Arquivo de Categorias: História

Atualidade do combate entre Luz e Trevas

Todas as cosmogonias – os conjuntos de histórias, mitos ou teorias sobre a origem e a formação do cosmos e da humanidade, apoiados em narrativas que envolvem forças divinas ou princípios filosóficos – assentam no combate, julgado essencial entre quem as partilha, entre a Luz e as Trevas. A primeira servindo como metáfora do conhecimento, da razão e da felicidade, as segundas para nomear simbolicamente a ignorância, o caos e o infortúnio. No Antigo Testamento, a ideia de criação traduziu-se na ordem divina inicial de um «Faça-se Luz!», enquanto a revolução cultural do iluminismo, que pelo século XVIII procurou entregar aos humanos o controlo dos seus destinos, se fundou na ideia de uma vitória do esclarecimento sobre a escuridão escravizante da ignorância.

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    Atualidade, Democracia, História, Opinião

    25 de Novembro: o inventado e o verdadeiro

    A história, encarada como trajeto humano ao longo do tempo, ou então como forma de conhecimento analítico do passado, enfrenta sempre um paradoxo: ela parte de factos e de situações em boa parte objetivos, mas é ao mesmo tempo sujeita a interpretações, incluindo as realizadas pelos historiadores, com forte componente de subjetividade. É esta que conduz, lembrou Marc Ferro, à abundância das suas falsificações, levando também a interpretações opostas, assim como ao seu uso como instrumento dos poderes estabelecidos e como ferramenta para a manipulação das consciências. Podemos observar tudo isto perante a forma como, por estes dias, se recordou ou se celebrou, o que aconteceu em Portugal a 25 de novembro de 1975.

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      Atualidade, Democracia, História, Memória, Opinião

      Nuremberga, o julgamento dos julgamentos

      Quando se completam 80 anos sobre o início das suas sessões, decorridas entre 20 de novembro de 1945 e o 1 de outubro seguinte em que foi anunciado o seu veredito, os Julgamentos de Nuremberga permanecem como acontecimento-chave da história do século XX, continuando a ser olhados com interesse e como exemplo. Tiveram, em simultâneo, um papel reparador e um efeito traumático, cujos contornos se mantiveram presentes em diversas vertentes da opinião pública e da memória coletiva, continuando ainda, tanto tempo depois e já sem os seus intervenientes, a suscitar ondas de choque associadas a contextos e a preocupações do nosso tempo.

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        Democracia, Direitos Humanos, História, Leituras, Olhares

        Um erro da PIDE (com um pouco de riso)

        Deparei hoje com um relatório da PIDE datado do ano de 1972 no qual um panfleto contra o regresso da Queima das Fitas que circulou em Coimbra em maio desse ano vinha com a sua autoria completamente trocada. Sei-o melhor que ninguém, pois foi o último que escrevi para os chamados «Núcleos Sindicais de Base», antes de ser internamente impedido de continuar a fazê-lo por a minha escrita ser acusada de «demasiado literária». Tratava-se de um grupo de estudantes filo-maoistas, na altura ainda muito poucos, dos quais fazia parte e fora um dos fundadores em Coimbra.

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          Apontamentos, Democracia, História, Memória

          A Oposição ao Estado Novo e «o Leste» cultural

          Em Portugal, a Guerra Fria teve como importante aspeto um anticomunismo visceral que acompanhou todo o trajeto do Estado Novo. Parte deste associava um mal incontornável à simples existência do que chamava «a Rússia» e dos outros regimes do «socialismo realmente existente», como estes se autodefiniam até 1989. Por um efeito de contraposição, muitos oposicionistas vislumbraram nesses territórios, em regra de forma acrítica, o seu desenho de sociedades perfeitas. Fruto deste olhar, ainda hoje muitos militantes e simpatizantes do PCP, a partir de uma visão acrítica, parcial e a-histórica, imaginam como ideal a realidade daqueles Estados através das décadas de existência que fecharam com a Queda do Muro de Berlim. Em particular a da «pátria dos sovietes», proclamada «o país do sol radioso», que iluminava o caminho a desbravar desejavelmente pela humanidade no seu todo.

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            Artes, Cinema, História, Memória

            Vilões com a chave da retrete

            Uma das caraterísticas práticas do fascismo italiano, ilustrada em livros de história e textos memorialísticos, mas também exposta em muitos romances e filmes, traduziu-se na distribuição de cargos, ao nível local e regional, por figuras medíocres e oportunistas – muitas delas antes objeto de desprezo e sem qualquer perfil moral – que através do Partido Fascista eram promovidas e passavam a dispor de poder, agindo de uma forma discricionária e tantas vezes cruel. Faziam-no porque, na sua estreiteza e falta de preparação, consideravam que era esse o único modo de exercer a autoridade de que estavam investidas, perpetuando o estatuto social a que ela conferia direito. A fidelidade a Mussolini e ao partido era total, pois nela residiam a sua força e a sua legitimidade.

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              Atualidade, Democracia, História, Opinião

              Verão Quente: não foi isto que vivemos

              O Público começa um artigo sobre o Verão Quente de 1975 da seguinte forma: «Foram meses de instabilidade política, de anúncios de golpes e contragolpes de Estado, e também marcados por uma onda de violência ímpar. A História descreve uma realidade de trincheiras e os protagonistas reconhecem que Portugal esteve à beira de uma guerra civil. O país vivia, literalmente, a ferro e fogo. Foi o Verão quente.» Na verdade, a História (com o H maiúsculo que os autores do texto preferem usar) não descreve nada disto, ou apenas isto. O chamado Verão Quente foi um tempo de grande instabilidade política e social, sem dúvida alguma – aliás, revoluções tranquilas, sem instabilidade e hesitações, não existem -, mas também um período de conquistas, de experiências e de construção de utopias que durante décadas pautaram a vida dos portugueses e da democracia. Reduzir o Portugal da época a «um país a ferro e fogo» é um logro análogo àquele imposto pelo Estado Novo, ao longo da sua existência e a sucessivas gerações, para caraterizar a nossa Primeira República.

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                Memória, ignorância e inocência do mal

                Deparei no Facebook, num grupo sobre o passado da cidade de Coimbra, com esta fotografia, tirada em 25 de junho de 1939 no Campo das Salésias, quando ali a Académica venceu o Benfica por 3-1, conquistando pela primeira vez a Taça de Portugal. Todavia, o texto, razoavelmente longo, que acompanhava a imagem, conseguia a proeza de evocar o momento sem referir a bem visível saudação fascista que, no início do jogo, ambas as equipas fizeram de um modo unânime. Pior: quando uma pessoa atenta deixou nos comentários uma referência ao facto, foi sucedida por uma série de contra-comentários agressivos e ignaros, às dezenas, onde se diziam coisas como «era apenas uma saudação habitual na época» ou «naquele tempo as pessoas não se metiam em políticas» (sic).

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                  Apontamentos, Democracia, História, Memória, Olhares

                  Neonazis: Portugal vs. Ucrânia

                  A nossa esquerda mais ortodoxa e imobilista continua, na tentativa de justificar, ou pelo menos de «explicar», a agressão militar russa sobre a Ucrânia, a invocar – basta frequentar certas páginas de redes sociais, mesmo as de algumas pessoas daquela franja com livros e estudos, para vermos as enormidades que por ali desfilam e se procuram «provar» – o carácter supostamente «neonazi» do governo e do parlamento de Kiev. Se é historicamente verdadeiro que, na época da invasão da União Soviética por Hitler, existiram setores locais que a apoiaram, como aconteceu, aliás, dentro da própria URSS e de outros estados da região, jamais esses grupos, que contam ainda hoje com alguns nostálgicos apoiantes, constituíram uma maioria significativa da nação ucraniana. 

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                    Terremoto eleitoral, esquerda e resistência 

                    As últimas legislativas provocaram um terremoto no regime democrático. Jamais, desde as eleições para a Constituinte em Abril de 1975, o conjunto da esquerda obteve uma representação tão escassa no parlamento, tendo, além disso, desaparecido o tendencial bipartidarismo constante nos últimos cinquenta anos. Para além da acentuada perda do apoio eleitoral concedido aos partidos da área plural da esquerda, com a exceção do Livre, o mais significativo e perturbante foi, sem dúvida, o crescimento exponencial de uma extrema-direita fundada na rejeição dos valores essenciais do Portugal nascido com a Revolução dos Cravos. Mais preocupante ainda: o reconhecimento do ambiente que produziu esta situação e o inventário dos seus traços essenciais fazem temer que a nova ordem política não seja passageira.

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                      A história não se repete, mas precisa ser lembrada

                      Ao contrário do que no século de Oitocentos defendiam os historiadores positivistas, e que foi mantido depois pelos seus imitadores, a história – tomada aqui como forma de conhecimento do passado, guardando-se a História com maiúscula para aludir à sucessão do tempo – jamais é inteiramente objetiva. Depende sempre, em larga medida, de quem a escreve, do momento em que é escrita, das condições em que isto acontece, da perspetiva escolhida em cada abordagem, das múltiplas fontes documentais utilizadas, da perspetiva temática que persegue, e ainda da forma como é ou não sujeita ao confronto da prova e ao crivo da crítica, também estas em constante renovação. Depende ainda dos seus diferentes usos, podendo manipular e ser manipulada, ou então, bem diversamente, ser fator de compreensão do mundo e de emancipação.

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                        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, História, Opinião

                        Uma lição da história

                        A capitulação formal da Alemanha no final da Segunda Guerra Mundial ocorreu a 8 de maio de 1945. Há precisamente oitenta anos. Foi conseguida nas complexas circunstâncias e com os elevadíssimos custos que se conhecem, mas nunca será excessivo lembrar que tal só foi possível devido à colaboração de todas as diferentes (e necessariamente contraditórias) forças antifascistas. Talvez seja uma boa lição para os dias de hoje.

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                          O Muro de Berlim nunca caiu

                          O título desta crónica é plagiado. Em novembro, quando do 35º aniversário do fim da barreira física e política que entre 1961 e 1989 separou rigidamente os dois lados de Berlim, foi com ele que Timothy Snyder intitulou uma reflexão que publicou no seu blogue «Thinking about…» sobre a poderosa vertente da nossa história recente que tem aquele episódio como vértice. Ali escreveu o historiador de Yale: «Sem dúvida estão a pensar: ‘ele quer dizer isto metaforicamente; quer dizer que permanece alguma barreira mental entre o Leste e o Oeste’ (…). Não, quero dizer que muito literalmente o Muro de Berlim não caiu. Não caiu hoje, ou há trinta e cinco anos. Nunca caiu. A ‘queda do Muro de Berlim’ é um artifício literário, não é um facto histórico.» 

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                            Os cem anos de Mário Soares e a social-democracia

                            Completam-se neste sábado, dia 7 de dezembro, cem anos sobre o nascimento de Mário Soares. Enquanto homem estruturalmente de esquerda, politicamente democrata e defensor constante do ideal de socialismo desde adolescente, e também na condição de pessoa com memória, sempre mantive, antes e depois do 25 de Abril, uma apreciação complexa e contraditória, embora atenta, daquele que foi uma das figuras-chave – a par de Afonso Costa, Salazar e Cunhal – para a compreensão do século XX português. Aliás, Soares foi também, e isto é um elogio, uma personalidade complexa e contraditória, dotada simultaneamente de pragmatismo, ousadia, inteligência e, sem dúvida, um amor enorme à democracia, mesmo quando num ou noutro momento agiu de uma forma autoritária. Era também homem com enorme bonomia e um grande sentido de humor, o que hoje tanta falta faz à generalidade dos nossos políticos. Discordei dele muitas vezes, mas jamais depreciando as suas escolhas e a sua personalidade. Tenho, por isso, noção da falta que nos faz.

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                              Biografias, Democracia, História, Memória, Olhares

                              1º de Dezembro: a «revolução» que o não foi

                              Durante o Estado Novo, associado ao esforço nacionalista de aproveitamento da História pátria – neste caso, vincando um forte sentimento anticastelhano identitário que ainda vai moldando algumas mentes -, a data do 1º de Dezembro era lembrada pelas autoridades e no sistema educativo como uma «Revolução». Na realidade, tratou-se de um golpe de Estado palaciano, associado a um combate dinástico e depois a uma bem dura e custosa guerra que durou quase três décadas, prolongando-se entre 1640 e 1668. No pós-25 de Abril, durante algum tempo a extrema-direita a que tínhamos direito ainda a celebrava o 1ª de Dezembro como data sua, sendo notados, embora apenas como curiosidade, os desfiles Avenida da Liberdade abaixo organizados pela antiga jornalista Vera Lagoa. A extrema-direita de hoje, que fala em nome da História sem a conhecer, ainda evoca a data como sua. Alguns monárquicos, lembram-se com ela que ainda existem. E o cidadão comum apenas sabe que é feriado, este ano, para azar do descanso, tendo calhado a um domingo.

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                                Não, em política os extremos não se equivalem

                                Integra a argumentação de pessoas pouco conhecedoras da história contemporânea, ou de setores moderados, em especial os mais conservadores, a noção de que os grupos e movimentos radicalizados, situem-se estes à esquerda ou à direita, se equivalem na rejeição da democracia e na defesa da força e do conflitos como instrumentos decisivos da vivência coletiva. Esta ideia tem provocado, em diferentes momentos e lugares, equívocos muito grandes a propósito da forma, apontada como «análoga», que esses setores, apesar de situados em campos diametralmente opostos, exibem dentro de sociedades plurais e democráticas onde procuram afirmar-se. Trata-se de um juízo errado e perigoso.

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                                  O beabá do 25 de novembro e a direita

                                  O aproveitamento simbólico, pela direita e pela extrema-direita, do 25 de novembro de 1975, a data que de alguma forma fechou a fase mais dinâmica do processo revolucionário de 1974-75, só pode ser suscitado pela ignorância da história, por puro oportunismo, ou, mais provavelmente, por ambas as coisas. Por ignorância porque nem sabem, ou nem querem saber, que os vencedores dos acontecimentos que tiveram lugar nessa data foram, do ponto de vista político, os setores moderados do MFA e o Partido Socialista. Por oportunismo porque tudo lhes serve para, no seu cinquentenário, minimizarem o significado e o impacto dos 25 de Abril, que na verdade desvalorizam, quando não odeiam visceralmente e desde há muito. Vão, desta forma, celebrar, como data sua, um acontecimento para o qual não meteram prego nem estopa. Dele se aproveitando agora, após cinquenta anos a ganharem coragem para o fazer.

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                                    Ainda a necessidade e o perigo das vanguardas

                                    A palavra vanguarda é usada no vocabulário comum como metáfora de origem militar que alude ao destacamento especial dos exércitos destinado, durante as campanhas, a seguir muito à sua frente, tendo por objetivo reconhecer os caminhos que deveriam percorrer, observar melhor as forças do inimigo e realizar pequenas incursões destinadas a feri-lo ou a testá-lo. Atualmente a designação é associada a indivíduos, a experiências e a movimentos que, nos planos vivencial, estético, filosófico ou político, se mostram bem à frente das sociedades de onde emergem, propondo, ensaiando e materializando vias e dimensões caraterizadas pela ousadia, pela raridade e pelo pioneirismo.

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