqueles de nós que hoje as procuramos desvalorizar – se organizaram. Por vezes sob a forma de combates duros e prolongados, que requeriam coragem e tenacidade.

                Nascido nos fifties, num país fechado e manietado, vivendo até aos dezassete ou dezoito anos num ambiente pequeno, isolado e bastante preconceituoso – embora nas cidades as coisas não fossem então, é preciso reconhecê-lo, substancialmente diferentes -, travei um combate complicado por coisas que hoje certamente parecem ridículas, e das quais agora até prescindo, como usar o cabelo comprido e despenteado, vestir umas calças de bombazina grená se me apetecesse vestir umas calças de bombazina grená, ou passear à noite com uma amiga sem ter de casar com ela. Coisas que nunca me impediram, que eu saiba, de tratar mais ou menos bem as pessoas com quem fui convivendo, de cuidar da higiene pessoal, e de ir cumprindo o melhor que sei e sou capaz o meu trabalho, mas que me permitiram, com toda a certeza, estar no mundo, e projectar-me nele, de uma feição mais livre, individualizada, de alguma forma cosmopolita, que os meus pais, e os pais deles, jamais sonharam viver. Foi essa área da luta pela liberdade que me fez então – pude na altura dar-me a esse luxo, admito, e o facto de ser homem ajudou um pouco – recusar uma profissão que me constrangeria a um «código de apresentação». Muitos daqueles que o não puderam fazer iriam bater-se – na escola, no trabalho, na rua, por vezes dentro das suas próprias casas – por uma liberdade que passava também pelo reconhecimento da sua forma própria, não necessariamente padronizada, de estar no mundo. Uma luta hoje silenciada, mas não silenciosa, bastando para a reconhecer um apelo à memória de quem a viveu e uma consulta da imprensa da época (incluindo nesta, um aspecto muito importante, a regional).

                Estou certo de que me acompanham nesta evocação muitas pessoas que viveram ou que conheceram, ainda que apenas dos livros, experiências idênticas. As mesmas pessoas que viram com um pequeno arrepio este episódio – patético, é verdade, mas sintomático e talibanesco – em redor do dress code aplicado às funcionárias da tal Loja farense do Cidadão. Episódio que indicia um retorno a uma ordem política das aparências agressora da liberdade pessoal. Ou então um salto rumo a uma sua versão mais aperfeiçoada. Não fala de cor Zygmunt Bauman quando afirma, em Modernidade Líquida, que «a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas».

                P.S. – Claro que não vivemos num regime totalitário, onde estas coisas acontecem de forma sistemática e sem apelo. Vivemos sob a ditadura informal do realismo político, na qual tudo é normal e aceitável se em prol da boa gestão. Inclusive a agressão a direitos e a liberdades conquistados a pulso pelos cidadãos.

                  Atualidade, Democracia, História, Memória

                  Falsos berberes

                  Piratas

                  Conhecia já, de leituras antigas, a relativa autonomia política, face aos regimes islâmicos, daqueles a quem a tradição histórica europeia chama desde há séculos de piratas berberes. Sensivelmente desde os finais do século XVI até por volta de 1830, a sua presença temível e destruidora fez-se sentir muito para além das costas do Norte de África, de onde partiam e onde se abrigavam. Portugal e os portugueses sentiram com regularidade os ataques e razias que sistematicamente praticavam, existindo notícias de incursões suas até na Irlanda, na Islândia e mesmo na Groenlândia. Tanto nas suas actividades marítimas quanto nas maneiras de viver quando em terra, estes piratas conservavam uma independência que se mostrou particularmente notável e duradoura na chamada república de Salé, situada já na região costeira atlântica, frente a Rabat. Em larga medida povoada por repatriados muçulmanos de Espanha, o que me surpreende é que, durante séculos, foi local eleito de refúgio para inúmeros europeus rebeldes convertidos ao Islão, os quais, de acordo com Peter Lamborn Wilson em Utopias Piratas, forneceram em larga medida o saber técnico e a iniciativa que permitiram aos «berberes» ir tão longe e com tanto êxito nas suas acções de pilhagem e devastação. A ser provada, eis uma revelação surpreendente: o tão temido «berbere» era afinal, numerosas vezes, muito mais vezes do que o suposto, um europeu converso ou em dissídio, que conhecia bem as águas que cruzava e os territórios aos quais se dirigia.

                    História, Memória, Olhares

                    Outubro revisitado

                    1917

                    Não é todos os dias que de um trabalho criterioso resulta uma noção de razoabilidade aplicada à governação de Estaline, mas é isso que acontece com este livro. Ao procurar devolver a complexidade original a um dos episódios fundadores do mundo contemporâneo que mais vezes tem sido reduzido a estereótipos, Mário Machaqueiro mostra como vale sempre a pena reapreciar, procurar os detalhes, detectar novos nexos e contradições naquilo que muitas das vezes pensamos nada mais ter para oferecer senão a repetição das evidências.

                    Durante a maior parte do século passado, tanto a historiografia oficial como a oficiosa, mesmo parte daquela que poderia e deveria assumir uma maior vigilância crítica, fez eco de traços da revolução de 1917 aceites como inquestionáveis: desde logo o carácter radicalmente fundador da tomada do poder pelos bolcheviques, mas também a sua actuação colectiva como corpo submetido a uma disciplina rígida, a inscrição da sua intervenção num fluxo histórico de sentido progressivo e universalista, a dimensão unívoca e previdente da intervenção de Lenine. Nesta obra de sociologia histórica, Machaqueiro arruína esses pressupostos, mostrando de que forma a tomada do poder pelos comunistas, desde a sua fase de preparação até aos tempos iniciais de construção e defesa da nova ordem, se definiu através de processos que nada tiveram de lineares ou de previsíveis, em regra resolvidos à vista e caso a caso, entre importantes divergências, e, no que diz respeito a Lenine, definindo um percurso até bastante sinuoso, no qual a intuição e o voluntarismo se sobrepunham muitas vezes à planificação e à gestão racional da mudança.

                    Aqui a transição iniciada em Outubro «deu-se menos sob a cobertura de um paradigma disponível do que sob a busca de um paradigma fugidio perante uma realidade crescentemente volátil», na qual a luta de facções no interior do próprio bolchevismo, projectada muito antes da morte de Lenine e persistindo alguns anos mais depois desta acontecer, se tornara uma constante. Só com Estaline tal estado de coisas terá sido dominado pela intervenção de uma vontade coesa, forte e demolidora. Boa parte do livro aplica-se aliás, contestando a teoria de Thomas Kuhn que fala de rupturas revolucionárias repentinas impostas por posições inconciliáveis, a estabelecer um reconhecimento detalhado dos complexos «processos de transição societal» que foram permitindo, a partir da revolução, desenhar os constantes avanços, recuos e mudanças de direcção, considerando que «só o estalinismo constituiu, a bem dizer, um paradigma societal na história da Rússia soviética.» Uma porção substancial do volume ocupa-se ainda com as construções e representações identitárias que permitem hoje «interpretar o devir da Revolução Soviética», as quais passaram, atendendo ao lugar ocupado pela Rússia e à profunda complexidade social que então a atravessava, pela centralidade de «identidades de fronteira» e de bloqueios que se mantiveram após 1917. Também neste campo, apenas a ordem estalinista acabará com a indefinição.

                    Mário Machaqueiro, A Revolução Soviética, Hoje. Ensaio de releitura da revolução de 1917. Afrontamento, 344 págs. Publicado originalmente na LER de Março de 2009.

                      História

                      Cuba Sí, pero…

                      Fidel e Camilo Cienfuegos
                      Fidel e Camilo Cienfuegos

                      Alguns dos factores que no início da década de 1960 transformaram a revolução cubana e os seus rostos salientes – um Fidel persistente e carismático, o efémero mas decisivo Cienfuegos, um Che em breve tornado imortal – num factor de atracção e de romântico entusiasmo para toda uma geração de europeus ocidentais e de nascidos nas Américas que incluía intelectuais e revolucionários, mas também muitas pessoas pouco politizadas, parecerão hoje algo paradoxais. Sobretudo se observarmos aquilo em que Cuba se transformou e se identificarmos o perfil político daqueles que hoje ainda defendem sem hesitações o regime que governa o país. Essa atracção e esse entusiasmo advieram, justamente na época em que os partidos comunistas começavam a perder o pé junto de alguns dos sectores mais dinâmicos da esquerda ocidental e de uma nova geração de estudantes e de trabalhadores, do facto de os revolucionários da ilha de Martí parecerem evidenciar uma acentuada ruptura em relação à cartilha ideológica proposta a partir de Moscovo e à imagem cinzenta, gerontocrática, fornecida pelos rostos que, da tribuna do Kremlin, zelavam diariamente pela sua preservação.

                      À deriva proto-nacionalista de grande número de partidos e organizações comunistas tradicionais, ao esgotamento do padrão de sociedade que estas erguiam como paradigma, ao impacto perturbador da invasão da Hungria pelos soviéticos e das revelações de Kruchtchev no XX Congresso do PCUS, contrapunha-se a emergência de um novo e polissémico universo de expectativas que os agora renovados movimentos sociais reivindicavam, e que os barbudos cubanos, jovens, informais, arrebatados e com os olhos no futuro, com Fidel à cabeça, pareciam materializar. Não por acaso, os insubmissos cubanos, bem como os seus primeiros e incondicionais apoiantes – com Sartre, já então saído do PCF, à cabeça – foram vistos de início com muita desconfiança pelos mesmos partidos comunistas que então, é bom não esquecer, denunciaram o «aventureirismo guevarista». Hoje deparamos com a inversão destas atitudes de afeição e de desconfiança: politicamente insulada, a «revolução cubana» viria a fixar-se nos modelos de autocelebração que originalmente repudiara. Por sua vez, privados das anteriores referências fundacionais, alguns partidos comunistas passaram a erigir como modelo o regime que um dia olharam com desconfiança ou mesmo com animosidade. A História faz-se de factos, por muita reescrita que a possa envolver, mas nela a Revolução Cubana terá sempre um lugar de destaque.

                        História, Memória, Opinião

                        O outro 1º de Abril

                        Guerra Civil

                        No dia Primeiro de Abril de 1939, perfazem-se hoje setenta anos, terminou a Guerra Civil de Espanha. Singularmente violenta e persistentemente traumática, causou mais de 600.000 vítimas civis e militares caídas de ambos os lados, tendo servido de palco para um número ainda indeterminado de atrocidades. Viveu os primeiros bombardeamentos aéreos sistemáticos sobre populações civis efectuados por aviação fornecida pela Alemanha nazi e pela Itália fascista; assistiu à eliminação metódica de um grande número de militantes do POUM, a organização comunista antiestalinista, por parte de agentes da polícia política soviética lançados no terreno; e coabitou com execuções sumárias de suspeitos, em regra membros do clero ou pessoas das classes média e alta, consumadas por anarquistas e comunistas. Ao mesmo tempo, os nacionalistas faziam assentar o seu avanço militar, e o poder no terreno que a partir dele iam exercendo, sobre a chacina, o terror e depurações sistemáticas, prolongadas por muitos anos após o termo dos combates.

                        Para além da preservação da dimensão lendária desta guerra, em boa parte justificada pela forte mobilização da opinião pública ocidental que provocou e pelo empenho nas fileiras das Brigadas Internacionais de um grande número de artistas e intelectuais antifascistas, a sua memória é presentemente objecto de um combate colectivo que visa libertar do silêncio a recordação dos actos de brutalidade praticados pelos franquistas. Alterando a narrativa parcial e artificialmente benigna que estes produziram a propósito das condições em que chegaram ao poder e sobre a forma como o mantiveram. E procurando promover a reconciliação com o seu próprio passado da metade da Espanha que ao longo de décadas permaneceu calada.

                        Adenda: os Caminhos da Memória referem aqui um conjunto de seis vídeos sobre as circunstâncias e o decurso da guerra, enquanto o El País e o Público.es têm vindo a publicar excelentes artigos sobre o tema.

                          História, Memória

                          Che Guevara – um rosto sem retoques

                          Regresso a um texto que em 2002 publiquei na revista História a propósito de uma então recém-editada biografia do argentino. Uma das poucas disponíveis no mercado que não é apenas «pró» ou «contra».

                          Retomada em imagens que povoam jornais e documentários, nos muros das cidades, na decoração de espaços privados, em t-shirts e tatuagens, a expressão decidida do Che Guevara, captada há mais de trinta anos pelo fotógrafo Alberto Korda, continua a povoar a nossa imaginação. Como sinal da memória, insígnia de utopias ou insólito produto pronto-a-usar. Omissões várias e umas tantas mentiras, somadas a um certo oportunismo político e comercial – em alguns países vende-se até uma bebida gaseificada, a Revolution Soda, com o rosto do Che estampado como logótipo – têm adensado a carga simbólica que envolve um dos heróis e dos ícones do século que passou. Vale a pena desvendar o mito na sua origem.

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                            Cinema, Democracia, História, Memória

                            Entre comunismo e nacionalismo

                            Pensar o comunismo

                            Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro

                            Vencedor do Prémio de História Contemporânea Victor de Sá de 2008, eis um estudo, resultante da dissertação de doutoramento do autor, que propõe uma releitura crítica da história do PCP entre o Segundo Pós-Guerra e o 25 de Abril e lança ao mesmo tempo um olhar renovado sobre o trajecto da resistência política e cultural ao Estado Novo. A tese central de Comunismo e Nacionalismo em Portugal define a temática nacionalista como uma das preocupações políticas fulcrais da direcção do PCP a partir do final da Segunda Guerra Mundial, distribuindo-se pelas quatro partes da obra. As duas primeiras seguem mais de perto os documentos políticos partidários ou aqueles que com eles confluem, ocupando-se da construção do «comunismo nacionalista» na sua relação com o processo de reorganização dos comunistas portugueses encetado em 1941, e do discurso político do PCP na sua ligação à realidade do país e às grandes linhas teóricas sobre a «questão nacional» que resultaram da experiência histórica da União Soviética e do movimento comunista internacional. As outras duas partes, com um carácter mais abertamente prospectivo, acompanham os processos de nacionalização da cultura enunciados por diversos intelectuais comunistas ou simpatizantes, e discutem as experiências de nacionalização e de reescrita da história pátria tomadas em mãos por alguns deles. Nos últimos capítulos o autor aproxima-se, de uma forma particularmente estimulante, dos instrumentos de configuração do «ideal comunista» na sua ligação com a actividade militante internacionalista de muitos intelectuais.

                            O valor deste livro, escrito sempre de uma forma atractiva, marcada por uma grande frescura da linguagem deslocada do previsível jargão que tem sido o principal responsável pelo divórcio entre o leitor comum e a generalidade da produção historiográfica portuguesa, não pode deixar de estar vinculado a uma peculiaridade do seu autor. José Neves é um historiador ainda jovem, consagrado a uma investigação intensa já sem incorporar na experiência pessoal as marcas de muitas de algumas das duras polémicas que envolveram as gerações anteriores – as quais naturalmente conhece, mas sem com elas conservar um vínculo de dependência inevitável em quem as acompanhou mais de perto -, o que desde logo confere ao seu trabalho um benéfico distanciamento crítico. A metodologia adoptada, jogando constantemente e sem aviso prévio na abordagem sincrónica do movimento e na leitura diacrónica dos seus episódios, define também uma marca de originalidade, destacando o carácter frequentemente lento das mudanças operadas no domínio da convicção, mas também os instantes de viragem nos quais algo de novo e de dinâmico claramente emerge.

                            Olhando o trajecto histórico do qual se ocupa, o historiador reconhece principalmente os momentos e as vias de «fragilização do modo proletário», pontuado por preocupações de uma natureza vincadamente internacionalista, mas também o simultâneo «revigoramento de um modo nacional», associado uma estratégia nacionalista aplicada à actividade dos comunistas e à daqueles que com as suas causas e a sua percepção do mundo foram confluindo. É pena que o próprio PCP não se esteja a servir deste livro e do trabalho do seu autor – como o deveria fazer também em relação à biografia de Álvaro Cunhal escrita por José Pacheco Pereira, bem diversa tanto na metodologia adoptada quanto nos objectivos propostos neste livro de José Neves – para reflectir interna e externamente, isto é, ao nível da formação dos militantes e na exposição pública do seu trajecto histórico e das suas propostas menos imediatistas, sobre o seu próprio destino. Talvez um dia.

                            José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX. Tinta da China, 504 págs.

                              História

                              Primeiros anos

                              O Jovem Estaline

                              No novo volume da sua biografia de Estaline, Simon Sebag Montefiore recua no tempo para narrar a infância e a juventude do ditador desde os primeiros tempos em Gori, na Geórgia, até à intervenção destacada na tomada do poder pelos bolcheviques, percorrendo o envolvimento revolucionário que o levou a uma sucessão de prisões e de exílios, sempre razoavelmente benévolos, impostos pelo regime czarista. A abordagem proposta em O Jovem Estaline põe de parte as velhas hagiografias oficiais, que depuraram algumas das manchas de uma juventude violenta, criminosa e obscura, e recorre a documentos disponibilizados apenas a partir de 1991, o que permite construir uma narrativa detalhada, cheia de novidade e por vezes aliciante. Segue, porém, alguns caminhos que lhe reduzem o valor: desde logo um excesso de «psicologismo» adiantando afirmações sobre a construção da personalidade megalómana e psicopata de Estaline que aqui não passam de hipóteses; depois, uma fixação excessiva na descrição de episódios rocambolescos, alguns deles envolvendo o lado mulherengo do georgiano, que poderiam servir um argumento de comédia mas desviam a atenção da fundamentação interpretativa; e, por fim, a construção de um retrato íntimo através de estratégias, próprias das utilizadas nas biografias ficcionadas, que uma obra de natureza assumidamente historiográfica deve usar com parcimónia. [Trad. de Victor Antunes, Manuela Novais Santos e Maria José Figueiredo. Alêtheia, 512 págs. Originalmente na LER de Fevereiro.]

                                História

                                Outubro em breve

                                Outubro de 1917

                                A série Outubro, sobre a sequência, a apoteose e o impacto mundial da Revolução de 1917, que aqui foi publicada em dez episódios entre 2007 e 2008, sairá em breve em livro homónimo numa versão bastante revista e um pouco aumentada. A edição será da Angelus Novus. Serão divulgadas mais informações sobre o livro durante a 2a. quinzena de Abril. Entretanto os posts originais deixaram de estar disponíveis.

                                  História, Novidades

                                  À volta do Império do Meio

                                  China

                                  Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro

                                  Os chineses denominam a China de Zhongguo, traduzido no passado como Império do Meio e hoje como País do Centro. A designação reflecte uma visão sinocêntrica do mundo, concebendo-se inicialmente Zhongguo como a quase totalidade da terra conhecida, cercada apenas por alguns potentados tributários que se submetiam ao poder do imperador. Do lado de fora, a distância geográfica, a efabulação presente nos escassos relatos e as imagens de exotismo colocavam os chineses num mundo à parte, admirado ou temido mas sempre estranho e insulado. Dentro e fora da Grande Muralha e das linhas de fronteira, fixava-se um desconhecimento mútuo, que já só no século XX, com a expulsão do último imperador da Cidade Proibida, o estrépito planetário da Revolução Cultural, ou, mais recentemente, a abertura económica ao mundo, pôde ser abalado. Mas como diz Harry G. Gelber neste O Dragão e os Diabos Estrangeiros, o fluxo e o refluxo do interesse dos outros Estados e das outras sociedades pela China tem sido relativamente ignorado.

                                  O que esta obra se propõe desenvolver não é, pois, uma mera história da China a partir do seu desenvolvimento interno, mas sim uma narrativa das ligações entre os chineses e o resto do mundo apoiada em três vertentes, conferindo-se especial ênfase ao modo como esse relacionamento determinou, e continua a determinar, a vida interna do imenso Estado e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do seu lugar no mundo. A primeira vertente aborda as relações físicas propriamente ditas, o contacto, frequentes vezes violento, dos chineses com outros povos: desde as primeiras incursões dos cavaleiros das estepes até às conquistas mongóis do século XIII, continuando depois com a chegada dos primeiros europeus, e prosseguindo até fechar com as reacções estrangeiras aos acontecimentos da Praça Tienanmen, em 1989. A segunda procura explicar o que movia as diversas potências no processo de aproximação ou de intervenção no território ou na política interna da China. A terceira identifica e documenta três problemas que se têm mantido recorrentes durante um tão longo período, determinando regularmente a vida interna chinesa e o relacionamento com o exterior: o enorme crescimento populacional, o carácter centralista e personalizado da administração central, e a volatilidade das fronteiras.

                                  Como seria de esperar numa obra desta natureza escrita no início do século XXI, acompanhando a preocupação com este tipo de relacionamento encontra-se sempre o lugar de destaque que a China ocupa hoje no mundo. No capítulo final, «A Caminho do Futuro?», considera-se o seu papel de relevo no domínio da ciência e da tecnologia, bem como o modo como interfere nas actuais tendências da economia mundial, evidenciando um crescente peso na balança do poder global e criando as melhores condições para um retorno daquele medo que fora das suas fronteiras sempre despertou.

                                  Harry G. Gelber, O Dragão e os Diabos Estrangeiros. A China e o Mundo, de 1100 a.C. até à actualidade. Tradução de Pedro Garcia Rosado. Guerra e Paz, 568 págs.

                                    História