Arquivo de Categorias: História

O Trabalhador da Noite

Alexandre Jacob

Do fundo do baú deste blogue, irei recuperar alguns dos posts da série-catálogo «Vidas Exemplares». Estamos todos a precisar de modelos.

Pelos finais do século XIX, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), o autoproclamado «ilegalista pacifista», resolveu dedicar-se a tirar «aos que não produzem nada mas têm tudo» para dar «aos que produzem tudo e não possuem nada». A sua vida de assaltante, iniciada em 1894 com a formação do bando «Os Trabalhadores da Noite», destinado a espoliar os «parasitas sociais», jamais foi a do simples criminoso, pois sempre anunciou que as suas acções se voltavam contra a classe dominante e contra «o mais iníquo de todos os roubos», a propriedade individual. Uma percentagem do dinheiro roubado era destinada à causa anarquista e aos camaradas em dificuldades. «O roubo é a restituição», escreveu uma vez no jornal libertário Germinal, parodiando a conhecida frase de Proudhon que equipara a propriedade ao roubo. Com grande sentido de humor e eterno porte de cavalheiro, virá a tornar-se em 1907, para Maurice Leblanc, no modelo ficcional de Arséne Lupin, o gentleman-cambrioleur que fazia questão de troçar da polícia e dos poderosos. (mais…)

    Biografias, História, Memória, Séries

    O paraíso temporário

    Joseph Roth

    Desde 1927, ano em que este livro de Joseph Roth (1894-1939) foi publicado, quatro importantes fatores modificaram profundamente a condição, a vida e o destino dos judeus do leste europeu. O primeiro foi a acentuada expansão do antissemitismo na Europa Central, com esse cortejo de sofrimento, exclusão, fuga e extermínio que culminou no Holocausto e mudou radicalmente a sua geografia física. O segundo foi a formação do Estado de Israel em 1948, consumando a definição de uma nova área de povoamento e, em consequência, a rápida reformulação das tradições e das condições de vida daqueles que ali se foram estabelecer. O terceiro fator foi o retorno das perseguições na antiga União Soviética, visível nos últimos anos de Estaline mas que não se esgotou após a sua morte e criou as condições para um novo êxodo. E o último foi a atitude expansionista e agressiva, progressivamente imperante no Estado de Israel a partir das guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur, que alterou o modo de reconhecer os direitos históricos dos judeus. Em pouco mais de meio século, esta conjugação de fatores tornou irreconhecível o universo que o jornalista e escritor austríaco aqui procurou descrever e explicar, dispersando ou transformando para sempre aqueles que o formaram. (mais…)

      História, Memória

      As cartas de Piteira

      Nas evocações da resistência à ditadura e dos primeiros tempos pós-Abril raramente tem sido dado o justo destaque à vida desinquieta, à intervenção militante e à atividade intelectual de Fernando Piteira Santos (1918-1992). Todavia, ele foi uma das figuras-chave da história do país no século XX, como resistente, intérprete da vida nacional, ou, nos últimos anos de vida, influente «reserva da República». Militante contra a ditadura desde a juventude, Piteira foi membro do Comité Central do PCP entre 1941 e 1950, ano em que foi expulso a pretexto de uma falsa acusação de delação. Antifascista, oposicionista ativo, conheceu por isso os cárceres da ditadura, tendo sido preso por três vezes. Em 1961 colaborou na tentativa de assalto ao Quartel de Beja, vendo-se por esse motivo forçado a passar à clandestinidade e depois ao exílio em Argel, de onde só regressou após a queda do regime. Em 1974 foi Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, criando e dirigindo depois os Centros Populares 25 de Abril. Em 1977 foi fundador da Fraternidade Operária, criada por dirigentes e militantes do PS descontentes com o rumo político tomado então pelo partido. Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, foi ainda, entre 1975 e 1989, diretor do Diário de Lisboa. (mais…)

        História, Memória

        45 anos depois

        Precisamente há 45 anos, a 2 de Maio de 1968, começou o «Maio francês». Foi a revolta estudantil a acontecer em primeiro lugar, aberta nos anfiteatros de Nanterre quando, nesse dia, o reitor Grappin convocou 8 estudantes do Movimento 22 de Março para um conselho disciplinar. Seguiu-se a primeira grande assembleia estudantil e a repressão policial. A revolta operária veio também, um pouco mais tarde, mais sóbria e nunca chegando a unir-se completamente à primeira. Muitos intelectuais estiveram presentes desde a primeira hora, associando-se a ambas e sujando os sapatos nas barricadas, as mãos na tinta dos panfletos e dos graffiti. Os partidos da esquerda comportaram-se de forma desigual, nem sempre límpida («Falsos revolucionários que é preciso desmascarar» titulava o L’Humanité logo a 3, convirá não esquecer), mas nos momentos decisivos estiveram do mesmo lado da barricada. E das barricadas. (mais…)

          Apontamentos, História, Memória, Olhares

          Os papéis da revolução

          Depois de longos anos sujeito a juízos apressados ou minimizado na sua real importância, o ativo universo da extrema-esquerda portuguesa emergente nos anos finais do Estado Novo começa a ser reconhecido de forma sistemática. A perceção da sua existência concreta e do papel que cumpriu, associada à publicação de memórias, reportagens, inventários e estudos académicos, é acompanhada, como seria de esperar, pelo recuo dos mitos e das lendas, heroicos ou caricaturais, propagados a seu respeito. A saída de As Armas de Papel, grosso volume da autoria de José Pacheco Pereira há muito prometido pelo autor, funciona como dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política surgidos na década que antecedeu o 25 de Abril, reforçando de forma considerável esse reconhecimento público de parte da nossa história recente em boa medida ainda por desvendar. (mais…)

            História, Memória

            40a. Avenida

            De vez em quando recupero dos arquivos deste blogue textos não desatualizados aos quais vale a pena sacudir o pó.

            Seguro a bela edição da Antígona, já com mais de vinte anos, de Nós, concluído em 1921 por Ievgueni Zamiatine (1884-1937), e regresso ao último parágrafo, sublinhando a sua derradeira paisagem. De um entusiasmo tão simulado quanto assustador, que deveria prefigurar esse futuro industrial, radioso, perfeito e desapiedado da sociedade inventada cujo destino histórico, tão «real» quanto imperfeito, hoje podemos conhecer: «Conseguimos construir um muro temporário de ondas de alta voltagem na transversal da 40ª. Avenida. Tenho a esperança de que venceremos. Mais do que isso, tenho a certeza de que a vitória é nossa. Porque a racionalidade tem de triunfar.» (mais…)

              Democracia, História

              A raposa vermelha

              Um dos fatores determinantes para a conservação da imagem pública positiva deixada por Santiago Carrillo (1915-2012), o antigo secretário-geral do PC espanhol, é-nos descrito com todos os detalhes por Javier Cercas na sua Anatomia de um Instante (Dom Quixote). Quando, em 23 de fevereiro de 1981, como parte de uma conjura militar contra os avanços da «transição democrática», um destacamento da Guardia Civil espanhola comandado pelo teatral tenente-coronel Tejero Molina ocupou pelas armas o Congresso dos Deputados, em Madrid, apenas três homens presentes no hemiciclo resistiram às ordens dos insurrectos para se deitarem no chão e permanecerem quietos: o primeiro foi o velho general Gutiérrez Mellado, o então ministro da Defesa, antigo militar franquista olhado pelos sublevados como um traidor, que resistiu com coragem e dignidade às ordens de Molina; o segundo foi Adolfo Suárez, primeiro-ministro em exercício, um ex-falangista com comportamento de señorito também convertido ao processo de democratização. E o terceiro foi Carrillo, como chefe dos comunistas o alvo natural dos militares golpistas, que assumiu uma atitude heroica ao resistir também às suas imposições, deixando-se ficar sentado e aparentemente imperturbável a fumar o seu cigarro. Uma atitude que lhe valeria depois o respeito de muitos adversários e contribuiria para ampliar o destaque que teve como figura central da estabilização, no pós-franquismo, da Espanha democrática. Como um simpático idoso, democrata de sete costados, que apenas uma minoria se atrevia a questionar. (mais…)

                Biografias, História

                Avantesmas em pedra

                Para além dos edifícios oficiais imensos, feios e inóspitos, uma das marcas mais impressionantes da arte pública associada à estética do realismo socialista é a representada pela estatuária monumental. Durante décadas, dispersa por praças, ruas, jardins e até no interior de edifícios, a vitória do «socialismo realmente existente», a glória das suas figuras de proa e a apoteose dos seus valores e símbolos essenciais foi celebrada em estátuas gigantescas, de péssimo gosto, que se impunham de uma forma medonha em cenários frequentemente vazios, pobres e deprimentes. Existe até, na cidade lituana de Druskininkai, a 130 quilómetros de Vilnius, um espaço museológico parcialmente ao ar livre, o Grūto Parkas – conhecido localmente como «O mundo de Estaline» –, no qual se expõem, sob a forma de pesadelo vivo, centenas de exemplares deste universo absurdo de bronze e granito. Na Coreia do Norte subsiste a extravagância, tendo ainda recentemente sido inaugurada em Pyongyang, ao lado da conhecida estátua colossal de Kim-Il-Sung, o «líder eterno», outra equivalente, representando o seu filho e «querido líder» Kim-Jong-Il. Pois agora, o costume regressa à Polónia, ainda que subordinado a uma orientação ideológica algo diversa: neste domingo começou a ser erguida na cidade silesiana de Czestochowa, o maior centro católico do país, uma estátua gigantesca do papa João Paulo II. Desta forma tornará à região a tradição pavorosa das avantesmas em pedra.

                  Apontamentos, Artes, História, Memória

                  O passado, de visita

                  Maio de 1968

                  Merece um post detalhado que escreverei adiante. No entanto, chamo desde já a atenção para a saída de As Armas de Papel, de José Pacheco Pereira (ed. Temas & Debates – Círculo de Leitores), grosso volume que funciona como um dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política emergentes na década que antecedeu o 25 de Abril. Interessará em primeiro lugar aos historiadores e a um público empenhado em conhecer de forma mais completa e menos unívoca a atividade dessa parte da oposição política ao anterior regime que teve, desde o início, o objetivo de transformar a queda deste no lançamento de uma alternativa revolucionária ao capitalismo indígena e ao sistema colonial que o sustentava. Mas, mais do que isso, oferece aos olhos de quem o não conheceu, ou dele na época teve uma visão parcial e sectária, o retrato de um mundo dinâmico e alternativo, que tinha rompido completamente o cordão umbilical com o universo mental do salazarismo e também com o da oposição mais ortodoxa ou reformista. Produzindo ao mesmo tempo um microcosmo incandescente que influenciou, de uma forma ou de outra, parte significativa da elite política e cultural portuguesa das últimas décadas. Não se trata de perceber a ligação de tudo isto com aquilo em que, cerca de meio século depois, esses largos milhares de pessoas se transformaram, mas sim de ver, com a mão em muito dos papéis que as moldaram politicamente e deram sentido aos seus combates de então, o caldo de cultura de distanciamento radical com o país antigo e «habitual» que estes documentos bem ilustram. Para os conhecermos depois em maior detalhe existem os arquivos físicos e digitais, naturalmente, mas esta é uma boa introdução ao tema. De caminho, uns quantos revisitarão ainda, através destas páginas, uma parte do seu passado que também é nosso.

                    História, Memória

                    O intelectual público

                    Tony Judt

                    «Um historiador (ou qualquer outra pessoa) sem opiniões não é muito interessante, e seria de facto estranho que faltassem ao autor de um livro sobre a sua própria época pontos de vista incómodos sobre as pessoas e as ideias que a dominaram.» A afirmação é de Tony Judt e surge no posfácio de Pensar o Século XX, o seu derradeiro livro. De certo modo, ela explica o cenário de fundo diante do qual todo o volume se desenrola: o de uma extensa viagem, sob a forma de um diálogo do autor com o historiador americano Timothy Snyder, através da sua própria vida, do seu percurso profissional, das suas escolhas, e ainda, apesar da obra ter sido concluída alguns dias apenas antes da morte anunciada, dos planos que tinha e em relação aos quais não deixava de revelar um admirável entusiasmo e uma inexplicável esperança. Denunciando em todas as situações, em cada uma das posições que tomou e dos projetos nos quais se envolveu, uma curiosidade, uma agudeza crítica e uma autonomia que pontuaram as suas escolhas e se descobrem agora no seu legado. (mais…)

                      História

                      Portugal numa biografia

                      Jorge Sampaio

                      Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições. (mais…)

                        Biografias, História, Memória

                        A outra China

                        Ao lado dos campos de batalha das duas Guerras Mundiais e das campanhas de extermínio levadas a cabo pelos grandes regimes totalitários, as principais mortandades do século passado já não foram determinadas por epidemias, como acontecera recorrentemente em tempos mais recuados, mas antes pela fome. O mais doloroso e inaceitável é que elas ocorreram como consequência de uma política consciente e deliberada de governos que teriam, supostamente, a obrigação de prevenir, ou no mínimo de reduzir, o seu impacto. Estima-se que o Holodomor, a fome de caráter genocidário, hoje já bem conhecida nas circunstâncias e nos números, que devastou a Ucrânia em 1932-1933, enquanto em Moscovo se proclamavam as «vitórias», quase todas fictícias, do 1º Plano Quinquenal, de acordo com as estimativas menos pessimistas terá feito entre 5 e 6 milhões de vítimas. Nada de comparável, porém, à Grande Fome, que na China sobreveio entre 1958 e 1962, durante a qual o número de pessoas mortas devido aos seus efeitos terá muito provavelmente rondado os 45 milhões. (mais…)

                          História, Memória

                          A vida de Ricardo

                          Antes ainda de ser vertida para o inglês, Ryszard Kapuściński: A Life, a biografia do jornalista e escritor polaco nascido Pinsk, na Bielorrússia, em 1932, e falecido em Varsóvia no ano de 2007, escrita por Artur Domosławski, seu antigo colaborador e também jornalista, tinha já algum impacto mundial. Não é difícil perceber os motivos desse rápido eco. Ryszard Kapuściński foi um jornalista experiente e respeitado, conhecido por ter entrevistado centenas de atores políticos de primeira linha e calcorreado este mundo e o outro. Traduzido em muitas línguas sempre com apreciáveis tiragens, tinha e conserva a reputação de homem corajoso, aventureiro, sedutor e inteligente, e que ainda por cima escrevia muito, muito bem, de uma forma literária, assumidamente poética, rara no seu meio profissional. Mas do qual, talvez devido à nacionalidade e à língua periféricas, bem como aos longos anos de relativa discrição, pouco se sabia. Por isso, poder saber-se mais, e logo num grosso volume atulhado de episódios e de revelações, transformou-se rapidamente em fator de interesse. (mais…)

                            Biografias, História, Memória

                            Kapuściński e o socialismo

                            Quase a concluir a leitura da biografia do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuściński (1932-2007), da autoria do também jornalista e seu antigo colaborador Artur Domosławski. Um livro que justifica um post autónomo, dados os problemas que expõe, as informações que faculta, as dúvidas que levanta sobre as duas faces, a mais conhecida e a obscura, de uma das mais importantes, e das mais eloquentes, testemunhas da evolução do mundo na segunda metade do século XX. O que hoje aqui fica é apenas um extrato de um texto escrito por Kapuściński quando, após longos anos de trabalho como correspondente da imprensa polaca na América Latina, regressou ao seu país. Na Polónia vivia-se na altura a fase de transição que mais tarde determinaria o fim do regime «socialista», e Kapuściński, velho militante comunista mas homem que conhecia muito bem outras realidades, questiona-se nele sobre a diferença entre o idealismo e a entrega dos combatentes socialistas que conhecera na América Latina, e o panorama de laxismo e ausência de convicção com as quais deparava agora no seu próprio país:

                            «Ali: Devido à sua crença no socialismo, os jovens idealistas acabam muitas vezes na prisão, são torturados, são forçados a organizar-se na selva, e são por via de regra ignorados por aqueles que deveriam ser até os destinatários da sua luta. Aqui: Devido à sua crença no socialismo, os jovens carreiristas são os primeiros a conseguir um andar, um carro ou um lugar numa estância de férias. Ali: grandes ideais, o ruído metálico das espingardas; aqui: dinheiro fácil, viver indolentemente a ver televisão, passar a vida em bailes. Ali: rebelião, inconformismo, adrenalina; aqui: sorrisos falsos, mostrando apenas as caras que as autoridades querem ver. Se ali é o socialismo, aqui será o socialismo também?»

                              Apontamentos, História, Olhares

                              De um Portugal português

                              Enquanto este blogue respira uns dias para ganhar outro balanço, aqui vai um post publicado há um pouco mais de quatro anos. Talvez não esteja muito desatualizado.

                              Portugal Anos 50Numa tarde destas, enquanto me esforçava uma vez mais por dar algum sentido aos livros acumulados sem grande nexo, reencontrei um conjunto de postais reproduzindo fotografias de Gérard Castello Lopes tiradas ao Portugal dos anos 50. Foram editadas em 1999 na companhia de pequenos textos de dois Antónios. «Outros tempos, outros lugares», sublinhava um deles, o Tabucchi, na contracapa. O outro, o Barreto, falava de um país passado que Castello Lopes revirou e nos ofereceu contrariando uma quase crónica escassez de imagens. Mas será realmente assim? Estaremos a olhar aqui para um país inteiramente outro, mergulhado num sono coletivo e prolongado do qual só na década de 1960 teria sido possível despertar? Revejo as imagens e encontro em quase todas elas vestígios de um Portugal que me parece o de sempre, diverso daquele que hoje habitamos mas nem por isso imóvel, nem por isso falho do movimento que é parte da memória comum. Na qual continua a apoiar-se aquilo que nos aproxima, ajudando a desenhar a comunidade que imaginamos. (mais…)

                                Atualidade, Fotografia, História, Memória

                                O lado negro de Walt Disney

                                Durante décadas, para milhões de pessoas de diferentes gerações a vida de Walt Disney foi uma história cor-de-rosa editada em capa de seda. Como se o paraíso de sonhos materializado nos vários parques temáticos da Disneylândia fosse uma extensão da personalidade dessa figura supostamente idealista, amável e criativa, impecavelmente penteada e de bigode aparado, plena de autoconfiança, que povoou as fantasias de tantas crianças dos dois hemisférios. No entanto, essa vida encantadora foi em larga medida ilusória, construída e alimentada pelo próprio e pela indústria que fundou, uma vez que a sua biografia verdadeira é bastante menos transparente, claramente menos heroica e está demasiado povoada de nódoas. Não que tal facto seja novidade para quem conheça o seu trajeto para além das linhas mais essenciais da lenda, mas a evocação do Rato Mickey e do Pato Donald, de Dumbo, Bambi e Peter Pan, da Cinderella e de Mary Poppins, ou de tantos heróis aventureiros em versão «para todas as idades», continua a ofuscar um público sedento de fantasia, humor e finais felizes que vê em Disney um seu mentor. (mais…)

                                  Artes, Cinema, História, Olhares

                                  Uma outra Segunda Guerra Mundial

                                  Antony Beevor
                                  Antony Beevor

                                  O coreano Yang Kyoungjong saiu do esquecimento durante o trabalho de arquivo. Tratava-se de um pobre homem de origem rural, recrutado à força sucessivamente pelo Exército Imperial Japonês, pelo Exército Vermelho e pela Wehrmacht, que foi feito prisioneiro pelos americanos na Normandia em junho de 1944. O seu trágico destino, com toda a probabilidade partilhado com muitos outros, funciona como um bom indicador da primeira intenção de Antony Beevor ao propor-se escrever aquela que poderia ter sido apenas mais uma entre centenas de sínteses sobre o conflito que identificou como «o maior desastre da História produzido pelo próprio homem». Neste A Segunda Guerra Mundial, editado já em 2012, Beevor procurou de facto ultrapassar os relatos que a espartilham com base numa separação rigorosa dos diferentes espaços envolvidos – a Europa a leste dos Pirinéus, o norte de África até à Abissínia, a imensa região do Pacífico, o Extremo-Oriente –, contornando o ponto de vista eurocêntrico e estabelecendo uma linha de continuidade entre as campanhas ocorridas nos múltiplos teatros de operações. Aliás, não é por casualidade que, como numa viagem de circum-navegação, o relato começa em agosto de 1939, com a vitória dos soviéticos sobre os japoneses em Khalkin-Gol, entre a Mongólia e a Manchúria, e encerra seis anos mais tarde, em agosto de 1945, precisamente na mesma região, com a invasão do norte da China pelo Exército Vermelho. (mais…)

                                    Democracia, História