Arquivo de Categorias: Etc.

Finalmente, Oscar

Oscar Wilde

O L’Osservatore Romano coloca Oscar Wilde nos pináculos da lua, considerando-o «uma das personalidades do século XIX que com mais lucidez analisou o mundo moderno nos seus aspectos perturbadores mas também nos seus aspectos mais positivos». Aproximar-se-á o fim dos tempos? Tratar-se-á de um primeiro passo no caminho da beatificação? Ambas as coisas?
[Ideia roubada ao Pedro Vieira]

    Etc., Olhares

    Começo de uma era

    De walkman pela estrada fora

    A música verdadeiramente portátil começou nos inícios da década de 1960, com a vulgarização do rádio transistorizado, do gira-discos e do gravador de pilhas. Eles foram instrumentais no lançamento de uma nova cultura popular centrada na música urbana e nos seus ambientes. Mas essa era uma experiência ainda partilhada, vivida em grupo ou exibida diante dos outros, na praia, em piqueniques, em bailes de garagem. Só o aparecimento do walkman rompeu com tal dinâmica, transformando a portabilidade da música em mantimento do individualismo galopante que emergiu nos eighties. Forneceu também a possibilidade de um novo tipo de apropriação cinematográfica do quotidiano, hoje reforçada com a banda sonora infinitamente renovável, transportada por cada um no seu leitor de mp3. No entanto, quando o processo começou, há mais ou menos três décadas atrás, toda essa mudança parecia ainda mais do que improvável. «Diziam que eu devia estar maluco para andar por aí de auscultadores», conta o alemão-brasileiro Andreas Pavel, inventor do stereobelt, estreado em 1972, sete anos antes da Sony lançar no mercado o seu primeiro walkman comercial, mas ignorado na altura pelos grandes fabricantes. O começo deste pedaço da história recente, início provável de uma nova era na utilização banal ou celebratória da música e na construção sensorial do mundo, é contado aqui.

      Etc., Memória, Música

      ABC das Palavras Obsoletas – 5

      Vinicius e a garota de Ipanema

      Garoto / Garota

      Fora de alguns universos peculiares, «garoto» já não é nome que se aponha a alguém. Impõe uma depreciação da infância e da condição juvenil, totalmente deslocada nos tempos que correm. Por sua vez, «garotada» é um termo desdenhoso, invariavelmente associado a uma imaturidade que se presume condenável, socialmente desclassificada, tendo caído igualmente em desuso. O oposto do «garoto», ou, bem pior, do «garotão», era o homem «grave», sério, circunspecto, o cidadão inequivocamente adulto, probo e hirto, que jamais condescendia com a brincadeira, usava sandálias sem meias ou enrolava as mangas da camisa acima do cotovelo. «Garotice» era assim, sempre, o gesto inconsequente e irreflectido de quem jamais crescera. Já a designação «garota» não depreciava. Pelo contrário, impunha, por uma ordem lógica antiga e patriarcal, que toda a mulher jovem fosse considerada como uma desprotegida criança, ragazza, petite fille, fräulein, baby aguardando pacientemente, e um tanto irreflectidamente, pelo seu amo. «Garota» era assim a «miúda», a «pequena», a namorada bela e perfeita, vislumbrada a requebrar ao sol de uma qualquer Ipanema. Ninfa que jamais perdia o seu tempo com garotos.

        Etc., Olhares

        Bye Bye Portugal

        Brasil

        Depois de Maria João Pires, é a vez de Miguel Sousa Tavares nos ameaçar de fazer-se brasileiro. Se bem que de forma diferente, ambos incompatibilizados com um tratamento público abaixo daquele que acreditam merecer. Mas se a grande pianista não muda de estatuto com a decisão, vendo-se basicamente aliviada de certas maçadas com a contabilidade, no caso do cronista e ex-jornalista o salto será grande, pois do outro lado do Atlântico parece ser também reconhecido como escritor emérito. Só podemos desejar a ambos as maiores felicidades. Voltem sempre para as sardinhadas.

          Etc., Olhares

          Nos 30 anos da Antígona

          Não é vulgar uma editora celebrar a «concorrência». Mas é isso que a Angelus Novus acaba de fazer, associando-se à celebração dos 30 anos dos «editores refractários» da Antígona («personagem mítica, Antígona simboliza, antes de mais, a desobediência»). Uma casa editorial única, pelo perfil muito marcado do seu catálogo e pelo seu valor de exemplo. No seu blogue, a Angelus Novus explica as razões da sua homenagem, propõe um excelente texto de Manuel Portela sobre o assunto, e publica uma entrevista dupla com o editor Luís Oliveira, na qual participo. Tudo a partir daqui.

            Etc.

            Prazeres de Pyongyang

            Mesmo sem a companhia de tremoços, amendoins ou berbigão, a levemente espumosa Taedonggang faz as delícias de Pyongyang. O povo – aparentemente apenas homens, as mulheres apenas servem ou registam – nem se importa de se sentar simetricamente e de fato completo, numa espécie de enfermaria de centro de saúde onde é proibido afixar cartazes, para fruir a diurética cervejola. Kim Jong-Il aprova.

            [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=2v2HjeYJa3g[/youtube]
              Devaneios, Etc.

              ABC das Palavras Obsoletas – 4

              A malta

              Malta

              A «malta» era a maralha. «Eh, malta, éfe-érre-á!», brada ainda por vezes, em dias de guarda, a equipagem estudantil. Amorável e cúmplice, era a maltinha, a maltosa. Na antiga gíria coimbrã aplicava-se à hoste, igualitária à força do companheirismo, dos machos trajados de negro com nódoas de vinho nos fundilhos das calças. Representava também a súcia de indivíduos de má fama, de índole não recomendada às pessoas de bem, vadiando e malandrando como modo de vida. Com maior nobreza, identificava trabalhadores que se deslocavam juntos de um lugar para outro, em demanda de trabalho. Na Casa de Malta, recordava Namora «um casebre meio derruído, sem dono», habitado por «gente erradia», que se podia ver da sua casa do Penedo. Quem a ocupava, escrevia o jovem médico, eram «vagabundos, quase sempre, malteses a cumprir um fado de nómadas que a desconfiança dos outros atiçava, que a miséria deles e dos outros parecia legitimar, ambulantes que mercadejavam adornos ingénuos, campónios de passagem para gloriosos eldorados.» Queria dizer, era «a malta», aquela malta. Em tempos sombrios a malta foi ainda a massa dos «nossos», que nada tinham a ver com «eles», os pousados vampiros: «o que faz falta é animar a malta», cantava o cantor apelando ao despertar dos excluídos. Mas essa malta, a maralha, parece estar desaparecida em combate. Ou anda um tanto desalentada.

                Etc., Olhares

                O decreto do armário

                Tempos difíceis

                O Parlamento lituano aprovou ontem uma lei que proíbe qualquer referência pública a experiências ou ligações de natureza homossexual, bissexual e poligâmica. O objectivo invocado é promover «a saúde psicológica» e cuidar do «desenvolvimento físico, intelectual e moral dos menores». A Lituânia é, obviamente, o único país da região do Báltico no qual o catolicismo é a prática religiosa maioritária.

                  Apontamentos, Etc.

                  Muito campeonato pela frente

                  PSD ganhou as eleições europeias em Portugal. O Bloco de Esquerda ganhou mais espaço e atingiu o seu Evereste. O PCP «subiu 20 por cento» e diz que ficar atrás do BE «não é uma derrota». O CDS esmagou completamente as empresas de sondagens. O Movimento Esperança Portugal afirma ser já «um estádio da Luz cheio de gente». O MRPP conseguiu o seu «objectivo primordial» que era «subir em percentagem». Mesmo a votação do Partido Socialista foi apenas e só «decepcionante». Pelo que percebi, o único vencido por estes dias foi o Paulo Pereira Cristóvão. Nas eleições do Sporting.

                    Devaneios, Etc.

                    ABC das Palavras Obsoletas – 3

                    Porreiro, pá

                    Porreiro

                    O «porreiro, pá!», acompanhado de um rijo aperto de mão, dirigido por um conhecido governante português a um dirigente europeu seu compatriota no final da conferência de imprensa na qual ambos anunciaram o acordo obtido na Cimeira Europeia de Lisboa de 2007, deu a volta ao país pela mão de comentadores, bloggers e políticos. Entre ambos, a expressão traduzia um código geracional destinado a sinalizar um pacto, contentamento, familiaridade. Para muitas pessoas, no entanto, representou uma maneira superficial, quase ofensiva, de abordar um assunto e uma decisão que não admitiam ligeireza de modos. O Bloco de Esquerda transformou mesmo a palavra em ferramenta da sua propaganda eleitoral, exaltando a nota negativa mas deslembrando que a palavra já quase se não usa fora dos espaços sociais provindos dos antigos circuitos estudantis e urbanos.

                    De facto, «porreiro» já era. E era apenas para alguns, mais privilegiados. Era «bom, excelente», como era «simples, prestativo». «Gajo porreiro» era, «entre a malta», o sujeito camarada, boa rês, «cara legal» capaz de reagir com simpatia até quando alguém lhe assentava nas costas, à socapa, uma palmada das fortes. «Porreiro» era o tipo que não se importava que lhe cravassem cigarros atrás de cigarros – no tempo em que as pessoas normais fumavam – e jamais pedia de volta os cem paus que emprestara no mês passado. Era o sujeito sem manias, simples, pouco dado ao espectáculo, capaz de ouvir sem se impor aos outros. Uma espécie de Doutor Moreira ao contrário. Um José Mourinho às avessas. Já «miúda porreira» era aquela fixe, camarada mesmo, que se não esquecia dos nossos anos e nos dava metafísicos chocolates ou parzinhos de peúgas. Gente assim, «porreira» mesmo, ou efectivamente «porreta», capaz de dar uma mão na hora H, ainda existe, mas já poucos a identificam dessa forma. Só mesmo aqueles que ainda se servem do vocábulo «pá». Mas esse, pá, dará outra entrada deste ABC.

                    PS – Dizem-me por mail que «porreiro» é também uma palavra usada no Brasil «para definir o cara que só vive de porre», podendo igualmente significar «pinguço, cachaceiro, pé de cana, garganta de alambique, etc.» O que não me parece contradizer aquilo que atrás ficou escrito.

                      Etc., Olhares

                      Andam aí, os espanhóis

                      Spain

                      Um momento de distracção, um baixar da guarda, e caímos em mais  um nó de publicidade intrusiva via SMS. Visitante ocasional das bombas da CEPSA, preenchi um «cartão de cliente» e comecei de imediato a receber propostas e lembretes. Não esperava é que estes me chegassem num espanholês críptico e futebolino.

                      «Sou um “partidaço”! Sou desconto en combustível. Tire o maximo partido de mim. Va hoje ao seu Posto de Abastecimento. Sou seu Cartao Porque Eu Volto.»

                        Devaneios, Etc.

                        ABC das Palavras Obsoletas – 2

                        Estafermo

                        Já não há estafermos. Dos verdadeiros. Bonecos daqueles, feitos de ferro e madeira, que serviam na Idade Média para treino da cavalaria. Com os braços abertos, num deles uma arma – espada ou albarda, maça ou clava -, e no outro um escudo, simulavam, presos a um eixo vertical sobre o qual podiam girar, gestos repentinos de ataque e de defesa. Com os cavaleiros a procurarem acertar-lhes com a lança sem serem atingidos pelo pronto açoite. Mas estafermo foi também designação que servia para nomear a pessoa inútil ou incomodativa, sem mais serventia que não fosse a constrangida atrapalhação dos outros. Ou alguém pasmado, estático, que facilmente se deixava surpreender sem mostrar reacção. Do latim stare, estar, fermo, fime, claro. Pelo século XVII, no português e no castelhano, passou a aplicar-se também a uma pessoa particularmente malparecida e de aspecto desagradável, servindo muitas das vezes, em tempos nos quais mais facilmente se perdoava a insana deformidade dos homens que a ausência de gravidade que pudessem mostrar, para classificar mulheres particularmente feias, descuidadas, ou às quais as marcas da idade tivessem invalidado a já esquecida beleza. O gradual sumiço da palavra do léxico do quotidiano tem-nos tornado, por isso, um pouco menos cruéis.

                          Etc., Olhares

                          Mahler on the beach

                          Gustav Mahler

                          Não sou mahleriano suficientemente conhecedor das maquinações da arte para reconhecer sem pestanejar qualquer intérprete ou leitura da obra do boémio. Apenas um melomaníaco suficientemente tenaz e q.b. treinado de ouvido para separar o irrepetível, o excepcional, do que é apenas técnica, competência e gosto da arte. Das versões que conheço da Sinfonia No. 2, «Ressurreição», de Gustav Mahler, aquela que me chega agora aos ouvidos, com o venezuelano da moda, Gustavo Dudamel, à cabeça da Orquestra Sinfónica Juvenil Simón Bolívar, destaca-se como espantosa e absolutamente única. Uma música ecuménica, jogando a todo o instante com o risco, com uma vibração cantante, latina, que dilui o eco sombrio e funesto, em regra associado ao trabalho do compositor, que tem condicionado a maioria dos seus intérpretes. Notável numa peça que possui a morte e a possível eternidade da vida como motivo central. O encontro feliz com um Mahler estival. Eu gosto muito, alguns mahlerianos provavelmente não.

                            Etc., Música

                            ABC das Palavras Obsoletas – 1

                            Palavras e frases em vias de extinção que pressagiam problemas de comunicação para quem insista em usá-las. Uma série sob a forma de serviço público para os mais distraídos.

                            Chapéus de cowboy

                            Brincar aos cowboys

                            Tirando os momentos de exasperação de alguns políticos locais e treinadores de futebol quando se esforçam por defender a sisudez avisada do seu trabalho – insistindo em que não andam «a brincar aos cowboys» – a expressão já quase não corre. «Brincar aos cowboys» é uma actividade inusual numa época em que a celebração ficcionada do passado parece limitar-se ao cinema, ao romance e aos jogos de computador. Os heróis americanos são agora menos importantes para a fundação das paisagens quiméricas das gerações mais novas, e, a existirem, habitam apenas cenários de fantasia povoados por monstros ou por seres com poderes especiais. As crianças já não se divertem com «índios e cowboys» porque eles não fazem parte do seu mundo.

                            Todavia, como herói favorito da literatura do Oeste americano construída na segunda metade do século XIX a partir do modelo do James Fenimore Cooper, o cowboy viveu uma época de ouro no imaginário da primeira metade do século passado. O sorriso de Gary Cooper, o olhar cortante de Clint Eastwood e a insolência de John Wayne, como as constantes peripécias da família Cartwright na série televisiva Bonanza, deram várias voltas ao mundo. A realidade histórica que fundara o personagem – marcada quase sempre pela dureza de uma vida de solidão, miséria e incerteza – foi dando lugar a uma imagem artificial, embelezada, desenhada sobre um horizonte atraente, que durante décadas se tornou sedutora para gerações de crianças e de jovens necessitados de uma utopia de aventura, individualismo e amizade. Uma incarnação do sonho americano que parecia integrar, na sua definição formal, essa dimensão, lúdica porque incerta, que as fazia «brincar aos cowboys» com pistola de fulminantes ou um arco artesanal. Projectando, sobre um árido mas exaltante panorama, a vida que não tinham e, isso elas não sabiam, que jamais teriam.

                            O mito permanece agora associado à tradição cultural promovida nos folhetos turísticos de algumas cidades da América, mas a sombra do chapéu desapareceu definitivamente das nossas ruas. Já ninguém quer «brincar aos cowboys» ou tem sequer saudades deles. Resta o frágil vestígio no falar desatento de uns quantos. Ou as velhas revistas que foram inventando os passos do incansável Texas Jack. Ou a voz country de Linda Ronstadt. Ou a imagem fugidia de Heath Ledger em Brokeback Mountain.

                              Etc., Olhares

                              A coragem

                              coragem

                              Não vivemos em guerra, pelo menos por enquanto, nesta parte do mundo que nos cabe habitar. E todavia precisamos de coragem para enfrentar um dia, depois o outro, num tempo em que o nosso futuro material se tornou imprevisível, quando os laços pessoais são cada vez mais instáveis, quando o horizonte ecológico se mostra mais sombrio, quando a História acelera e desafia a todo o instante as nossas capacidades de adaptação. Mas onde encontrar hoje modelos de coragem? Diferentemente do tempo no qual se destacavam as figuras modelares do herói ou do santo, agora não existe um, ou dois, mas sim inúmeros exemplos de coragem, medidos por diferentes bitolas. No limite, cada um de nós pode servir-se do que lhe parecer conveniente: Aquiles, o guerreiro homérico, ou o  ser «condenado a ser livre» de Sartre, o grande homem ou o homem comum, o sábio eminente ou o herói por um dia que vemos no telejornal. Aqui não há lugar para o relativismo: todos eles põem em campo, cada um à sua maneira, paciência e perseverança, acção e reflexão, conhecimento e ousadia. É da essência da coragem, dos seus novos padrões, e de algumas pessoas corajosas, que trata o último número, o 29, da revista francesa Philosophie Magazine. Para perceber um pouco melhor como eles mudaram e não mudaram ao mesmo tempo. [Este texto apropria-se parcialmente, reescrevendo-o, de um parágrafo da PM.]

                                Etc., Memória, Olhares