Arquivo de Categorias: Democracia

O que fazer com esta espécie de gente?

Com a derrota dos principais fascismos na Segunda Guerra Mundial, começou a instalar-se em grande parte do mundo, e de forma mais rápida e acentuada na Europa e nas Américas, uma experiência de civilidade democrática e cosmopolita que, apesar das desigualdades e dos conflitos, envolveu um setor cada vez mais amplo da população, moldando a sua forma de viver e de olhar o mundo. É verdade que em Portugal e Espanha subsistiam ditaduras, mas estas começavam a recuar face a uma crescente resistência. E a Leste do continente, onde regimes autoritários procuravam impedir qualquer abertura, emergiam também sinais de mudança. A viragem democrática na Península Ibérica, materializada entre 1974 e 1978, e as rápidas mudanças nos países do «socialismo real» que ocorreram após a queda do Muro de Berlim, não emergiram do nada.

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    Não haverá uma guerra civil na América

    Tenho encontrado por aí, em alguns artigos de opinião, embora escassos, mas principalmente em apontamentos e comentários das redes sociais, referências à eventualidade de os Estados Unidos da América caminharem a passos largos e muito rápidos para um guerra civil. Por vezes, este padrão de comentário disfarça um certo comprazimento, admito que algo inconsciente, mas presente nas entrelinhas, situado entre um «eles afinal merecem» e um «pode ser que assim o assunto se resolva». Não considerando agora o facto de as guerras civis serem as mais terríveis, mortíferas e traumáticas de todas as guerras, com um nível de destruição material e espiritual que raramente outras produzem, importa salientar que elas deixam nos povos um rastro de medo, pesadelo e sofrimento que, associado a desejos de vingança, se prolonga por gerações.

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      Em defesa do Bloco

      Como democrata e homem de esquerda, parece-me completamente intolerável, além de bastante perigosa, a vaga de depreciação da qual o Bloco de Esquerda está agora a ser objeto. Não apenas pela direita em geral, o que não será grave – seria até um mau sinal se tal não acontecesse –, mas por muitos jornalistas e comentadores com assento cativo nas televisões e nos jornais. Alguns fazem-lhe até uma espécie de funeral antecipado, equiparando o seu eventual desaparecimento à morte de toda a esquerda como ideal, como projeto e como solução, falando mesmo do fim de uma época da história das lutas sociais e das democracias.

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        A esquerda não se «apaga»

        As teorias que andam agora a circular a propósito do «apagamento» ou do «fim» do ideal de esquerda, são, como afirmou Mark Twain sobre as notícias que corriam anunciando a sua morte, «manifestamente exageradas». É certo que a esquerda política plural precisa olhar à sua volta e, não seguindo necessariamente o fátuo «ar do tempo», por certo considerar as suas transformações. E adaptar-se a elas, corrigindo erros e recusando descaminhos. Todavia, os grandes ideais de igualdade, de solidariedade, de liberdade e de fraternidade – sim, bem sei, estes possuem a idade da velha Revolução Francesa e foram invocados também por ditadores – esses não desaparecerão, como não desaparecerá que os defenda. O contrário seria a vitória definitiva do neoliberalismo selvagem e a afirmação apocalíptica da desumanidade mais abjeta. O progresso combaterá sempre o retrocesso, como a utopia enfrentará sempre a distopia. Podem crer, está nos livros e anda pelo ar.

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          Terremoto eleitoral, esquerda e resistência 

          As últimas legislativas provocaram um terremoto no regime democrático. Jamais, desde as eleições para a Constituinte em Abril de 1975, o conjunto da esquerda obteve uma representação tão escassa no parlamento, tendo, além disso, desaparecido o tendencial bipartidarismo constante nos últimos cinquenta anos. Para além da acentuada perda do apoio eleitoral concedido aos partidos da área plural da esquerda, com a exceção do Livre, o mais significativo e perturbante foi, sem dúvida, o crescimento exponencial de uma extrema-direita fundada na rejeição dos valores essenciais do Portugal nascido com a Revolução dos Cravos. Mais preocupante ainda: o reconhecimento do ambiente que produziu esta situação e o inventário dos seus traços essenciais fazem temer que a nova ordem política não seja passageira.

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            De mal a pior? As legislativas e os jovens

            A partir de sondagens e estudos sobre o tema, não sendo a observação empírica desdenhável, é clara e consensual a maior tendência dos eleitores portugueses abaixo de 25 anos para votarem na direita ou mesmo na extrema-direita. Aliás, é esta uma disposição que ocorre num grande número de países europeus, possuindo múltiplas e complexas razões. Algumas das mais influentes serão a falta de memória histórica, o recuo das humanidades nos sistemas de ensino, o facilitismo que se instalou nos programas escolares, a prevalência da cultura do individualismo, a sobrevalorização do efémero ou a desresponsabilização familiar. Além do lugar crítico, detido sobretudo nesta faixa etária, das redes sociais e dos seus embustes, bem como o das angústias relativamente ao emprego, à progressão profissional e à estabilidade familiar. 

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              Mais duas notas pós-legislativas

              Antes ainda de um artigo mais extenso e fundamentado, a publicar na semana que vem, duas notas rápidas sobre um par de preocupantes tendências em circulação após as eleições legislativas de 18 de maio.

              1 – Configura-se a fortíssima possibilidade de José Luís Carneiro, candidato derrotado nas eleições internas de 2023, ser o próximo secretário-geral do Partido Socialista. A lógica que parece emergir neste contexto é a de escolher uma personalidade «moderada», supostamente capaz de dialogar com o PSD e de estabelecer algumas pontes com aquela parte do eleitorado socialista que debandou para a AD e mesmo para o Chega. É natural que nas atuais circunstâncias políticas, e em nome da defesa do regime e da Constituição, o PS precise chegar a acordos à sua direita e à sua esquerda, mas não o pode fazer sem mostrar uma mensagem própria, forte, progressista e mobilizadora, que obviamente Carneiro não protagoniza, e sem um rosto carismático, essencial atualmente, por muito que não se goste da ideia, para vencer eleições e segurar governos. Uma solução desta natureza conduzirá o partido a seguir as pisadas dos seus congéneres francês e italiano, rumo à irrelevância e deixando um vasto campo aberto à direita e à extrema-direita.

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                Evitar o suicídio da esquerda nas autárquicas

                Rui Tavares defendeu que «a reflexão à esquerda sobre os resultados destas eleições deve ser uma reflexão grande, mas não pode ser uma reflexão longa». A ideia de que pode ser longa «é errada e perigosa» porque as autárquicas estão próximas e o Chega pode ficar em primeiro lugar em dezenas de concelhos. A esquerda tem, pois, que «acordar, abrir os olhos e despertar», propondo listas progressistas onde os eleitores possam votar.

                Não poderia estar mais de acordo com esta ideia. Devem ser urgentemente preparadas listas unitárias, equilibradas e capazes às autárquicas, mesmo onde já tinham sido decididas escolhas em sentido contrário. Julgo ser difícil ter dúvidas de que, neste momento, o partidarismo sectário será inevitavelmente suicidário para a esquerda. Para toda ela. E quem o não rejeitar com clareza será política e historicamente responsabilizado por isso.

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                  O pior que se pode fazer

                  O pior que podem fazer as pessoas que irão agora, necessariamente, procurar reerguer os partidos da esquerda estrondosamente derrotados nas legislativas, é, em vez de se voltarem para a realidade das pessoas comuns e para os equilíbrios do mundo atual, para uma análise de comportamentos repetidos e para a revisão dos dogmas, para a abordagem crítica de certas escolhas, discursos e comportamentos, preferirem agitar bandeiras enquanto apontam inimigos externos ou dentro do seu próprio campo, preocuparem-se mais com a sua própria justificação do que com os seus erros, refugiando-se na conjuntura como explicação para quase tudo. Em tantos anos de combate político já vivi demasiado para não experimentar este receio. Por isso sei que a capacidade crítica, a humildade e a lucidez serão agora fundamentais. E muita coragem também, obviamente.

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                    Notas curtas sobre as legislativas

                    Algumas notas curtas (e também críticas) sobre o pesado terramoto das legislativas. Noto aqui que, apesar de ser membro do Livre, elas são totalmente pessoais, só a mim comprometendo. Olho principalmente para os partidos de esquerda (PS, Livre, PCP, BE e PAN), aqueles que verdadeiramente me interessam, e que, reunidos, apenas obtiveram 34% dos votos. Ou seja, a percentagem mais baixa em democracia.

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                      A história não se repete, mas precisa ser lembrada

                      Ao contrário do que no século de Oitocentos defendiam os historiadores positivistas, e que foi mantido depois pelos seus imitadores, a história – tomada aqui como forma de conhecimento do passado, guardando-se a História com maiúscula para aludir à sucessão do tempo – jamais é inteiramente objetiva. Depende sempre, em larga medida, de quem a escreve, do momento em que é escrita, das condições em que isto acontece, da perspetiva escolhida em cada abordagem, das múltiplas fontes documentais utilizadas, da perspetiva temática que persegue, e ainda da forma como é ou não sujeita ao confronto da prova e ao crivo da crítica, também estas em constante renovação. Depende ainda dos seus diferentes usos, podendo manipular e ser manipulada, ou então, bem diversamente, ser fator de compreensão do mundo e de emancipação.

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                        A força do voto perdido

                        Lamento ter de ser cru e objetivo, mas em certos momentos a realidade deve sobrepor-se à fantasia. Para um grande número de eleitores a insistência nas ilegalidades e na ausência de ética do primeiro-ministro são irrelevantes, pois consideram-nas prova de uma «chico-espertice» que encaram como qualidade e gostariam de replicar nas suas vidas. Aliás, é esta atitude que tem eleito e reeleito muitos autarcas, enquadrados na conhecida categoria popular do «rouba, mas faz». Também pouco importa a estas pessoas a baixa qualidade e o perfil rasca, ou mesmo criminoso, de tantos militantes do Chega, pois é por isso mesmo que os encaram como seus representantes.

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                          Porque voto no Livre?

                          A vida da democracia de modo algum se esgota no sistema representativo e nas eleições para os seus órgãos. Precisa ser praticada e ampliada todos os dias e em todos os espaços, não se limitando, por isso, ao ato de eleger. Todavia, e apesar das suas imperfeições, este permanece essencial como modo de aferição das escolhas políticas de cidadãos e cidadãs, e forma de escolher os rostos que dão corpo à soberania. Onde não existem eleições, ou onde elas são manipuladas, não existe democracia, mas fraudes que favorecem a tirania. Por este motivo, e também porque não o fazer é abdicar de ter voz própria, é imprescindível votar, ainda que quem o faz possa não se rever plenamente em qualquer das escolhas presentes no boletim de voto.

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                            Contra o abuso do «voto útil»

                            Em tempo de campanha para as eleições legislativas, escutamos de novo apelos ao «voto útil», normalmente realizados pelos partidos que sabem poder vir a governar e entendem que precisam de uma maioria exclusiva para o poderem fazer. Na verdade, este apelo, assente na lógica do «mal menor», desfigura a democracia, tendendo a enfraquecer os restantes partidos, no nosso sistema eleitoral já muitíssimo prejudicados pela inexistência de um círculo nacional a juntar aos demais. Sem este, aliás, ocorre sempre uma perda muito significativa de votos de eleitores, deste modo não representados no parlamento.

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                              Uma lição da história

                              A capitulação formal da Alemanha no final da Segunda Guerra Mundial ocorreu a 8 de maio de 1945. Há precisamente oitenta anos. Foi conseguida nas complexas circunstâncias e com os elevadíssimos custos que se conhecem, mas nunca será excessivo lembrar que tal só foi possível devido à colaboração de todas as diferentes (e necessariamente contraditórias) forças antifascistas. Talvez seja uma boa lição para os dias de hoje.

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                                Combate cultural contra o novo fascismo

                                O fascismo original, a par das sua articulação com o mal mais absoluto, apoiava-se numa proposta filosófica, alimentava uma visão do mundo, idealizava um projeto de sociedade. Daí a importância que atribuía à ideologia e à cultura – fosse a das elites ou a que definia como «popular» – ancoradas num saber clássico e manipuladas em função desses objetivos. Muitos artistas e numerosos intelectuais ajudaram a alimentar esse processo. Daí também o papel que os fascismos conferiam à leitura, ao cinema, ao teatro, às artes, ao pensamento, à arquitetura, à especulação política como experiências coletivas. O contemporâneo abomina e combate tudo isto, pois funda-se apenas na ignorância, no ódio, no egoísmo e na ausência de perspetiva, projetadas pelo poder dos média, pelas redes sociais e pela condescendência das democracias. Por isso, contra ele, contra eles, o combate a travar precisa ser também cultural, não apenas político.

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                                  Apagão, boatos, medos e coragem

                                  A falha elétrica de 28 de abril, que afetou toda a Península Ibérica, produziu ondas de choque de grande impacto. Motivos, detalhes, responsabilidades e dimensões do incidente encontram-se por esclarecer de forma completa, mas os efeitos práticos foram percetíveis no imediato. Começou por desaparecer o sinal das redes de telemóvel e da Internet, e logo de seguida tudo sucedeu em catadupa: iluminação desligada, aparelhos elétricos inoperantes, elevadores bloqueados, semáforos sem funcionarem, transportes caóticos, caixas multibanco inativas, cafés e restaurantes a menos de meio gás, com tudo o que isto implica na alteração radical das formas de vida, da atividade produtiva, dos sistemas de segurança, dos cuidados de saúde e das necessidades humanas básicas.

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                                    A liberdade não tem dono

                                    Mais em umas que em outras, mas em diferentes manifestações de rua do 25 de Abril foi visível a tentativa, por parte de uma força política, de se tentar apropriar dos desfiles, das suas palavras de ordem, das suas canções, até da sua organização, desdobrando-se por lugares vários e diferentes entidades nos desfiles. Também tem procurado apropriar-se da sua história e da sua memória, que muitas vezes se esforça até por reescrever. Acontece há décadas, mas quanto mais essa força se torna realmente mais frágil e perde expressão eleitoral – infelizmente, a meu ver, mas sobretudo por culpa própria -.mais a tendência se acentua. Porém, a liberdade, no seu sentido amplo e plural, não tem dono, é de todos e de todas, salvo dos fascistas, seus inimigos jurados. Por isso, nela cabem também os que continuam a insistir nesse triste papel. Que desaparecerá de cena um dia que há-de chegar.

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