Tempo instável
Tem dias em que me apetece desblogar. Tem noites em que também. Ficar calado, a ouvir os outros dizerem alto que lhes apetece o mesmo. Uma mania sem consequências de maior.
Tem dias em que me apetece desblogar. Tem noites em que também. Ficar calado, a ouvir os outros dizerem alto que lhes apetece o mesmo. Uma mania sem consequências de maior.
Este blogue, no seu esforço insano e inglório de captar a espuma da espuma dos dias, foi um dos primeiros a falar da forma como a nossa rapaziada do râguebi se apresentou em campo a vociferar A Portuguesa. Entretanto, todo o país reparou no caso. E parte do exterior também. Ao ponto de vermos a selecção de futebol, no jogo que terminou com a vistosa placagem proactiva de Scolari a Dragutinovic, cantando o hino já uns bons decibéis acima do normal. E também de os adversários bradarem o seu guerreiro «Fratelli d’Italia,/ l’Italia s’è desta,/ dell’elmo di Scipio/ s’è cinta la testa» com um outro fôlego. Mas é melhor não embandeirarmos com as maravilhas do râguebi e do seu pequeno mundo, alimentando certos mal-entendidos.
Um deles refere-se à tentativa de fazer crer que o râguebi estimula a bravura e um são patriotismo. Entretive-me a dar uma volta pelos comentários de alguns blogues e sítios desportivos interessados na modalidade e fiquei completamente atordoado com a quantidade de opiniões de natureza racista e xenófoba que se serviram do hino nacional para mostrarem como «ainda há verdadeiros portugueses» ou «não são precisos pretos» para mostrarmos os nossos feitos. E, a quem achar que não se deve dar assim tanta importância ao hino, exige-se ali «que abandone o país» ou então «mude de nacionalidade» (os itálicos entre aspas foram retirados de alguns comentários). Apesar de reconhecer a bravura desportiva do gesto, preferia que os Lobos tivessem ficado mudos, cantado em playback, ou mesmo uivado, do que terem dado ocasião a que este tipo súcia se possa manifestar. Apenas um fait divers? Atitude de uns quantos recém-chegados mais ou menos dementes e sem tradição entre o público da modalidade? Veremos.
O outro mal-entendido diz respeito à tentativa de se fazer crer que o mundo do râguebi é constituído por pessoas normais. Que nem todos os jogadores se chamam Martim, Tomás, Salvador, Gonçalo ou Diogo, que nem todos relaxam um pouco do atarefado quotidiano jogando golfe e bebendo puro malte, que nem todos eles são veterinários, engenheiros agrónomos ou (e) filhos-de-família. É verdade que não, mas nem por isso a situação real aproxima os raguebistas do cidadão comum. É que, para além, que eu saiba, de não existirem jogadores que sejam ao mesmo tempo filósofos, poetas, cineastas ou bailarinos – um pouco mais próximos, como é sabido, do português-padrão –, é espantosa a quantidade de atletas com um aspecto pouco saudável e, sinceramente, um tanto ou quanto animalesco, próprio de quem lida boa parte do tempo com bestas. Como parece ser o caso – o Ricardo Araújo Pereira também chamou, na Visão, a atenção para este exemplo de retorno humano ao estádio de Neanderthal – do gaulês Sébastien Chabal (na imagem). Aquele a quem os adeptos franceses chamam de Átila, Homem das Cavernas, Hannibal Lecter ou O Anestesista. Mas há mais. Não, os jogadores do râguebi não são gente como nós. E, como diria um conhecido autarca do norte e homem da bola no pé, «quem disser o contrário, mente».
Vi Easy Rider seis vezes. E todas elas em poucos meses, três numa única semana. Tinha 17 anos, pouco cinema à disposição, detestava a vida imutável da cidade pequena e imaginava-me um pouco a percorrer as estradas americanas que me pareciam infinitas. Era aquela, para mim, a América. Desmedida e contraditória, feita de rapazes como aqueles, bons armados em maus, que se passeavam, soberbos, por entre simplórios da Louisiana com cara de sacanas. Mais conflito de gerações que luta de classes, sem dúvida. As stars and stripes pintadas na Harley Davidson de Wyatt (Peter Fonda), o chapéu de batedor fora do tempo usado por Billy (Dennis Hopper, também o realizador do filme), pareciam-me trocistas, provocadores. American dream às avessas com marijuana à descrição. Mas só depois do deprimente final – a morte violenta dos dois argonautas: «It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)» – percebia definitivamente o olhar cínico de Fonda. Para o exorcizar, voltava então a ver tudo de novo.
Passo pelo corredor da casa e oiço, saídos da televisão, grandes gritos do povo enfurecido que protesta na rua, que acusa, que condena. Clama-se por justiça, alguém é considerado culpado. Pensei que tudo aquilo era contra o casal McCann. Mas não, era contra o Scolari.
Pode viajar-se agora a 300 à hora no belo comboio Eurostar laranja branco e prata. Uma viagem entre Paris e Londres demorará em breve apenas 2 horas e 3 minutos. Vai ser bastante mais fácil conceber álibis para infidelidades além-Mancha ou para atentados em Balmoral.
A codificação dos gestos é sempre mais lenta do que a realidade que a suporta. Hoje, num restaurante, alguém numa mesa em frente da minha pedia a conta – aberta por um PDA, processada por computador desktop, impressa a jacto de tinta – mimando para o empregado, de forma convencional, o gesto de escrever. Calculo a agitação que teria criado se lhe tivesse ocorrido levantar a mão direita (ou, pior, a esquerda; ou, pior ainda, ambas) simulando o acto de digitar.
De repente o telefone tocou. Passava uma meia hora das onze da noite, e do lado de lá uma voz feminina que era apenas um murmúrio. Palavras que eu não podia compreender, numa língua que não soube identificar. A voz falava baixinho e chorava, num lamento indecifrável. Disse-lhe, em inglês, que tinha muita muita pena mas que provavelmente deveria estar enganada, que eu não era com toda a certeza a pessoa que ela pensava que eu era, que não conseguia de todo entendê-la. Do outro lado, como se eu não tivesse falado, como se a minha voz pudesse ser apenas uma gravação, a mesma mulher prosseguiu no seu lamento incompreensível, chorando ao meu ouvido mecânico. Pedi desculpa e disse que precisava desligar, desejei-lhe uma boa noite, disse de novo que lamentava, desliguei. Sem a certeza de ter sido engano.
Uma é loira e a outra morena, mas tomo à letra o delírio antemortem do Luís Januário. Também eu confundo muitas vezes a Anna Magnani e a Monica Vitti. O analista havia de gostar de saber desta associação, mas fica só entre nós.
Lamento Tiago (Barbosa Ribeiro), mas nunca percebi, e continuo sem perceber, o que de especial, ou de particularmente democrático, tem a «folia» sanjoanina do Porto. Apesar de já a ter experimentado algumas vezes, chegando a madrugar sujo, suado e namorado em Matosinhos. Sempre a achei uma festa desenxabida e popularucha, com toda a gente a noite inteira a caminho de lado algum, a fazer de contas que está muito feliz e assaz contente. Por isso mesmo o Estado Novo a tolerava sem problemas. E agora, como dizia uma festeira raçuda entrevistada pela televisão, «divertimo-nos muito, senhor: damos umas marteladas e comemos sardinhas». A comparação com o Santo António lisboeta é inevitável: este é também um vestígio de um passado pouco edificante, ainda muito marcado pela intervenção folclorista do SPN/SNI, que de positivo tem apenas o facto de não ser apresentado, como acontece com o S. João no Porto, como «a festa de toda uma cidade». Quando vejo os assomos de «pimbalhismo» e de afirmação provinciana e palonça de uma dada identidade em que se transformaram estas paródias – aproveitadas, além do mais, pela pior demagogia eleiçoeira –, recordo sempre uma frase que ouvi há alguns anos numa estação regional de rádio: «Dizem que em Avintes só há broa, mas há mais, há muito mais do que isso: também há broa com chouriço».
De repente tornara-se invisível. Como acontecera com a sua própria sombra, também o olhar dos outros deixara de o perseguir. Podia agora sorrir, ou acenar, ou imitar o voar oblíquo dos pássaros, sem que lhe perguntassem porque o fazia.
Conta John Banville, no seu livro sobre Praga, que quando Kafka começou a ler excertos de O Processo a um grupo de amigos, foi acometido de um tal ataque de riso, logo à primeira página, que acabou por desistir da leitura. Algo me terá escapado na história soturna de Joseph K.
Segundo o Correio da Manhã, João Botelho está a preparar, em conjunto com a jornalista Leonor Pinhão, um filme que será uma adaptação livre do best-seller Eu, Carolina. De acordo com o realizador, o título provisório é Corrupção, «uma homenagem a Fritz Lang, que dirigiu Big Heat», e pode definir-se desde já como «um filme negro, ao estilo dos policiais americanos dos anos 40». Pinto da Costa e Carolina Salgado estarão, como será de calcular, no epicentro da trama. Conhecendo-se o «ultra-benfiquismo» do realizador e da sua mulher, é de esperar uma obra de cinema noir-engagé.
Era um senhor com um tom voz que vinha do passado e gravatas de nó minúsculo. Capaz de comentar um jogo declarando sem um piscar de olhos, para um país com quase quarenta por cento de analfabetos, que «os garbosos mancebos da Briosa executam com elevado pundonor, e quiçá a maior distinção, um futebol deveras estereotipado.» A frase encontrei-a ontem, copiada a lápis numa agenda de 1965.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=nCs4yMXs1is[/youtube] |
«Dizer idiotices, por estes dias em que toda a gente reflecte profundamente, é a única forma de provar que temos um pensamento livre e independente.» Para lembrar que anda pelas livrarias Boris Vian por Boris Vian, uma compilação de aforismos – este de 1951 –, alguns deles conhecidos, outros dispersos por manuscritos avulsos, daquela pessoa que se fazia passar por um tal de Vernon Sullivan. Seleccionados por Noel Arnaud, traduzidos por Sarah Adamopoulos e editados pela senhora dona Fenda, convém que se diga. A conservar sobre a mesa de trabalho, numa prateleira acessível da despensa ou no porta-luvas do carro.
Fátima arrasa S. Bento da Porta Aberta, Sameiro e Almortão. De acordo com uma jornalista da SIC, numa peça do telejornal cujo tema era exclusivamente esse, o complexo da Cova da Iria encontra-se «em primeiro lugar no ranking dos santuários portugueses» no que respeita à afluência de peregrinos. Em contrapartida, no mês passado Maria Sharapova perdeu o lugar no ranking do ténis feminino para Justine Henin (embora eu talvez prefira Elena Dementieva, que se encontra em décimo mas possui um belíssimo nome).