Arquivo de Categorias: História

Brilho nos olhos

Olof Palme

28 de Fevereiro. Passam hoje 26 anos sobre o assassinato de Olof Palme, o político e primeiro-ministro sueco que ajudou a recolocar a social-democracia europeia no eixo do combate contra as desigualdades. A sua via não foi a tíbia e desgraçada «terceira», que nos anos 90 devolveria a vida ao caduco liberalismo, mas a de um socialismo democrático construído na conciliação da liberdade individual e da economia de mercado com a afirmação do Estado social e com a solidariedade entre os povos e as nações. Palme faz-nos falta porque nos fazem falta políticos francos e corajosos. Que pensem grande e pensem alto. Dos quais se possa duvidar mas a quem se respeitem sempre o rasgo e a coerência. Faz-nos falta porque nos fazem falta políticos com brilho nos olhos.

«Throughout history, people have lived in poverty and misery. They have been degraded by hunger and ignorance, they have tormented each other and been driven into war. Yet, not everything has remained the same: The difference is that we have acquired greater knowledge. The difference is, above all, that we are beginning to display a willingness to take responsibility for each other. Therefore, it is not without meaning when we react, take a stance and, to the best of our ability, try to influence human development.»

    Biografias, Democracia, História, Olhares

    Vida e destino de um romance

    Vassili GrossmanQuando, em outubro de 1960, Vassili Grossman enviou o manuscrito de Vida e Destino para o chefe de redação da revista Znamia, este passou-o de imediato para as mãos do KGB. Ainda que se vivesse então a época do «degelo» kruscheviano e da crítica pública dos crimes brutais e genocidas de Estaline, as consequências não demoraram a fazer-se sentir: o apartamento do escritor judeu ucraniano foi revistado, as cópias, os rascunhos e até as fitas de tinta das máquinas de escrever foram de imediato apreendidos. Grossman viveu a perda do seu romance, resultado de dez anos de intenso trabalho, como uma catástrofe pessoal, irreversível. Morreria três anos mais tarde na obscuridade, sem conseguir recuperar do desgosto e do desânimo. No imenso panorama da sociedade soviética que é este romance, comparado muitas vezes à obra maior de Tolstoi, o escritor retrata de forma realista, mas inegavelmente distante do cânone estético e político oficial, a vida durante a Segunda Guerra Mundial, com particular ênfase na ofensiva alemã, e na defesa e contraofensiva soviéticas, que culminaram com a libertação de Estalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis. Episódios que o autor, aliás, diretamente viveu como correspondente de guerra ao serviço do Exército Vermelho, para o qual se havia voluntariado como soldado raso.

    Estabelece-se ali, e terá sido com toda a certeza essa a razão principal da desgraça do romance e do seu criador, uma incómoda analogia entre os processos de controlo político usados pelos sistemas totalitários nazi e soviético, sobressaindo o antissemitismo estrutural que, com diferentes cambiantes, de facto partilhavam. No centro da trama, a vida atribulada de uma família de «classe média», seja lá o que isso pudesse ter significado na era estalinista, dramaticamente dispersa entre a Alemanha e a Sibéria pelas circunstâncias da guerra e das suas sequelas. Após o poeta Lipkine, o físico Sakharov e o escritor Voïnovitch terem conseguido fazer sair da União Soviética um microfilme feito a partir de dois manuscritos entretanto recuperados, o texto será impresso em russo em 1980, numa pequena tiragem da responsabilidade de um editor suíço, antes de começar a ser traduzido em numerosas línguas. Em 1988, no auge da perestroika, foi finalmente editado em Moscovo. No entanto, na Rússia, e ao contrário do que tem acontecido mais a ocidente, o reconhecimento público da dimensão desta obra imensa e de leitura imersiva, bem como o do percurso pessoal e intelectual do próprio Grossman, gradualmente distanciado do regime soviético, têm sido claramente exíguos. Como, citado pela revista francesa Books, escreveu o encenador Lev Dodine no semanário Itogui, tal não pode deixar de acontecer numa sociedade que «emprega o essencial da sua energia a renegar o próprio passado».

    Vassili Grossman, Vida e Destino. Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra. Dom Quixote. 856 págs.

      Biografias, Ficção, História

      Repressão em Atenas

      Manolis Glezos
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      Está neste momento a circular pelas redes sociais uma fotografia particularmente perturbante que funciona como eloquente sinal do Estado de guerra social total no qual se encontra a Grécia. Nessa imagem (que pode ver aqui; a que ilustra este post é diferente) observa-se a polícia a tentar manietar Manolis Glezos, de 90 anos, um antigo herói da resistência ao nazismo e um experiente político de esquerda que chegou a ser deputado europeu, sem o menor respeito pelas razões, pela idade e pelo papel na história do país do símbolo que tinham pela frente. Um péssimo exemplo da vaga de desprezo pelos direitos democráticos e sociais mais elementares que começa a varrer a Europa.

      Adenda – As imagens foram-me transmitidas como se fossem de agora. Acabo de saber que são de 2010. No entanto, Manolis Glezos esteve nos protestos de ontem e terá sido hospitalizado.

        Apontamentos, Democracia, História, Olhares

        Uma Idade Média sem Disney

        © Kegriz

        Atribui-se a Petrarca a expressão «Idade das Trevas» aplicada aos séculos que imediatamente o precederam. Ter-se-á iniciado dessa forma uma observação negativa do mundo medieval que nem o romantismo conseguiu atenuar de forma significativa. Os medievalistas abominam naturalmente este qualificativo, tomando-o como marca de ignorância em relação ao período histórico da sua predileção e que tão bem conhecem. A obra coletiva Idade Média, organizada por Umberto Eco e distribuída por quatro grossos volumes dos quais o primeiro foi recentemente editado pela Bertrand, representa um poderoso antídoto para combater essa intoxicação que afeta o conhecimento e a representação de parte importante do nosso passado comum. Nessa direção, Eco sublinha a efetiva multiplicidade daquele período, o brilhantismo de muitas das suas conquistas, a dimensão celebratória da vida que também integrou, o modo como afinal não ignorou a cultura clássica e a ciência da Antiguidade, como foi também sensível às trocas entre povos e civilizações, como não foi apenas a época negra da ortodoxia e da morte triunfantes. Embora, como se sabe e esta obra não nega, tivesse sido tudo isso também. É nesta direção, aliás, que contrariando o imposto por determinadas formas de alimento do nosso imaginário partilhado, nela se insiste em sublinhar que a Idade Média não foi «uma época de castelos torreados como os da Disneylândia».

        Umberto Eco (organização), Idade Média. I – Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos. Trad. de Bonifácio Alves. Bertrand Editora. 786 págs.

          História

          Uma Europa pisada e exangue

          Bloodlands, Terra Sangrenta na tradução portuguesa, inscreve-se numa região delimitada da Europa Oriental na qual se fixou, desde os finais do século XVIII até à Segunda Guerra Mundial, com proibição de habitar noutras paragens, um conjunto importante de comunidades judaicas, até aí errantes, com as quais só uma pequena parte da primitiva população se fundiu. Servindo-nos de um mapa atual, podemos dizer que ela se estendia entre o Báltico e o Mar Negro, desde o leste da Polónia até à parte mais ocidental da Rússia europeia, integrando a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia. Ali foi sendo levantado um microcosmos cultural muito próprio, fundado numa sociedade particularmente dinâmica em volta da qual cedo confluíram, todavia, os fantasmas mais negros e letais do antissemitismo. Foi sobre este território que o historiador americano Timothy Snyder desenvolveu o extenso trabalho de investigação do qual resultou uma obra que nos desperta para uma realidade nem sempre olhada de frente e com rigor. (mais…)

            Democracia, História, Leituras

            Galvão: um herói português

            Henrique Galvão

            É possível que jamais venha a escrever-se uma história da oposição ao Estado Novo capaz de mostrar a trajetória das muitas figuras, hoje reconhecidas como questionadoras da autoridade de Salazar e das orientações do regime, que com um e outro confluíram em muitos momentos ou a propósito de determinados princípios de política. Exemplar deste estilo de percurso é o capitão Henrique Galvão, cuja biografia, da autoria de Francisco Teixeira da Mota, acaba de ser editada. De facto, Galvão é hoje principalmente recordado pelo seu papel na luta contra o Estado Novo, que ocupou sensivelmente a última década da sua vida, e em particular pela retumbante iniciativa, concretizada em 1961, do assalto ao paquete Santa Maria. Foi aliás por esta atitude de resistência ativa que, trinta anos mais tarde, o Presidente Mário Soares o condecorou postumamente com a grã-cruz da Ordem da Liberdade. Todavia, durante a maior parte do trajeto cívico que escolheu, o seu posicionamento foi o diametralmente oposto, tendo participado no 28 de Maio, ocupado lugares de destaque no aparelho do regime (como importante dignitário da administração colonial, primeiro diretor da Emissora Nacional, organizador da Exposição Colonial do Porto e da Exposição do Mundo Português, deputado da União Nacional, entre outros) e defendido posições autoritárias, anticomunistas e até de apreço pelo nazismo. (mais…)

              Biografias, História

              Primavera dos Povos (o regresso)

              Barricadas em Paris (1848)

              Quanto mais o tempo passa e os acontecimentos se sucedem em catadupa sem o vislumbre de uma solução, mais se confirma uma certeza: não existe, para a Europa, alternativa aos demónios do nacionalismo que não passe por um forte esforço federalista, por muito que se encontrem em aberto as modalidades que este possa tomar. Como escreveu o medievalista californiano Patrick J. Geary no excelente O Mito das Nações (editado pela Gradiva), «os europeus têm de reconhecer a diferença entre o passado e o presente se quiserem construir um futuro». Isto é, têm de saber que a preservação a todo o custo dos velhos modelos da identidade nacional os pode empurrar para o abismo. Ou então a lutarem entre si até que o mais forte seja capaz de estabelecer uma nova ordem em seu benefício. O «perigo alemão» está a tornar-se real e não será o restabelecimento das fronteiras vigiadas ou uma nova guerra (fria, morna ou quente) que o impedirão de afirmar-se. Será antes, todos temos de perceber isso e mobilizar vontades para o conseguir, a construção de uma Europa federada, paritária, solidária e realmente democrática. Conseguida pelo erguer vigoroso das consciências e das vontades, no irromper, agora necessariamente concertado, de uma nova «primavera dos povos». Parece a sua consideração um vestígio dos ideais de 1848? Pois parece. E daí? O tempo é outro, existem novos e pesados condicionalismos, o passado não pode comandar o que está para vir, mas os contornos essenciais da nuvem ameaçadora – governos autocráticos, crises económicas, perda dos direitos das classes médias, desemprego crescente, leis do trabalho insidiosas, agressividade dos nacionalismos – têm um desenho muito parecido com o daqueles anos tumultuosos. E requerem medidas rápidas. Em 48 foi o próprio Alexis de Tocqueville que lançou na Câmara dos Deputados de Paris: «Nós dormimos sobre um vulcão… Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez?»

                História, Olhares, Opinião

                O lugar da cobardia

                A frase «dos fracos não reza a História» assinala a infâmia daqueles que não enfrentam as dificuldades ou se vergam diante do mais forte. Sublinha a vileza sem remissão de toda a cobardia. Estigmatiza sem piedade a sua lembrança. O seu uso supõe no entanto uma condição: a de que se observe o tempo como tribunal e como teatro diante do qual cada um é julgado pela forma como representou o seu papel. Com a crescente depreciação da História enquanto espaço para um julgamento equitativo da experiência, com a sobrevalorização do imediato e do valor de mercadoria, a expressão parece hoje deixar de fazer sentido. A valorização da cobardia e da apatia diante da força não é nova, mas estava antes confinada aos oportunistas, aos agiotas, aos tiranos e aos tolos. Agora parece por vezes transformar-se em bússola do bom cidadão, exilando-se quem pensa no longo prazo, ou defende a necessidade da resistência diante da injustiça, para o campo minado da irrelevância ou mesmo do crime. No entanto tudo isto obedece a ciclos, a etapas em rápida corrente e contracorrente, e inevitavelmente será a própria História a tratar do assunto pela medida seletiva de sempre. Em nome da coragem e do futuro, é sempre bom sabê-lo. Ou pelo menos acreditar nessa possibilidade.

                  Atualidade, História, Olhares

                  Elizabeth e Hazel

                  Se existe atitude pela qual tenho um afeto particular, é ela a capacidade de regeneração que certas pessoas conseguem aplicar ao seu aparente destino, assumindo mudanças de atitude, de crença e de sensibilidade que contrariam as imposições do meio, a tradição familiar, os códigos impostos no ambiente de trabalho, o quadro político que um dia adotaram, os padrões que julgaram inquestionáveis. Talvez mesmo o código genético que sentem na boca mas que se esforçam por contrariar. Esta é no entanto uma escolha difícil e geralmente mal entendida, apesar do aforismo segundo o qual «só os burros não mudam». A maioria das pessoas, é esta a verdade, arruma o seu mundo em gavetas e prateleiras, cola etiquetas identificadoras nos outros e em si própria, e reage mal a uma mudança profunda, que vê sempre como gesto de oportunismo, falha de personalidade ou sinal de uma patologia esquiva. Está comprovado que existem traços de sensibilidade e de feitio, princípios de ética, gestos de etiqueta, modalidades de gosto ou de desgosto, que geralmente se conservam inalteráveis, mesmo quando quem os detém muda de cara ou de quadrante. A frase, tantas vezes dita, «isso é mesmo dele», ou «é mesmo teu», traduz esse elo de continuidade que, como a pele e as sobrancelhas, transportamos ao longo da vida. Mas, para além desta permanência, existe sempre um mundo de possibilidades capaz de levar um homem ou uma mulher a mudar o seu destino. (mais…)

                    Apontamentos, Democracia, História, Olhares

                    Da paz podre

                    Logo pela manhã, um post da Helena Araújo relembrou-me um pormenor, associado à história dos símbolos, que tem tanto a ver com episódios passados da nossa vida coletiva como com situações agora mesmo diante dos nossos olhos. A imagem ou a silhueta da pomba tem servido em tempos e lugares diversos como sinal da paz, do amor, da maternidade, da gentileza ou da figura do mensageiro. De acordo com a tradição bíblica, após o Dilúvio, teria sido uma pomba enviada em demanda de terra firme que, ao regressar à Arca com um ramo de oliveira no bico, sinalizou a Noé o recuo das águas e a possibilidade de retomar a vida sedentária. Para uma boa parte dos cristãos, é também o sinal visível do Espírito Santo, essa parte imaterial da Santíssima Trindade que se não vê, que não se toca, mas que se sente, anunciando na Sua omnipotência e na Sua bondade, a fundação e a intervenção da Igreja. No século XX, todavia, a dimensão simbólica do pequeno ser alado passou a estar associada mais sistematicamente à ideia de paz ou à defesa militante do pacifismo, sendo recuperada, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, em publicações, emblemas e estandartes, por numerosas campanhas antiguerra ou de propaganda da não-violência. (mais…)

                      Atualidade, Democracia, História, Opinião

                      De fazer corar qualquer trotskista

                      Tudo aconteceu no século passado, mas mora  ainda na memória de quem viveu para contá-lo. Nós, os maoistas, éramos bem mais do que se diz, embora bem menos do que pensávamos, e tínhamos um programa: libertar o país do fascismo, derrotar o colonialismo, destruir as bases da opressão capitalista, e, no fim, começar a construir uma sociedade mais feliz e igualitária, sem malfeitores ou parasitas. O inimigo principal era pois a burguesia, o colonial-fascismo e a PIDE. A seguir, vinham os reformistas, que identificávamos, algo exageradamente, com uma mescla de social-democratas, republicanos caquéticos, pequeno-burgueses hesitantes e comunistas pró-Moscovo. Na base da escala, e para honrar a origem estalinista que partilhávamos (com o querido camarada Lavrentiy Beria nos corações), estavam os trotskistas. A sua presença era no entanto reduzida a estereótipos sobre os exageros das preocupações teóricas e a mania congénita do fraccionismo, como aquele que dizia que onde existiam dois trotskistas o debate conduzia inevitavelmente ao surgimento de três tendências. Pura ilusão a nossa, que não olhávamos – por motivos de natureza conspirativa, obviamente – para os nossos próprios pés sectários. A um antigo camarada que há dias se referia com admiração ao mapa do maoismo em Portugal que o Miguel Cardina publicou no seu recente livro e o Ípsilon desta semana integra, com pequenos erros, apenas na edição para tablets (ver aqui), só me ocorreu dizer: «É de fazer corar de vergonha qualquer trotskista!»

                        Apontamentos, História, Memória

                        Democracia e trivialização da maçonaria

                        Muito antes da atual polémica pública se instalar, ocorreu-me uma ou outra vez escrever sobre a maçonaria, os seus caminhos, atalhos, desvarios e remanescentes sinais da antiga e agora decaída grandeza. Ao longo dos anos 80 e 90, algum trabalho académico levou-me a encontros laterais mas regulares com a sua história muitas vezes heróica, algumas outras menos edificante, sempre rica em peripécias, escrita no curso dos últimos três séculos. Talvez por isso pudesse ter qualquer coisa de razoável a dizer sobre o assunto. Pareceu-me, no entanto, que muito do que poderia escrever iria acertar em pessoas concretas, algumas conhecidas e aos meus olhos inteiramente respeitáveis, que pertenciam honesta e convictamente à instituição maçónica. Além disso, vivia-se uma época na qual, para além dos cidadãos diretamente envolvidos, apenas os entusiastas das práticas esotéricas se interessavam pelo tema. Entendi por isso, pesando o interesse do caso, que a polémica na qual me iria meter não valeria o esforço. E dessa forma fui adiando o que tinha para dizer sobre esse mundo particular que passou agora, pelos piores motivos, para os grandes títulos da imprensa e dos telejornais. Mas não será ainda desta vez que o farei com detalhe, limitando-me a um curto apontamento.

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                          Atualidade, História, Olhares, Opinião

                          Nostalgia e utopia

                          Nostalgia

                          A Priberam acaba de divulgar os dados anuais de acesso ao seu dicionário de português online. A palavra mais procurada em 2011 foi «nostalgia», seguida por «amor», que tinha conseguido o primeiro lugar em 2010, mas cujas buscas foram diminuindo ao longo do último ano. Existe uma leitura simples, linear, desta tendência, que remete sem grandes hesitações para um interesse pelo passado observado, no atual contexto de recuo dos direitos sociais e das expetativas individuais, como uma «idade do ouro» tão quimérica quanto desejável. Mas podemos ir mais longe na observação do conceito. Recordei então um artigo escrito em 2007 e que tem um pouco a ver com isto tudo. Sendo um texto mais académico, encontra-se num registo diverso daquele adotado neste blogue. Transcrevo, por isso, apenas o primeiro parágrafo, remetendo depois para um link externo que leva ao artigo completo. Dada a altura em que foi concluído, não segue as normas do último acordo ortográfico.

                          A experiência contemporânea encerra uma sobrecarga da memória e um interesse pelo passado que adoptam a nostalgia como ferramenta da utopia. Percorremos os jornais e as colecções multimédia que oferecem, observamos a publicidade que apela a reminiscências identitárias, constatamos a atenção da crítica e a crescente popularidade dos filmes, romances, documentários e concursos que se cruzam com o fio da história. Reconhecemos também o revivalismo e as dinâmicas de celebração que integram a política cultural dos governos e das autarquias, ou se revelam em iniciativas públicas de diversas instituições. Ao mesmo tempo que o ensino da história recua nos currículos escolares e se reduz a banalidades, um interesse crescente pelo passado e pela sua carga simbólica emerge e expande-se aos nossos olhos, como via escolhida para a imaginação de uma vida-outra. [O artigo completo em formato pdf está aqui.]

                            História, Memória, Olhares

                            O regresso do mundo bipolar

                            Logo no prefácio deste Da China, Henry Kissinger informa que desde a viagem secreta a Pequim no ano de 1971, realizada, segundo instruções de Richard Nixon, com o objetivo de restabelecer o contacto entre os Estados Unidos e aquele país e de preparar um pacto de defesa antissoviético, esteve neste país mais de cinquenta vezes. Algumas delas na qualidade de Secretário de Estado dos presidentes Nixon e Ford, outras nas de académico e investigador de temas de política internacional e diplomacia, outras ainda a título particular. Entre estas últimas, sem dúvida – Kissinger não o refere mas a capa do livro di-lo claramente – algumas na qualidade de presidente da Kissinger Associates, Inc., uma empresa de consultadoria internacional obrigatoriamente atenta às transformações das últimas décadas e à afirmação da China num âmbito global. Em todo o caso, transversal às diversas qualidades do visitante é o conhecimento que este foi acumulando da história e da realidade chinesas. Destaca por isso, nos capítulos iniciais, a forma como ao longo do século XIX, por vontade própria ou não, as autoridades do país começaram a pôr termo ao tradicional isolamento, tecendo uma diplomacia complexa e criteriosa destinada a controlar uma abertura imperativamente gradual. Um dos caminhos mais evidentes tomados por este volume resulta pois do esforço para, sem negar as vicissitudes históricas vividas na região e as sucessivas configurações que o poder político foi tomando, nele se demonstrar a existência de uma linha de continuidade estratégica, no campo das relações com o exterior, que o autor acredita remontar ao tempo dos mongóis e da dinastia Manchu e se terá estendido de modo quase ininterrupto até à atualidade. (mais…)

                              Atualidade, História

                              O chalet de Judt

                              Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências. (mais…)

                                História, Memória, Olhares

                                O riso de Václav Hável

                                Václav HávelNo início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.

                                Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.

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                                  Abogi, Abogi! (Adeus Querido Líder!)

                                  A morte de Kim Jong-il está a servir ao governo norte-coreano para intensificar uma das características mais brutais do seu «socialismo dinástico»: o drama da escravidão dos corpos e das consciências imposto à generalidade dos cidadãos, sob o efeito da repressão, do treino, da propaganda, do preconceito e da ignorância de realidades alternativas. Do livro de Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), que venceu em 2010 o Prémio Samuel Johnson e compila diversos testemunhos de cidadãos da Coreia do Norte que puderam passar a fronteira e escapar ao regime concentracionário de Pyongyang, retiro uma descrição de momentos que se seguiram, em 8 de julho de 1994, ao desaparecimento de Kim Il-sung, fundador do regime. O paralelismo com as cenas públicas de hoje é inevitável.

                                  – Abogi, Abogi! – gemiam as velhas, empregando o título honorífico usado para uma pessoa se dirigir ao seu pai ou a Deus.

                                  – Como pudeste deixar-nos assim de repente? – gritavam os homens por sua vez.

                                  Os que esperavam na fila saltavam para cima e para baixo, batiam na cabeça, caíam em desfalecimentos teatrais, rasgavam as roupas e davam murros no ar, numa raiva inútil. Os homens choravam tão copiosamente como as mulheres.

                                  A teatralidade da dor assumia um aspeto competitivo. Quem conseguia chorar mais alto? Quem estava mais perturbado? Os que prestavam o seu tributo eram incitados pelos noticiários televisivos, que transmitiam horas e horas de pessoas a prantear, homens adultos com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a baterem com a cabeça nas árvores, marinheiros a baterem com a cabeça nos mastros dos navios, pilotos a chorarem na cabina de pilotagem, e assim sucessivamente. Estas cenas eram intercaladas com imagens da trovoada e dos copiosos aguaceiros. Parecia o dia do Juízo Final. (mais…)

                                    Atualidade, Democracia, História, Olhares

                                    Contra a supressão dos feriados

                                    Abaixo-assinado da responsabilidade de um conjunto de historiadores.

                                    A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.

                                    Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. (mais…)

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