Arquivo de Categorias: Devaneios

Amanhã vai ser outro dia

São quase três da manhã a 13º Celsius, o prédio está em silêncio e da minha varanda não se vê ninguém. Aqueço a sensação de que ninguém me lê, ninguém me escuta, posso escrever aquilo que me apetecer na direcção de Saturno. Faço então as contas à contradição na qual me vejo embrulhado. Num momento em que me sentia amaciar, tendendo, quanto mais não fosse por recomendação dos licenciados, para a moderação da vida burguesa, eis que a realidade não deixa. Neste país de democracia suspensa e futuro encostado à parede, estou condenado, como tantos outros mortais – sabe-se lá o que pode a imaginação fazer à pobre realidade –, a radicalizar-me de novo. Temo pelos perigos desta radicalidade nova, construída sem projecto de futuro, sem caminho à vista e voz audível na qual seja possível confiar. No horizonte dos que resistem não se encontram agora cidades maravilhosas, lideres inspiradores, miragens de futuros perfeitos e inevitáveis. Talvez reste apenas a possibilidade longínqua de um recomeço, de um estado de esperança capaz de partir outra vez do quilómetro zero a caminho de uma Nova Califórnia. Irá doer e demorará, sem dúvida, correr-se-ão os tais riscos, mas há-de partir porque o mundo não vai acabar aqui. E não será por serem agora três da manhã, por não se ouvir sequer o motor de um carro rasgando a chuva ou o latido distante de um rafeiro, que acredito menos nisso.

    Atualidade, Devaneios, Música, Olhares

    Lie to Me

    Lie to Me

    Cada Primeiro de Abril parecia um dia único. E não só para as crianças. A expectativa era grande, maior até, provavelmente, do que a das vésperas do Natal. A jornada começava cedo, vasculhando nos títulos dos jornais, nos noticiários da rádio ou da televisão, na conversa do vizinho, a mentira pela qual tanto se aguardara. O embuste fazia parte do jogo e era mais saboroso se parecesse verosímil, ou pelo menos incerto, podendo ser mantido até à manhã seguinte sem que alguém tivesse a coragem de o desmentir. Mas será mesmo que…? A 2 lá vinha então o anúncio, também esperado, revelando a extensão da burla e confirmando, quase sempre com um certo pudor, que quem por ela se deixara envolver o não tinha feito por ignorância ou burrice, mas por cumplicidade ou distracção.

    Assim foi durante bastante tempo, não se sabe até quando. É provável que tudo tenha começado a mudar algures nos anos oitenta. E na década seguinte já o Dia das Mentiras tinha deixado de ser aquilo que fora. Não por se perder a magia do engano, mas por este se haver vulgarizado, deixando de corresponder a um estado de excepção. A velocidade e a imprevisibilidade da mudança, a generalização do boato e da imprecisão, o uso jornalístico da possibilidade com um tratamento análogo àquele conferido ao facto, a criação da «inverdade», a manipulação dos acontecimentos pelas manchetes, banalizaram a boa e calorosa trapaça. Por isso o Primeiro de Abril não será mais o que foi: um dia diferente em que a mentira participava, a mentirola divertia, a mentirinha não aborrecia e o engano acendia a imaginação.

      Apontamentos, Devaneios, Olhares

      Apontamento malaguenho

      Combatentes republicanos

      Queridisimos intelectuales (del placer y el dolor) é um documentário que obviamente não vi, estreado ontem no Festival de Cinema de Málaga no qual certamente não estive. Dele retenho, por isso, apenas os ténues ecos, frases soltas, que chegam com as leituras em roda livre das três da madrugada. Eles contam que o filme cola intervenções avulsas, aparentemente incoerentes, de intelectuais espanhóis contemporâneos. Guardo duas. A primeira é de Carlos Moya, não o ex-tenista de sucesso mas o sociólogo emérito, que declara ter sido o haxixe, durante os anos sessenta, «a quinta coluna do Islão» no Ocidente. Fica a boutade, para reflexão eventual e memória futura da mesma. A segunda intervenção que retenho é a de Santiago Carrillo, e nela o velho resistente, o antigo secretário-geral do PCE, afirma que durante a Guerra Civil espanhola teve lugar «uma explosão de liberdade sexual».

      Esta «liberdade sexual» nas diversas frentes de combate deve ser relativizada mas foi real. Ela serviu à propaganda do franquismo, aliás, para mostrar a «imoralidade» dos republicanos, apresentados por vezes como vivendo em permanência entre Sodoma e Gomorra. Veja-se, como exemplo, a descrição dos republicanos «bolcheviques e jacobinos» traçada no conhecido filme de propaganda L’assedio del’Alcazar, rodado em 1940 por Augusto Genina. Sem querer ser simplista, julgo no entanto poder dizer, em abono da frase de Carrillo, que uma moral sexual mais rígida, fundada na condenação de ligações múltiplas, descomprometidas e fora do casamento, foi sinal, apenas sentido a partir dos anos quarenta, de uma regressão do franquismo em relação a práticas anteriores, historicamente comprováveis, que admitiam realmente uma menor rigidez no campo da sexualidade. Algo de semelhante se passou aliás em Portugal, com o recuo imposto durante o salazarismo de uma vivência social, sob este aspecto razoavelmente aberta, que havia sido posta em prática em determinados ambientes durante a Primeira República.

      Por outro lado, e esta é uma constante intemporal, a guerra intensa, e a guerra civil é uma guerra de elevadíssima intensidade, funciona sempre – como sabe quem alguma vez a viveu e os livros nos contam vezes infinitas – como um poderoso afrodisíaco. Debaixo da sua influência, os «factos da vida» acontecem então por si, mais naturalmente, por vezes violentamente, quase sempre com urgência. E nem entre os franquistas ela esteve ausente, como o comprovam diferentes testemunhos. Por isso a frase de Carrillo só pode admirar quem ande um tanto distraído ou esteja, com falta de tempo, à procura de um título para uma breve nota de reportagem. Provavelmente foi isto que aconteceu. Com êxito, pois foi ela que me chamou a atenção durante a leitura-relâmpago desta noite.

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        A culpa (reprise)

        A família

        A Confederação Nacional das Associações de Família, com a argúcia e a presciência que se lhe reconhecem, diz que há um «risco de conflito geracional» pelo facto de haver «jovens frustrados» que «poderão sentir-se impelidos a pedir contas a toda uma geração que lhes deixa um legado de dívidas, de falta de oportunidades, de retrocesso nas liberdades». Se bem interpreto esta preocupação, as famílias deverão então efectuar sessões de autocrítica – ou de auto-análise, para os familiares mais instruídos – nas quais os mais velhos se deverão penitenciar por um dia terem acreditado que viviam num mundo que tendia a ser melhor do que aquele que lhes havia sido legado pelos seus pais. E assim sucessivamente, regredindo na história da responsabilidade geracional, na medida do possível, até ao instante da Criação. Perceber-se-á então que o culpado de tudo foi quem começou o movimento, ou seja, Deus. Parece-me que a Confederação Nacional das Associações de Família está a meter-se numa grande embrulhada.

          Apontamentos, Devaneios

          Alívio

          Billy the Kid

          Prevaleceu o bom senso. Ao contrário do que chegou a ser anunciado, o Estado do Novo México não vai perdoar a Henry McCarty, ou melhor, a William H. Bonney, ou melhor ainda, a William Antrim, Jr., aliás Billy the Kid, 118 anos depois da sua morte às mãos do xerife Pat Garrett, os crimes cometidos, segundo palavras do governador Bill Richardson, «a saquear, a devastar e a matar os merecedores e os inocentes de igual forma». Salvaguarda-se assim uma parte do património americano que muitos milhões de pessoas foram partilhando. Pois faria lá sentido algum que agora, à revelia de tantos rapazes que vibraram com os seus assaltos, que se entusiasmaram com os duelos de carabina e revólver ganhos pelo herói-bandido com cara de bebé, se passasse um atestado de ignóbil inocência ao famigerado Kid?

            Devaneios, História, Memória, Olhares

            Anarquia a 25/12

            O Natal de Ronald

            O Natal itinerante que escolhi este ano guardava-me duas boas surpresas. Surpresas mesmo, ocasiões raras, associadas a gestos que julgava perdidos para sempre dentro deste reduto perpendicular de 92.090 Km2. A primeira veio com o bolo-rei. Pela primeira vez em bastantes anos pude comer um com fava e brinde embrulhado em papel vegetal, como os da infância. Gozado com um deleite asininamente cavaquista, associado na sua intensidade à certeza de passar por cima de uma daquelas regras sanitaristas e lerdas emanadas da União Europeia. Mas a segunda surpresa foi ainda maior e melhor. Juro que, numa pastelaria-padaria do interior, frequentada por famílias aparentemente honestas e sem pinta de simpatia pelo Diabo, pude, na companhia de dezenas de prevaricadores, fumar um cigarro ao balcão, lançando baforadas intensas sobre os receptáculos nos quais repousavam pacíficos pães de trigo e de passas, ordeiras broas de milho, serenos cacetes integrais e, mesmo por baixo do meu nariz, um esplêndido pão-de-ló. Claro que não declaro onde aconteceu isto: não sou denunciante nem quero ficar na consciência com a responsabilidade de prejudicar algum chefe de família, funcionário da ASAE, na avaliação de competências relativa ao ano civil de 2010.

              Apontamentos, Devaneios, Olhares

              Real social (e se de repente) (ok, um bocado nostálgico)

              [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=V0UcQDUR-fU[/youtube]

              All the leaves are brown / and the sky is grey / I’ve been for a walk / on a winter’s day
              // I’d be safe and warm / if I was in L.A / California Dreamin’ / on such a winter’s day

              Então foi assim. Seguia de manhã a via-sacra das compras da época, absorto em pensamentos um tanto doentios que metiam os efeitos da crise e a consciência de estar a ser sugado por uma espiral muito negra. Provavelmente nem disfarçava a tristeza. Uns metros adiante, uma mulher que nunca tinha visto revolvia estantes de CD à procura de qualquer coisa. Cara fechada, metida na sua vida, talvez com pensamentos não menos sombrios. De repente, a instalação sonora da loja, activada por um qualquer fantasma revivalista e com problemas de visão, começou a bradar «California Dreamin’», o hino sixtie de esperança e evasão. Então eu e a desconhecida como que acordámos. Cada um de nós reparou que o outro tinha despertado. Por momentos um vento antigo girou pelo ar. Olhámo-nos sem uma palavra, como cúmplices. Sorrimos levemente e fomos às nossas queridas vidas de cinquentões. Durou tudo 2’ 41’’. Ou talvez menos.

                Apontamentos, Devaneios, Memória

                Aerograma

                Natal 2010

                Nunca fui um adorador do Natal, com o seu burrinho, a sua vaquinha, e a restante parafernália pagã cercando o pequeno nazareno. Não por ter vivido muito cedo um qualquer momento de epifânica suspeição em relação a esse evento capital – bem mais forte por certo, para uma criança, do que o aflitivo instante do martírio – da religião na qual fui educado. Não por me agoniar «desde que me lembro» a dissipação, o luxo e a hipocrisia que geralmente rodeiam os espaços iluminados que lhe servem de trilho e de cenário. Afinal até houve um tempo no qual acreditei sem reservas na generosidade do Pai Natal e se me deixassem teria passado noites ao frio, emboscado num ermo escuro, para o ver passar de trenó na companhia da simpática rena Rudolfo. E atalhar logo com a minha encomenda. O desgosto não veio por aí, não. Chegou depois, pela percepção forte, sempre renovada, vivida como um calafrio, de uma ficção de paz, de compaixão o de igualdade que só consigo materializar quando me levanto da mesa da consoada, deixo o peru no sossego da travessa, e vou lá fora, em silêncio, sondar os rumos e os azimutes.

                  Apontamentos, Devaneios, Etc.

                  Al zukkar

                  sugar

                  Desenganem-se as aves de rapina que insinuam existir um crescente desinteresse por parte dos governantes da nação em relação à felicidade dos seus governados. Apoiado no parecer douto da Associação Portuguesa de Distribuidores, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas acaba de nos assegurar que não irá faltar açúcar nos supermercados. Não posso deixar de me alegrar com a notícia. Afinal a metafísica de muitas famílias depende dessa «areia grossa», sharkara em sânscrito, que os árabes nos fizeram saborear como al zukkar e hoje usamos para celebrar o nascimento de Cristo e fazer disparar a glicemia. Como proclamava Álvaro de Campos, «as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.»

                    Atualidade, Devaneios

                    Tédio

                    tédio

                    Sem ser adivinho, consigo decifrar à distância de cinquenta anos uma notícia em destaque no dia 4 de Dezembro de 2060, quando se comemorar o quadragésimo aniversário do desaparecimento do último jornal em papel e as gerações mais novas falarem todas, com alguma familiaridade, um 官话 técnico (ou mandarim simplificado) ensinado desde a pré-primária: «o Parlamento Europeu vai discutir a criação de uma nova comissão de inquérito destinada a reapreciar o caso Camarate». Se ainda for vivo, nesse dia morrerei de tédio.

                      Apontamentos, Devaneios

                      Perigoso é ter ideias perigosas

                      Danger

                      Em Ideias Perigosas para Portugal João Caraça e Gustavo Cardoso inspiraram-se numa ideia de John Brockman e acomodaram-na à procura de futuros para Portugal e para os portugueses. O projecto juntou testemunhos, originários de diferentes quadrantes disciplinares, de pessoas que se dispuseram a «pensar perigosamente». Cada argumento deveria ligar-se a «uma alteração da ordem que a ordem existente não pode conter», colocando em causa «a forma como dominamos a realidade». Todavia, do confronto entre este objectivo sedutor e o conteúdo dos 62 depoimentos publicados resulta por vezes algum desapontamento. As razões serão múltiplas mas subordinam-se a uma constatação: a de que não pode fazer-se equivaler o que é diverso ou destoante, mas exequível, ao que é verdadeiramente perigoso, arriscado, subversivo. De facto, algumas das intervenções contidas neste livro preocupam-se mais com o inventariar de lógicas viáveis do que em conceber viragens profundas ou impossíveis desejáveis. Fazem-no até de uma forma bastante prudente e calculada – logo, pouco perigosa –, como acontece com as que abordam o aperfeiçoamento dos processos administrativos, a eficácia do sistema judicial, a redução do funcionalismo público, o exercício do poder como processo técnico e a descentralização política. Aqui abundam propostas ainda aceitáveis numa lógica de consenso.

                      Mas deparamos também com projecções arrojadas cujos autores foram capazes de pensar utopicamente para lá do factível, aventurando-se por trilhos difíceis que nos fazem conjecturar sobre aquilo que não é mas poderia ou deveria ser. Como as que reclamam uma expansão sem complexos dos saberes em rede, a publicitação sistemática dos projectos fracassados, a experiência tentadora de um semestre sem governo, um amplo desarmamento das forças armadas, uma federalização europeia empreendida sem preconceitos, o alargamento dos tempos e dos meios do lazer, o repensar integral do pulsar das cidades, a refundação das universidades ou o regresso ecológico ao saber dos clássicos. Elas demonstram o valor substancial da boa ideia que presidiu à organização deste volume. A procura de outras vozes, enraizadas na experiência criadora das artes e das poéticas, numa prospecção afoita no campo das humanidades, na dimensão estruturalmente especulativa da ciência ou na intervenção inventiva da radicalidade política, filosófica e social, poderá oferecer um resultado ainda mais audacioso e incitante. O matemático Orlando Neto esclarece, no elogio do pensamento crítico do qual resulta um dos mais estimulantes textos, que «perigoso, perigoso, é implementar ideias». O exercício tem, pois, pernas para continuar o seu caminho.

                      [João Caraça e Gustavo Cardoso (Coord.), Ideias Perigosas para Portugal. Propostas que se arriscam a salvar o país. Tinta-da-China. 304 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Novembro de 2010.]

                        Atualidade, Devaneios

                        A menina dança?

                        Encontrei no Arquivo da Internet Portuguesa alguns pequenos textos publicados noutros blogues e que julgava perdidos. Recupero para já este, escrito em 2005 após o encontro casual com um manual de dança de salão. Segue com dedicatória a quem tem feito constar de maneira infame que este blogue «anda demasiado sério».

                        A menina dança?

                        Uma tarde de domingo será sempre uma boa tarde para rodopiar. Por companhia Dança Comigo, um compêndio achado numa feira do livro que oferece por um singelo euro os conselhos avisados de quem se vê logo ser pessoa experiente. Anuncia o autor, o Sr. Castelló, que, ao dançar, deve «a dama» saber-se inequivocamente conduzida. E, dócil, sacarina, «sentir a mão do cavalheiro nas suas costas e na sua omoplata, com firmeza e segurança». Certo o lesto varão de que à expectante fêmea «mão frouxa e apática lhe não inspirará confiança». Deverá, porém, mostrar-se a mulher complacente para com as dificuldades que, nas viravoltas do baile, possa o acompanhante revelar. Se tal acontecer, solução haverá, esforçando-se ela por dançar «um pouco em pontas e tentar voltar o dedo grande do pé em direcção ao passo que vai dar, sempre como prolongamento do tornozelo e nunca da planta do pé». Sugere ainda o mestre que, seja qual for a situação, se revele sempre a maior compreensão «para com os cavalheiros principiantes», pois, magnânimo, assegura que «um olhar, um gesto ou uma palavra de censura podem desmoralizar completamente o cavalheiro inseguro», sendo certo que, a partir de tão fatídico momento, este «não mais consiga acertar durante o resto da música». Quase duzentas páginas, suadas e vertiginosas, de contributo editorial para a compreensão entre os povos. Igualmente capazes de se revelarem uma fonte de aflições e de eventuais entorses. Ou de sucesso no amor.

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                          Aconteceu em Novembro

                          Natal/2010

                          Eu sei que hoje são 16 de Novembro, que estamos ainda a seis semanas do Natal e que isto não podia acontecer. Mas aconteceu mesmo. Lia o jornal pela manhã, comme d’habitude com a cabeça submersa entre as páginas. Alheio ao ruído de fundo e ao tráfego dos passantes. De repente, mesmo à frente dos meus olhos, uma mão grossa, seguida de um punho de falso arminho e depois de uma manga larga em tecido vermelho-vivo, que procurava cumprimentar-me. «Estás bom, pá? Então que é feito de ti?» Assustei-me um bocado com aquele Pai Natal inoportuno. Depois pensei que poderia ser Ele mesmo, o verdadeiro, vindo do Norte mais a Norte para anunciar que me tinham enganado quando me contaram que não existia. Tinha de ser o meu Pai Natal, pois além de parecer conhecer-me até me tratava por tu. Só depois de me recompor comecei a perceber que aquilo não fazia muito sentido, que eu, um materialista agnóstico, não podia ter andado tanto tempo enganado. O próprio se encarregou então de esclarecer o enigma: por cinco segundos desviou a falsa barba o suficiente para eu poder reconhecer um antigo camarada dos tempos em que andei a brincar às guerras. Não fui capaz de lhe perguntar se participava em alguma campanha de solidariedade, ou, mais prosaicamente, se carecia de uns euros para aguentar a crise. Só me ocorreu dizer: «Porreiro, pá. E tu? Estás na mesma.» A conversa acabou ali porque uma criança escoltada pela mãe mostrou vontade de interagir com o simpático velhinho. Fiquei sem saber se me queria dar uma prenda, se pretendia que eu lhe emprestasse uma nota, ou se tinha só gostado de me rever. Esta mania de anteciparem o Natal dá cabo de mim.

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                            Livros que não li (1)

                            Ryszard Kapuscinski

                            Kapuściński Non-Fiction, de Artur Domoslawski

                            Uma vez, no século passado, antes ainda de Abril de 1974, tentava eu sair do Porto com destino ao sul – tinha ido a uma manifestação-relâmpago no 1º de Maio e ainda vinha com os valores da adrenalina em alta – quando apanhei boleia de um sujeito que conduzia um carro topo de gama e tinha todo o aspecto de um daqueles contra os quais os meus camaradas me tinham prevenido. Éramos dois rapazes e eu, o mais tímido dos dois, preferi o banco de trás, no qual sentiria menos o dever de fazer conversa com «o burguês». Foi nessa altura que vi, sobre o banco traseiro, um exemplar de um livro de Lenine, Como Iludir o Povo, julgo que ainda na velha edição da Centelha. Puro engano do homem, naturalmente, pois se é verdade que Lenine sabia enganar o povo, não era bem no sentido que aquele sujeito com ele provavelmente esperava treinar. Com a devida distância, talvez tenha sido por uma confusão análoga que Como falar dos livros que não lemos?, do psicanalista e professor de literatura Pierre Bayard, chegou em 2007 a ser o no. 1 do top de vendas em França.

                            Mas claro que este título é uma piada e apenas enganará os tolos. Só mesmo um viciado na leitura pode escrever um livro como aquele, que trata sobretudo do drama do grande leitor, ou do crítico que o é também forçosamente, quando colocado perante a paisagem vasta até à desmesura, e que não pára de crescer, dos livros que jamais poderá ler pois não tem tempo de vida suficiente para o fazer: «a leitura é primeiro que tudo a não-leitura e mesmo para os grandes leitores que lhe consagram toda a sua existência, o simples gesto de pegar e de abrir um livro encobre sempre o gesto inverso.» Por isso são tão importantes os livros que lemos quanto os livros que não lemos, ou que ainda não lemos. Se não formos distraídos, uns levam-nos a outros e por uns poderemos entrever aquilo que os outros poderão conter, levando-nos a procurá-los, a oferecê-los ou mesmo a falar deles a quem nos queira ouvir Quem nunca recomendou um livro que jamais leu – seja ele a Bíblia Sagrada, um romance de Salman Rushdie ou a biografia de José Mourinho – que atire a primeira pedra.

                            k_nonfictionÉ a partir desta ideia que passarei a falar aqui, de vez em quando, dos livros que ainda não li ou que jamais lerei. Dos quais sempre adiei a leitura, como os sete tomos de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, que cheguei a ter alinhadinhos na estante. De quem não tenho vontade alguma de ler o quer que seja (admito que por ignorância e mau feito), como qualquer romance, apostilha ou conta da mercearia de José Rodrigues dos Santos. De quem nada posso ler uma vez que se trata de um autor que não existe e acabo de inventar, como o austríaco Paul Wassenberger. Ou de autores que conheço mas de quem não li «aquele» apenas porque ainda o não apanhei a jeito, como Non-Fiction, a biografia de Ryszard Kapuściński (1932-2007) escrita pelo jornalista Artur Domoslawski e que é já um best-seller na Polónia. Ela promete dar a conhecer melhor o passado de espião ao serviço do regime comunista polaco e de grande cultor de um certo «jornalismo ficcionado» que, post-mortem, fez e faz dele uma figura simultaneamente duvidosa e fascinante. Este está na calha, podem crer.

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                              Back in 1969

                              Jim

                              O governador da Florida, Charlie Crist, sugeriu que Jim Morrison possa vir a receber um perdão póstumo da condenação por ter mostrado tudo, e simulado mais umas quantas coisas na linha do supostamente indecoroso, durante um concerto público que teve lugar em Miami há cerca de 41 anos. Acho mal, pois vão prejudicar o bom nome do ex-vocalista dos Doors. O próximo passo deverá ser a divulgação maciça deste vídeo iconoclasta. Mas não a deste.

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                                Agora não, talvez depois

                                Num acesso súbito de imodéstia, pensei em escrever um post crítico mas optimista sobre os caminhos previsíveis da nossa vida colectiva num tempo próximo presente. Mas fui incapaz, não me saiu uma ideia, não consegui ver mais longe do que um palmo à frente do nariz. O nevoeiro está cerrado, o terreno escorregadio e falta-me uma lanterna.

                                nonsense

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                                  Palavras rápidas

                                  As palavras e a crise

                                  Quando tive a primeira gramática – se não me engano a de Pires de Castro, que já vinha do final dos anos trinta e herdei de um tio – fixei-me, como qualquer criança normal que prefere o misterioso e o inesperado, nas interjeições. Essas palavras-relâmpago, indeclináveis, que nunca mudam mas revelam sempre fortes estados emocionais e sensações súbitas. Que empurram sem nos deixarem pensar, que incentivam ou assustam dispensando frases que demoram demasiado tempo a pronunciar. Com algumas foram casos de amor à primeira vista: Apre! Irra! Arre! Ufa! Eia! Sus! Mesmo o Ai! e o Ui! pareciam bombons para quem achava ainda que a dor durava só um segundo. Existiam também aquelas que o padre confessor traduzia numa penitência infernal de dez salvé-rainhas, trinta pai-nossos e cinquenta avé-marias, como Porra! Merda! Chiça! e outras que os vocabulários impressos omitiam. A vida vivida foi trazendo mais, menos vulgares, imperativas, como Oxalá! Coragem! Força! Avante! Tchau! Uau! Já o assanhadiço Capitão Haddock ensinou-me as melhores: Raios! Coriscos! Ectoplasma! Equinoderme! Cercopiteco! Lembrei-me de todas elas por estes dias ao sentir na pele os pesados açoites do PECIII, ao ouvir as palavras dos economistas de uma nota só que pedem mais e mais sangue, ao ver os noticiários dos canais de televisão que se comprazem em deixar-nos mais deprimidos a cada minuto. Credo! Chega! Socorro! Rua! Ah! Aaaaaahhhhhh!

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