Arquivo de Categorias: Democracia

Impropriamente vida

A 19 de outubro completou-se um ano sobre a morte de Manuel António Pina. O poeta, escritor de prosas várias, o cronista obstinado, o homem dos jornais, dos seus amigos e da vida dele. Na vaga quase unânime de elogios e recordações que inundou diários e semanários, rádios e televisões, blogues e redes sociais, duas facetas suas emergiram mais vincadamente. A primeira recordava «o Pina», assim lhe chamavam sempre os seus próximos, os seus amigos, como alguém que era rigorosamente aquilo que parecia; a segunda insistia na falta que nos faz por ter interpretado um papel público único, que mais ninguém parece estar em condições de preencher. (mais…)

    Democracia, Etc., Leituras, Memória, Olhares

    As eleições e os independentes

    Os meses que antecederam as eleições autárquicas decorreram como se de repente tivéssemos mudado de país. A intervenção errática e hostil do governo sobre a nossa vida e as nossas esperanças afrouxou significativamente, deixando que nos concentrássemos no território de proximidade administrado pelo poder local. Nem tudo, porém, correu pelo melhor. Apesar de existirem naturalmente diferenças, algumas significativas, entre as listas concorrentes, os seus programas, os processos de aliança que incorporaram ou a qualidade e o perfil dos candidatos, o seu padrão foi demasiadas vezes nivelado por baixo. No Facebook, uma página de «tesourinhos deprimentes das autárquicas», rapidamente popularizada, revelava em tom bastante jocoso um panorama tão extravagante quanto catastrófico. (mais…)

      Atualidade, Coimbra, Democracia, Opinião

      Desbloquear o Bloco

      Os resultados do Bloco de Esquerda nas eleições autárquicas têm suscitado algumas leituras críticas aceitáveis, mas também, e sobretudo, um vendaval de observações infundadas e de vaticínios de um desaparecimento à vista. A verdade é que a maioria dos analistas políticos mais lidos e comentados tem manifestado a propósito do tema uma inesperada cegueira, olhando aquilo que é certo e seguro – os números, quase todos eles realmente maus – mas não o que se coloca, como cenário, muito para além das circunstâncias imediatas. A morte anunciada do Bloco é pois, sob esta perspetiva, claramente exagerada. E se por hipótese ela pudesse vir a ocorrer, traria consigo, com toda a certeza, consequências muito negativas para a vida democrática, para o nosso futuro comum e até para as expetativas de muitos dos que vêm agora no BE um pássaro de asas cortadas. (mais…)

        Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

        As diferentes vidas do comunismo

        Nos últimos vinte anos o interesse pela história do comunismo foi ampliado por dois fatores decisivos. O primeiro foi, naturalmente, a avalancha de mudanças propiciada pelas circunstâncias que levaram à Queda do Muro, instigando o interesse pelos fatores de transformação ocorridos em Estados que ao longo de décadas haviam sido olhados como subordinados a regimes imutáveis. A este fator de interesse foram adicionadas as estimulantes possibilidades de um alargamento do conhecimento trazidas pela abertura pública de arquivos até então inacessíveis e particularmente aproveitadas pelos historiadores. O segundo fator foi imposto pela presente reafirmação da desigualdade e da instabilidade do capitalismo, que tem proporcionado um regresso à crítica sistémica proposta por Marx e a uma reavaliação da justeza do valor utópico e emancipatório do ideal comunista. Recentemente vertida para o português, A Bandeira Vermelha, do historiador britânico David Priestland, relaciona-se com ambos os fatores, embora o faça de uma forma que permite diferenciá-la de outras obras de síntese sobre a história do comunismo que foram editadas nos últimos tempos. (mais…)

          Democracia, Ensaio, História, Leituras

          Os ganhos e as perdas

          É sempre difícil fazer uma apreciação dos resultados das eleições autárquicas fundada apenas em operações simples feitas com a máquina de calcular. A dificuldade é imposta pela intervenção de fatores pessoais (como as capacidades ou o prestígio público de determinados candidatos), circunstâncias locais (entre eles as redes clientelares ou a existência de problemas regionais muito concretos) e particularidades orgânicas (sobretudo no que diz respeito à apresentação de coligações eleitorais e, agora, também ao crescente papel das listas de independentes). Por isso, nada como tentar transformar o complexo em simples e olhar as eleições não na mera perspetiva dos números, mas sob um ângulo mais amplo, capaz de permitir a observação de algumas das suas dinâmicas. (mais…)

            Atualidade, Democracia, Opinião

            Ainda as praxes

            praxis

            1. Voltou a reacender-se o interminável debate público sobre as «praxes académicas». Trata-se de uma discussão quase sempre bastante crispada, opondo os que nelas vêm uma forma de viver a academia e, presumem, de salvaguardar as suas tradições, aos que as recusam liminarmente como inúteis, obtusas e detestáveis. Deste debate autoexcluem-se infelizmente os atuais estudantes «praxistas», que a põem em prática de forma automática, quase sem qualquer preocupação crítica com as suas origens, formas, significados e consequências. Deixo claro que não sou neutro neste debate, pois rejeitei-as há muito, antes até de ser estudante universitário, não tendo mudado de opinião. Não o faço, porém, a partir de uma atitude cega e intransigente. (mais…)

              Atualidade, Coimbra, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

              Porque sei em quem votar

              Cidadãos Por Coimbra

              Viver numa cidade de tamanho médio como o é Coimbra, que possui além disso marcas históricas, sociológicas e culturais muito próprias, leva-nos ao confronto com uma gestão autárquica que tem, frequentes vezes, demasiadas vezes, caminhado a contracorrente daquilo que essas marcas reclamam. O que impõe o anseio e a necessidade de uma mudança rápida e substancial. (mais…)

                Atualidade, Coimbra, Democracia

                Vou ali e já volto

                O Tribunal Constitucional fez aquilo que tinha de fazer para ser coerente com os seus objetivos e processos de funcionamento: votou com base numa interpretação razoável dos termos da chamada lei da limitação de mandatos. Por isso, dado ser esta claramente insuficiente e ambígua, o ónus da culpa lançada sobre aquilo que de mau ela irá ajudar a conservar no funcionamento do poder autárquico pesará diretamente sobre as costas do legislador. E também sobre os partidos (no caso, PSD e PCP) que tudo fizeram para que vingasse a interpretação que vingou. O PCP chegou mesmo a comentar, já depois da votação do TC, que «ganhou a democracia», escudando-se na defesa dos direitos democráticos dos candidatos crónicos como se falássemos apenas de santos servidores da coisa pública e não de eventuais, ou por vezes certos e seguros, pecadores. (mais…)

                  Apontamentos, Democracia, Opinião

                  Humor e resistência

                  Conta o ator e apresentador australiano Ben Lewis que uma das fontes das quais se serviu para escrever «Foice e Martelo», um divertidíssimo livro sobre o manancial de piadas que circularam à socapa por todo o leste europeu antes da queda do Muro de Berlim (edição portuguesa da Guerra & Paz), foi «1001 Anedotas», volume da autoria do professor eslovaco Jan Kalina publicado em 1969 na cidade de Bratislava. Nele se compilavam pequenas histórias que corriam nos países do «socialismo realmente existente» satirizando os vícios dos regimes de partido único e dos seus burocratas. Vale a pena retomar a pequena história desta obra e dos efeitos que ela teve na vida do seu autor. (mais…)

                    Apontamentos, Democracia, Devaneios, História, Leituras

                    Pedro não é Vinicius

                    Corria o ano de 1969 quando em Coimbra, em plena «primavera marcelista», subiu de tom a contestação da política educativa, dos limites impostos ao associativismo estudantil e principalmente do regime. Foi um «ano de brasa», ainda hoje lembrado por tantos dos que o viveram ou dele colheram o eco, cujo desfecho, ao contrário do que por vezes se diz e escreve, não ocorreu logo no final do ano letivo. Pelo contrário, após um breve recuo dos estudantes, os conflitos radicalizaram-se e ganharam novos cenários, não deixando de ter lugar até ao 25 de Abril. A «crise de 69» acabou, pois, em 74. Mas aquele ano foi um ano decisivo. Para acompanhar a luta estudantil, a par das reuniões de caráter mais objetivamente político, tiveram então lugar iniciativas várias, de caráter lúdico e cultural, destinadas a lançar e a projetar «estados de alma» capazes de reforçar a combatividade. (mais…)

                      Coimbra, Democracia, História, Memória

                      Como viver sem otimismo?

                      O pessimista. Img. de Elif Sanem Karakoç
                      O pessimista. Fot. Elif Sanem Karakoç

                      Em 1949 a terra ainda estava empapada de sangue e cheirava a pólvora. As recordações dos que haviam sobrevivido à Guerra continuavam, como continuariam por muitos anos, a preencher-lhes as insónias sacudidas pelo eco das bombas e das botas militares. Alguns chegaram mesmo a dizer que já não eram capazes de se adaptarem ao sossego da paz. Quando, nesse ano, Adorno falou da impossibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz – podia ter falado de compor uma sinfonia, de pintar um quadro, de realizar um filme, de olhar o futuro na plenitude da esperança – referia-se ao desespero que nos assola e derruba depois de olharmos o horror mais indizível. O filósofo poderia ter perguntado ainda se seria possível comer, rir, trabalhar ou amar, conjeturando sobre se algum desses gestos valeria a pena. Deixando no ar que não, que não valeria, e empurrando-nos para o fundo mais fundo do desalento. (mais…)

                        Apontamentos, Democracia, Opinião

                        Convicções

                        Por uma destas tardes, enquanto fazia algumas arrumações domésticas, revi um episódio contado por João Bénard da Costa num recorte do antigo diário Independente. O semanário, acessível nos arquivos, que nos lembra os longínquos dias em que pairava sobre o Portugal pós-revolucionário a ideia de que era possível ver uma direita jovem, culta e inteligente a nascer do nada. Contava-se nesse recorte que na noite de 17 de Maio de 1945, quando no cinema Politeama o filme Casablanca estreou em Portugal, no momento em que no ecrã A Marselhesa abafou Die Wacht am Rhein, o cântico alemão saído da Guerra Franco-Prussiana utilizado pelos nazis, o público lisboeta se pôs de pé, cantando também, em uníssono e alta voz, a canção que em 1796 se tornou o hino da França revolucionária e republicana. (mais…)

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                          Ser solidário

                          O sociólogo Émile Durkheim falava da solidariedade como um elo moral capaz de unir os indivíduos do mesmo grupo e de funcionar como fator de coesão. Sem ela, as sociedades dissolver-se-iam e os humanos voltariam a viver em bandos, centrados na sobrevivência e numa interminável guerra de todos contra todos. Porém, ela não traduz apenas uma ética de governação que impõe a proteção dos mais fracos: integra um sentido mais completo, capaz de incluir um sentimento de proximidade, entreajuda e comunhão. Diariamente alimentado, este sentimento assegura aos diversos grupos uma lógica de autoproteção que os defende do exterior e lhes confere autonomia e protagonismo. Sob os regimes autoritários, esse dever de solidariedade foi frequentes vezes subvertido, trocado por uma escravizante diluição do indivíduo no todo. Por isso as democracias, que se desejam emancipatórias, o valorizam tanto. (mais…)

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                            Um feriado mal passado

                            No princípio o 10 de Junho metia-me medo. A partir dos treze ou catorze passei a odiá-lo. Apesar da atitude ter mudado, o motivo era o mesmo: a experiência traumática de ver na televisão de canal único, a preto e branco, a cerimónia integral com a «veneranda figura do Chefe de Estado», de alva farda marítima, ou com os ministros do governo, invariavelmente de escuro cinza, a aporem medalhas de bronze – as de ouro e prata estavam reservadas para os mais dignos – em homens e mulheres trajados de negro, recém-chegados nos seus fatos domingueiros de aldeias recônditas ou de bairros degradados. Lá estavam eles nervosos e chorosos no Terreiro do Paço, com «as tropas dispostas em parada», a receber, ano após ano, em complemento de um cumprimento rápido e ritual, o pequeno símbolo metálico com o qual a Pátria, supostamente reconhecida, premiava os seus filhos mortos, os seus maridos desaparecidos, os seus irmãos que haviam perdido a razão, a alma ou os tímpanos numa guerra sem saída. Mesmo após a instauração da democracia, aqueles que haviam crescido a observar esse rito anual jamais esqueceram as manhãs de verão durante as quais, a cada ano, se transformava aquele feriado num funeral da pátria. (mais…)

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                              Coimbra, cidade aberta

                              coimbra69
                              Coimbra69 – Fot. Fernando Marques «Formidável»

                              A partir de hoje passo a reproduzir aqui alguns dos artigos de opinião publicados regularmente no Diário As Beiras, de Coimbra. Por vezes com pequenas revisões. Num caso ou noutro – como acontece com este texto – os temas abordados poderão ter maior relevância para os leitores (ou para os passageiros) da cidade.

                              A primeira memória que tenho de Coimbra liga-se a uma frase enigmática do meu pai. Um dia, ao passarmos na Portagem, junto ao antigo Café Montanha, apontou para um grupo de rapazes e de raparigas de roupa negra, muito justa, e avisou-me: «Olha, aqueles ali são os existencialistas». Deve ter acontecido por volta de 1960 e muitos anos depois, ao folhear uma coleção do jornal Via Latina, percebi que nessa época estava de facto em curso na academia coimbrã um combate de ideias entre estudantes católicos mais ou menos conservadores e um grupo de defensores do «existencialismo francês», reconhecendo estes sermos nós os primeiros responsáveis pelo destino que escolhemos. O episódio ficou registado e creio ter sido ele a fazer com que passasse a ver a cidade, apesar da sua estreita dimensão – então menos de metade dos habitantes de hoje –, como um território aberto à novidade do mundo e aos seus dilemas. (mais…)

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                                Política da amizade

                                Fotografia de Constantine Volo
                                Fotografia de Constantine Volo

                                Ao refletir no posfácio que ocupa quase metade da recém-saída edição nacional de O Amigo, de Giorgio Agamben (n. 1942), o seu autor, António Caselas, sublinha um aspecto que resulta fulcral no texto do filósofo italiano: «A amizade é essencial ao relacionamento político e não um artifício privativo que disfarça uma falta.» E, no entanto, é justamente a confusão entre estas duas leituras, e principalmente o destaque dado à segunda aceção, que denuncia o modo como o conceito tem vindo ser progressivamente vulgarizado, ou mesmo depreciado, no domínio do público. No limite, os conceitos de «amigo» e de «amizade» presentes hoje nas redes sociais são contaminados por aquela presunção segundo a qual eles representam um relacionamento privado e entre indivíduos. Ao mesmo tempo, porém, o próprio conceito de rede questiona esta perspetiva, uma vez que a ligação pessoal é publicamente exposta, a uma escala nunca vista, passando a assumir uma dimensão social que lhe confere um significado inevitavelmente político. (mais…)

                                  Cibercultura, Democracia

                                  40a. Avenida

                                  De vez em quando recupero dos arquivos deste blogue textos não desatualizados aos quais vale a pena sacudir o pó.

                                  Seguro a bela edição da Antígona, já com mais de vinte anos, de Nós, concluído em 1921 por Ievgueni Zamiatine (1884-1937), e regresso ao último parágrafo, sublinhando a sua derradeira paisagem. De um entusiasmo tão simulado quanto assustador, que deveria prefigurar esse futuro industrial, radioso, perfeito e desapiedado da sociedade inventada cujo destino histórico, tão «real» quanto imperfeito, hoje podemos conhecer: «Conseguimos construir um muro temporário de ondas de alta voltagem na transversal da 40ª. Avenida. Tenho a esperança de que venceremos. Mais do que isso, tenho a certeza de que a vitória é nossa. Porque a racionalidade tem de triunfar.» (mais…)

                                    Democracia, História