Partida, exílio e torna-viagem

Utopie

Sendo Portugal um país de emigração, a literatura memorialista que se lhe refere é exígua e no geral pouco interessante. O que parece estranho é que esta característica se aplica também à evocação do passado pela emigração política, maioritariamente vivida por pessoas em condições de disporem do engenho e dos meios para passarem à escrita os seus relatos e explicações. Como condicionante desta limitação estará, sem dúvida, o facto de muitos dos emigrados políticos terem feito boa parte do seu trajeto debaixo de algum enquadramento político e partidário, o que os terá inibido, muitas vezes, de falarem de uma vida condicionada pelas exigências da militância e que por isso em parte não lhes pertenceu. Ora o que distingue os autores dos testemunhos que esta Pátria Utópica comporta é que eles escaparam, pelo menos em parte, a essa circunstância, tendo seguido uma via de relativa independência pessoal. Em resultado, todos seguiram percursos irregulares e heterodoxos, que os libertaram para escolhas bastante autónomas, embora desiguais.

São cinco os portugueses de destaque na oposição ao regime derrubado no 25 de Abril e na vida política e académica do Portugal democrático que aqui relatam a sua experiência: António Barreto, Ana Benavente, Eurico Figueiredo, José Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre. Cada um fá-lo a três tempos, contando a vida que antecedeu o exílio e o surgimento da partida como uma necessidade, depois os tempos livres e intensos, difíceis também, da emigração, e por fim a exaltação do regresso e dos primeiros tempos num pós-Abril de todas as esperanças. De comum todos têm a presença e o encontro numa cidade que de modo algum configurava, na década de 1960, o lugar idealizado ou escolhido pela maioria daqueles que emigravam por motivos políticos. A Suíça, e em particular a cidade de Genebra, eram então, com efeito, territórios algo excêntricos para a diáspora lusa. No entanto, terá sido em parte esta situação a proporcionar a todos, libertos por essa diferença do «efeito de gueto», uma integração mais rápida e geralmente menos problemática.

A leitura destes cinco testemunhos surge condicionada por escolhas que iluminam certos aspetos enquanto obscurecem outros. Um traço comum prende-se com a peculiaridade dos motivos que conduziram ao exílio: em todos os casos, e independentemente de peripécias pessoais que forçaram a saída, existiu uma lógica de libertação pessoal associada à vontade de sair de um país no qual «se abafava», do qual se estava «farto». Daí coincidirem na lembrança de não terem sentido uma particular tristeza por terem rompido com a terra de origem e com o passado. Esta rutura foi no entanto sempre relativa, uma vez que, a par da preservação dos laços familiares, todos lembram que jamais deixaram de se interessar pelo que acontecia em Portugal. Recordam também o modo como as suas vidas, mesmo na adversidade, se encontravam preenchidas num ambiente social e cultural acolhedor e que lhes ofereceu condições de desenvolvimento pessoal e intelectual impossível noutras circunstâncias. Já alguns temas parecem passar de uma forma que se afigura inexplicavelmente ligeira. Como exemplo deste obscurecimento está o relato da rutura com o PCP, ao qual todos pertenceram consumando a saída justamente no quadro do exílio, e que não poderá ter sido fácil nem deixado de impor algumas marcas.

Na introdução, Amadeu Lopes Sabino, de quem partiu a iniciativa deste ajuntamento de memórias, sublinha que os cinco exilados «procuraram e encontraram noutras terras e junto de outras gentes a pátria utópica», definindo uma atitude de participação que fez com que, quando enfim retornaram, se encontrassem afinal «corrompidos pelos licores do cosmopolitismo» que os havia transformado noutras pessoas. É desse encontro e desse achamento que fala este interessante e raro volume, desprovido de autojustificação e de autoglorificação, e, por isso também, importante para a perceção razoável do lugar de alguns dos intérpretes das nossas elites políticas na construção do Portugal democrático.

Vários autores, Pátria Utópica – O Grupo de Genebra revisitado. Editorial Bizâncio. 320 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Fevereiro de 2012.

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