Arquivo de Categorias: História

Marcuse de volta

Herbert Marcuse

Protegido provavelmente pelo estado de confusão no qual viviam os censores do marcelismo, em janeiro de 1971 o semanário de atualidades Vida Mundial, com uma tiragem, exorbitante para a época e para o país, de 40.000 exemplares, fazia a capa com um cartoon representando Herbert Marcuse, ao qual dedicava um dossiê inteiro. A razão da escolha: pouco tempo antes, já com setenta anos cumpridos, o filósofo da Escola de Frankfurt passara para a ribalta ao ser apropriado pela reflexão libertária e crítica da sociedade pós-industrial que integrou a vertente mais radical e antissistema das movimentações saídas de Berkeley e do «Maio francês». Em 1955 saíra Eros e Civilização, obra que recorria à conceção freudiana do progresso da civilização para demonstrar como a sociedade capitalista altera e condiciona o desejo. Uma posição muito naturalmente sedutora para o padrão hedonista de representação do mundo que moldava a cultura sixtie. Foi no entanto em 1964, com O Homem Unidimensional, só agora traduzido e editado em Portugal, que Marcuse passou a integrar o núcleo duro dos acusadores da sociedade tecnológica desenvolvida que considerava um fator de escravidão.

A particularidade desse modelo societário residiria então, para além de seu elevado nível de automação, no facto de suscitar um enganador «funcionamento suave do todo». Este assumiria características totalitárias, já que continha «uma coordenação técnico-económica não-terrorista» capaz de operar «através da manipulação das necessidades por interesses estabelecidos», impedindo desta forma o surgimento de «uma oposição eficaz ao todo». O próprio indivíduo transformar-se-ia num produto da alienação provocada por uma sociedade consumista e massificada, dentro da qual a possibilidade de oposição fora suprimida ou desviada, criando uma forma unívoca, padronizada, de pensamento e de ação. Obra de denúncia do modelo monstruoso para o qual o capitalismo parecia empurrar a sociedade, foi no entanto reprovada por uma parte da crítica de esquerda por não oferecer uma via de escape para essa forma servidão que impunha ao indivíduo uma atitude conformista, consumista e acrítica. No entanto, se bem que a estrutura da obra defina principalmente uma intenção analítica – desenhando um quadro ainda hoje de considerar – não terá sido acidental a escolha da frase redentora de Walter Benjamin com a qual termina: «Só através dos que não têm esperança a esperança nos é dada.»

Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional. Sobre a Ideologia da Sociedade Industrial Avançada. Trad. de Miguel Serras Pereira. Letra Livre. 326 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.

    Atualidade, História

    A glória do bicho-papão

    Napoleão Bonaparte

    Charles Esdaile começa por recordar que Napoleão Bonaparte é, depois de Jesus Cristo, a personalidade histórica mais vezes representada no cinema, e também uma daquelas sobre quem mais se escreveu. Lembra também que poucos notáveis do passado determinaram posições tão extremadas, no seu próprio tempo ou na posteridade, quanto aquelas que desde cedo se definiram em volta do caráter, da ação e das intenções do «leão corso». De um lado, um certo entendimento da sua aparência como a de um monstro, capaz de pôr um continente inteiro a ferro e fogo apenas determinado por um desejo insaciável de poder e de fama. Do outro, a representação positiva de um visionário com papel decisivo no despertar da «Europa das nações», prova provada do dinamismo do «grande-homem» na História. Sem a intervenção do qual, no caso em apreço, o fim do Ancien Régime e a reforma política e administrativa da coisa pública não poderiam ter sido obtidos do modo e nos termos em que ocorreram. (mais…)

      Biografias, História

      1962 e agora

      Os cinquenta anos virados sobre o eclodir, em Portugal, da Crise Académica de 1962, têm dado lugar a um conjunto de iniciativas públicas. Iniciativas importantes por três motivos. Primeiro motivo: porque têm reunido muitos homens e muitas mulheres, antigos ativistas ou participantes, que sem excesso de nostalgia nos têm ajudado a perceber como a sua ação, naquela época, foi muito importante para fazer crescer as fileiras da resistência à ditadura salazarista. Segundo motivo: porque têm agregado a intervenção, ao nível da informação e da interpretação dos acontecimentos, de historiadores, jornalistas e outras pessoas com um papel essencial na transformação daquilo que são as experiências e as recordações de alguns em património coletivo ao dispor de todos. Terceiro motivo: porque no contexto atual têm servido para mostrar como, muitas das vezes, a energia de uma minoria pode exprimir e servir de motor à participação cidadã do coletivo, revelando que a resignação de nada serve e que a coragem pode ser um fator de mudança.

      Mas já não justifica grande atenção a tentativa, levada a cabo em alguns jornais, de pôr em paralelo o associativismo universitário da época e o atual. As diferenças históricas são óbvias e todos as reconhecem: o mundo e o movimento estudantil deram muitas voltas ao longo destas cinco décadas, tanto em Portugal como em toda a parte. O que é incompreensível é tentar estabelecer semelhanças entre os principais ativistas de 1962 – em regra pessoas culturalmente muito preparadas, com um forte sentido cívico e reconhecidas no terreno – e os seus sucessores «no cargo», jovens geralmente pouco aptos do ponto de vista cultural, que da intervenção estudantil possuem uma dimensão corporativa, e que «representam» colegas em regra incapazes de lhes identificarem os rostos. Falamos, de facto, da água e do vinho. Claro que ninguém pretende encontrar cópias, hoje, do que foram os ativistas de ontem. Os de 1962, os de 1969-74, ou os dos anos 90. Mas hoje, hoje mesmo, continuam a percorrer as universidades estudantes inteligentes, cultos e generosos, com uma perceção dinâmica do papel que podem ter na mudança do país e não apenas na das suas vidas. Só que não estão, geralmente, nas direções associativas, organizando-se ou agindo à margem destas. Esta é a realidade e comparações absurdas iludem os leitores.

        História, Memória, Olhares

        Vinhos & enchidos

        «Dar de comer a um milhão de portugueses.»

        A palavra «provinciano» aplica-se a duas condições diferentes, embora muitas vezes complementares. Uma distingue «aquele que é da província» ou «que vem da província», tendo nascido e vivido uma parte ou a totalidade da sua existência muito longe das grandes cidades e do ruído das autoestradas. E isso somos muitos. A outra, pejorativa, integra a tacanhez de quem apenas habita o lado plácido, repetitivo e intensamente conservador do mundo, ou a de quem, mesmo cruzando as avenidas e os ritmos das cidades, se afasta dos caminhos por onde flui e se desdobra o múltiplo que carateriza a vida moderna. Provinciano é pois aquele que ignora, por imposição do meio, ou então deliberadamente, aquilo a que Baudelaire chamava «o transitório, o fugitivo, o contingente», fixando-se antes no que acredita ser eterno, imutável e apenas visível em pequena escala. Esta aceção mais integral foi ferida na sua dignidade com a interferência dos meios de comunicação de massa – primeiro a rádio, depois a televisão, por fim a Internet – generalizados durante a segunda metade do último século. A condição do provinciano deixou então, para muitos, de ser uma inevitabilidade, passando a definir-se ainda mais como uma escolha, uma opção pelo padrão de vida que rejeita a novidade, as atividades mundanas e, em consequência, a diferença.

        A notícia lida nos jornais sobre o projeto de uma marca de vinhos a comercializar a partir de Santa Comba Dão, o concelho natal do antigo ditador, sob a designação de «Memória de Salazar» – estando desde já prometido um esforço de marketing equivalente a aplicar a uma marca de enchidos –, enquadra-se nesta dimensão do provinciano. É um bom exemplo, talvez extremo, do que podemos ler ou ouvir todos os dias seguindo grande parte dos jornais ou das emissoras de rádio localistas e regionalistas: o culto da «figura grada» da terra, transformada em símbolo que supostamente a eleva diante das outras. É normalmente alguém que por aquelas partes passeou um pouco de poder e em consequência algum dinheiro. O doutor, o comendador, o industrial, o benemérito que, para o espaço da aldeia, da vila, da pequena cidade, da pequena mente, substitui sem hesitação o escritor, o poeta, o artista, a figura da ciência ou da cidadania, preenchendo preferencialmente as placas toponímicas e as colunas das folhas locais. Este projeto santa-combense, a materializar-se, será, de facto, mais um ato de provincianismo do que de revanchismo salazarista. Não destaca a grandeza de uma figura local ou as qualidades de um concelho, mas a pequenez de quem propõe uma iniciativa tão desastrada. E é como tal que deve ser rejeitado. Ou boicotado. Santa Comba Dão não pode exibir, sob o pretexto de apoiar um produto local, a celebração da repressão e do ódio aos quais, enquanto houver memória, permanece associada a figura do seu natural. Será mau, desde logo, para a própria terra e para os seus.

          Apontamentos, História, Memória

          Rosa, a Vermelha

          É sabido que depois da cisão entre os bolcheviques e os mencheviques russos, consumada em 1904, a polaca-alemã Rosa Luxemburgo se opôs a Lenine e à sua conceção autoritária de centralismo democrático. Aliás, em 1918 chamou de novo a atenção para a tentação de confundir a ditadura do partido com a do proletariado. E, quando estes começaram a excluir «todos aqueles que pensam de maneira diferente», não deixou de criticar aos bolcheviques o esvaziamento da democracia dos sovietes a que essa política inevitavelmente conduziria. A mais conhecida das suas citações, retirada de um texto publicado na altura, é, aliás, «a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de forma diferente». Pode ainda recordar-se uma outra frase, também do ano seguinte ao da revolução soviética: «Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião sem restrições, sem um forte combate de ideias, a vida de toda a instituição pública morre, tornando-se uma mera aparência de vida na qual só a burocracia permanece como elemento ativo». Quando se completam 141 anos sobre o nascimento de Rosa, é caso para dizer que a História foi madrasta ao levá-la tão cedo – morta em Berlim em 1919, durante a revolta spartakista, às mãos das milícias da direita, e não da social-democracia alemã como se mente por aí –, poupando a Vladimir Ilitch a refutação de uma voz à altura. Provavelmente a história geral do socialismo seria contada hoje de um modo bastante diferente.

            Apontamentos, Biografias, Democracia, História

            Preston, Garzón e o Holocausto espanhol

            O historiador britânico Paul Preston considera que durante a Guerra Civil de Espanha perto de 200.000 homens e mulheres foram assassinados longe das áreas de batalha, executados extrajudicialmente ou na sequência de processos sumários. Morreram em consequência do golpe militar contra a Segunda República levado a cabo em julho de 1936. Pelo mesmo motivo, pelo menos 300.000 homens perderam a vida nas frentes de combate. Além disso, um número desconhecido de homens, mulheres e crianças foi vítima dos bombardeamentos e dos penosos êxodos que se seguiram aos avanços das forças de Franco diretamente apoiadas pela Alemanha e pela Itália e com a conivência de Salazar. No conjunto da Espanha, depois da vitória definitiva dos rebeldes nos finais de março de 1939, cerca de 200.000 republicanos foram por sua vez liminarmente executados. Muitos mais, aliás, morreram de fome e de doenças nas prisões e nos campos de concentração onde foram acantonados e mantidos em condições infra-humanas. Outros ainda sucumbiram ao regimento brutal dos batalhões de trabalho. A mais de meio milhão de refugiados não lhes restou então outra saída se não o exílio, perecendo muitos nos campos de internamento franceses. Vários milhares foram também enviados para os campos de extermínio nazis. Toda esta lista de mortes e horrores constitui aquilo a que Preston, num livro publicado em Espanha há perto de um ano, chamou o «Holocausto espanhol». (mais…)

              História, Memória

              Partida, exílio e torna-viagem

              Utopie

              Sendo Portugal um país de emigração, a literatura memorialista que se lhe refere é exígua e no geral pouco interessante. O que parece estranho é que esta característica se aplica também à evocação do passado pela emigração política, maioritariamente vivida por pessoas em condições de disporem do engenho e dos meios para passarem à escrita os seus relatos e explicações. Como condicionante desta limitação estará, sem dúvida, o facto de muitos dos emigrados políticos terem feito boa parte do seu trajeto debaixo de algum enquadramento político e partidário, o que os terá inibido, muitas vezes, de falarem de uma vida condicionada pelas exigências da militância e que por isso em parte não lhes pertenceu. Ora o que distingue os autores dos testemunhos que esta Pátria Utópica comporta é que eles escaparam, pelo menos em parte, a essa circunstância, tendo seguido uma via de relativa independência pessoal. Em resultado, todos seguiram percursos irregulares e heterodoxos, que os libertaram para escolhas bastante autónomas, embora desiguais. (mais…)

                Biografias, História, Memória

                Governar num mundo em guerra

                W. Churchill
                Churchill durante a guerra. Numa pose íntima que Hitler ou Estaline jamais admitiriam.

                Logo em 1948, quando começou a ser publicado o conjunto de seis livros da autoria de Winston Churchill sobre as circunstâncias e as peripécias que rodearam a Segunda Guerra Mundial, depois condensados nestas Memórias agora traduzidas, um dos seus opositores políticos não hesitou ao proclamar que o antigo primeiro-ministro tinha, de facto, escrito principalmente sobre si próprio. Não era no entanto essa, como seria de prever, a opinião do próprio sobre o trabalho que, com uma tenacidade invulgar em quem já ultrapassara sete décadas de uma vida ativa, acabara de produzir e de tornar público. Procurando atribuir um sentido de rigor e de honorabilidade à obra, Churchill insistiu então em afirmar que, embora deixasse os julgamentos sobre o seu papel no decorrer do conflito para o trabalho que de futuro seria levado a cabo pelos historiadores, de modo algum abdicava de ser um deles. (mais…)

                  Biografias, História

                  Brilho nos olhos

                  Olof Palme

                  28 de Fevereiro. Passam hoje 26 anos sobre o assassinato de Olof Palme, o político e primeiro-ministro sueco que ajudou a recolocar a social-democracia europeia no eixo do combate contra as desigualdades. A sua via não foi a tíbia e desgraçada «terceira», que nos anos 90 devolveria a vida ao caduco liberalismo, mas a de um socialismo democrático construído na conciliação da liberdade individual e da economia de mercado com a afirmação do Estado social e com a solidariedade entre os povos e as nações. Palme faz-nos falta porque nos fazem falta políticos francos e corajosos. Que pensem grande e pensem alto. Dos quais se possa duvidar mas a quem se respeitem sempre o rasgo e a coerência. Faz-nos falta porque nos fazem falta políticos com brilho nos olhos.

                  «Throughout history, people have lived in poverty and misery. They have been degraded by hunger and ignorance, they have tormented each other and been driven into war. Yet, not everything has remained the same: The difference is that we have acquired greater knowledge. The difference is, above all, that we are beginning to display a willingness to take responsibility for each other. Therefore, it is not without meaning when we react, take a stance and, to the best of our ability, try to influence human development.»

                    Biografias, Democracia, História, Olhares

                    Vida e destino de um romance

                    Vassili GrossmanQuando, em outubro de 1960, Vassili Grossman enviou o manuscrito de Vida e Destino para o chefe de redação da revista Znamia, este passou-o de imediato para as mãos do KGB. Ainda que se vivesse então a época do «degelo» kruscheviano e da crítica pública dos crimes brutais e genocidas de Estaline, as consequências não demoraram a fazer-se sentir: o apartamento do escritor judeu ucraniano foi revistado, as cópias, os rascunhos e até as fitas de tinta das máquinas de escrever foram de imediato apreendidos. Grossman viveu a perda do seu romance, resultado de dez anos de intenso trabalho, como uma catástrofe pessoal, irreversível. Morreria três anos mais tarde na obscuridade, sem conseguir recuperar do desgosto e do desânimo. No imenso panorama da sociedade soviética que é este romance, comparado muitas vezes à obra maior de Tolstoi, o escritor retrata de forma realista, mas inegavelmente distante do cânone estético e político oficial, a vida durante a Segunda Guerra Mundial, com particular ênfase na ofensiva alemã, e na defesa e contraofensiva soviéticas, que culminaram com a libertação de Estalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis. Episódios que o autor, aliás, diretamente viveu como correspondente de guerra ao serviço do Exército Vermelho, para o qual se havia voluntariado como soldado raso.

                    Estabelece-se ali, e terá sido com toda a certeza essa a razão principal da desgraça do romance e do seu criador, uma incómoda analogia entre os processos de controlo político usados pelos sistemas totalitários nazi e soviético, sobressaindo o antissemitismo estrutural que, com diferentes cambiantes, de facto partilhavam. No centro da trama, a vida atribulada de uma família de «classe média», seja lá o que isso pudesse ter significado na era estalinista, dramaticamente dispersa entre a Alemanha e a Sibéria pelas circunstâncias da guerra e das suas sequelas. Após o poeta Lipkine, o físico Sakharov e o escritor Voïnovitch terem conseguido fazer sair da União Soviética um microfilme feito a partir de dois manuscritos entretanto recuperados, o texto será impresso em russo em 1980, numa pequena tiragem da responsabilidade de um editor suíço, antes de começar a ser traduzido em numerosas línguas. Em 1988, no auge da perestroika, foi finalmente editado em Moscovo. No entanto, na Rússia, e ao contrário do que tem acontecido mais a ocidente, o reconhecimento público da dimensão desta obra imensa e de leitura imersiva, bem como o do percurso pessoal e intelectual do próprio Grossman, gradualmente distanciado do regime soviético, têm sido claramente exíguos. Como, citado pela revista francesa Books, escreveu o encenador Lev Dodine no semanário Itogui, tal não pode deixar de acontecer numa sociedade que «emprega o essencial da sua energia a renegar o próprio passado».

                    Vassili Grossman, Vida e Destino. Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra. Dom Quixote. 856 págs.

                      Biografias, Ficção, História

                      Repressão em Atenas

                      Manolis Glezos
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                      Está neste momento a circular pelas redes sociais uma fotografia particularmente perturbante que funciona como eloquente sinal do Estado de guerra social total no qual se encontra a Grécia. Nessa imagem (que pode ver aqui; a que ilustra este post é diferente) observa-se a polícia a tentar manietar Manolis Glezos, de 90 anos, um antigo herói da resistência ao nazismo e um experiente político de esquerda que chegou a ser deputado europeu, sem o menor respeito pelas razões, pela idade e pelo papel na história do país do símbolo que tinham pela frente. Um péssimo exemplo da vaga de desprezo pelos direitos democráticos e sociais mais elementares que começa a varrer a Europa.

                      Adenda – As imagens foram-me transmitidas como se fossem de agora. Acabo de saber que são de 2010. No entanto, Manolis Glezos esteve nos protestos de ontem e terá sido hospitalizado.

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                        Uma Idade Média sem Disney

                        © Kegriz

                        Atribui-se a Petrarca a expressão «Idade das Trevas» aplicada aos séculos que imediatamente o precederam. Ter-se-á iniciado dessa forma uma observação negativa do mundo medieval que nem o romantismo conseguiu atenuar de forma significativa. Os medievalistas abominam naturalmente este qualificativo, tomando-o como marca de ignorância em relação ao período histórico da sua predileção e que tão bem conhecem. A obra coletiva Idade Média, organizada por Umberto Eco e distribuída por quatro grossos volumes dos quais o primeiro foi recentemente editado pela Bertrand, representa um poderoso antídoto para combater essa intoxicação que afeta o conhecimento e a representação de parte importante do nosso passado comum. Nessa direção, Eco sublinha a efetiva multiplicidade daquele período, o brilhantismo de muitas das suas conquistas, a dimensão celebratória da vida que também integrou, o modo como afinal não ignorou a cultura clássica e a ciência da Antiguidade, como foi também sensível às trocas entre povos e civilizações, como não foi apenas a época negra da ortodoxia e da morte triunfantes. Embora, como se sabe e esta obra não nega, tivesse sido tudo isso também. É nesta direção, aliás, que contrariando o imposto por determinadas formas de alimento do nosso imaginário partilhado, nela se insiste em sublinhar que a Idade Média não foi «uma época de castelos torreados como os da Disneylândia».

                        Umberto Eco (organização), Idade Média. I – Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos. Trad. de Bonifácio Alves. Bertrand Editora. 786 págs.

                          História

                          Uma Europa pisada e exangue

                          Bloodlands, Terra Sangrenta na tradução portuguesa, inscreve-se numa região delimitada da Europa Oriental na qual se fixou, desde os finais do século XVIII até à Segunda Guerra Mundial, com proibição de habitar noutras paragens, um conjunto importante de comunidades judaicas, até aí errantes, com as quais só uma pequena parte da primitiva população se fundiu. Servindo-nos de um mapa atual, podemos dizer que ela se estendia entre o Báltico e o Mar Negro, desde o leste da Polónia até à parte mais ocidental da Rússia europeia, integrando a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia. Ali foi sendo levantado um microcosmos cultural muito próprio, fundado numa sociedade particularmente dinâmica em volta da qual cedo confluíram, todavia, os fantasmas mais negros e letais do antissemitismo. Foi sobre este território que o historiador americano Timothy Snyder desenvolveu o extenso trabalho de investigação do qual resultou uma obra que nos desperta para uma realidade nem sempre olhada de frente e com rigor. (mais…)

                            Democracia, História, Leituras

                            Galvão: um herói português

                            Henrique Galvão

                            É possível que jamais venha a escrever-se uma história da oposição ao Estado Novo capaz de mostrar a trajetória das muitas figuras, hoje reconhecidas como questionadoras da autoridade de Salazar e das orientações do regime, que com um e outro confluíram em muitos momentos ou a propósito de determinados princípios de política. Exemplar deste estilo de percurso é o capitão Henrique Galvão, cuja biografia, da autoria de Francisco Teixeira da Mota, acaba de ser editada. De facto, Galvão é hoje principalmente recordado pelo seu papel na luta contra o Estado Novo, que ocupou sensivelmente a última década da sua vida, e em particular pela retumbante iniciativa, concretizada em 1961, do assalto ao paquete Santa Maria. Foi aliás por esta atitude de resistência ativa que, trinta anos mais tarde, o Presidente Mário Soares o condecorou postumamente com a grã-cruz da Ordem da Liberdade. Todavia, durante a maior parte do trajeto cívico que escolheu, o seu posicionamento foi o diametralmente oposto, tendo participado no 28 de Maio, ocupado lugares de destaque no aparelho do regime (como importante dignitário da administração colonial, primeiro diretor da Emissora Nacional, organizador da Exposição Colonial do Porto e da Exposição do Mundo Português, deputado da União Nacional, entre outros) e defendido posições autoritárias, anticomunistas e até de apreço pelo nazismo. (mais…)

                              Biografias, História

                              Primavera dos Povos (o regresso)

                              Barricadas em Paris (1848)

                              Quanto mais o tempo passa e os acontecimentos se sucedem em catadupa sem o vislumbre de uma solução, mais se confirma uma certeza: não existe, para a Europa, alternativa aos demónios do nacionalismo que não passe por um forte esforço federalista, por muito que se encontrem em aberto as modalidades que este possa tomar. Como escreveu o medievalista californiano Patrick J. Geary no excelente O Mito das Nações (editado pela Gradiva), «os europeus têm de reconhecer a diferença entre o passado e o presente se quiserem construir um futuro». Isto é, têm de saber que a preservação a todo o custo dos velhos modelos da identidade nacional os pode empurrar para o abismo. Ou então a lutarem entre si até que o mais forte seja capaz de estabelecer uma nova ordem em seu benefício. O «perigo alemão» está a tornar-se real e não será o restabelecimento das fronteiras vigiadas ou uma nova guerra (fria, morna ou quente) que o impedirão de afirmar-se. Será antes, todos temos de perceber isso e mobilizar vontades para o conseguir, a construção de uma Europa federada, paritária, solidária e realmente democrática. Conseguida pelo erguer vigoroso das consciências e das vontades, no irromper, agora necessariamente concertado, de uma nova «primavera dos povos». Parece a sua consideração um vestígio dos ideais de 1848? Pois parece. E daí? O tempo é outro, existem novos e pesados condicionalismos, o passado não pode comandar o que está para vir, mas os contornos essenciais da nuvem ameaçadora – governos autocráticos, crises económicas, perda dos direitos das classes médias, desemprego crescente, leis do trabalho insidiosas, agressividade dos nacionalismos – têm um desenho muito parecido com o daqueles anos tumultuosos. E requerem medidas rápidas. Em 48 foi o próprio Alexis de Tocqueville que lançou na Câmara dos Deputados de Paris: «Nós dormimos sobre um vulcão… Os senhores não percebem que a terra treme mais uma vez?»

                                História, Olhares, Opinião

                                O lugar da cobardia

                                A frase «dos fracos não reza a História» assinala a infâmia daqueles que não enfrentam as dificuldades ou se vergam diante do mais forte. Sublinha a vileza sem remissão de toda a cobardia. Estigmatiza sem piedade a sua lembrança. O seu uso supõe no entanto uma condição: a de que se observe o tempo como tribunal e como teatro diante do qual cada um é julgado pela forma como representou o seu papel. Com a crescente depreciação da História enquanto espaço para um julgamento equitativo da experiência, com a sobrevalorização do imediato e do valor de mercadoria, a expressão parece hoje deixar de fazer sentido. A valorização da cobardia e da apatia diante da força não é nova, mas estava antes confinada aos oportunistas, aos agiotas, aos tiranos e aos tolos. Agora parece por vezes transformar-se em bússola do bom cidadão, exilando-se quem pensa no longo prazo, ou defende a necessidade da resistência diante da injustiça, para o campo minado da irrelevância ou mesmo do crime. No entanto tudo isto obedece a ciclos, a etapas em rápida corrente e contracorrente, e inevitavelmente será a própria História a tratar do assunto pela medida seletiva de sempre. Em nome da coragem e do futuro, é sempre bom sabê-lo. Ou pelo menos acreditar nessa possibilidade.

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                                  Elizabeth e Hazel

                                  Se existe atitude pela qual tenho um afeto particular, é ela a capacidade de regeneração que certas pessoas conseguem aplicar ao seu aparente destino, assumindo mudanças de atitude, de crença e de sensibilidade que contrariam as imposições do meio, a tradição familiar, os códigos impostos no ambiente de trabalho, o quadro político que um dia adotaram, os padrões que julgaram inquestionáveis. Talvez mesmo o código genético que sentem na boca mas que se esforçam por contrariar. Esta é no entanto uma escolha difícil e geralmente mal entendida, apesar do aforismo segundo o qual «só os burros não mudam». A maioria das pessoas, é esta a verdade, arruma o seu mundo em gavetas e prateleiras, cola etiquetas identificadoras nos outros e em si própria, e reage mal a uma mudança profunda, que vê sempre como gesto de oportunismo, falha de personalidade ou sinal de uma patologia esquiva. Está comprovado que existem traços de sensibilidade e de feitio, princípios de ética, gestos de etiqueta, modalidades de gosto ou de desgosto, que geralmente se conservam inalteráveis, mesmo quando quem os detém muda de cara ou de quadrante. A frase, tantas vezes dita, «isso é mesmo dele», ou «é mesmo teu», traduz esse elo de continuidade que, como a pele e as sobrancelhas, transportamos ao longo da vida. Mas, para além desta permanência, existe sempre um mundo de possibilidades capaz de levar um homem ou uma mulher a mudar o seu destino. (mais…)

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                                    Da paz podre

                                    Logo pela manhã, um post da Helena Araújo relembrou-me um pormenor, associado à história dos símbolos, que tem tanto a ver com episódios passados da nossa vida coletiva como com situações agora mesmo diante dos nossos olhos. A imagem ou a silhueta da pomba tem servido em tempos e lugares diversos como sinal da paz, do amor, da maternidade, da gentileza ou da figura do mensageiro. De acordo com a tradição bíblica, após o Dilúvio, teria sido uma pomba enviada em demanda de terra firme que, ao regressar à Arca com um ramo de oliveira no bico, sinalizou a Noé o recuo das águas e a possibilidade de retomar a vida sedentária. Para uma boa parte dos cristãos, é também o sinal visível do Espírito Santo, essa parte imaterial da Santíssima Trindade que se não vê, que não se toca, mas que se sente, anunciando na Sua omnipotência e na Sua bondade, a fundação e a intervenção da Igreja. No século XX, todavia, a dimensão simbólica do pequeno ser alado passou a estar associada mais sistematicamente à ideia de paz ou à defesa militante do pacifismo, sendo recuperada, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, em publicações, emblemas e estandartes, por numerosas campanhas antiguerra ou de propaganda da não-violência. (mais…)

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