Arquivo de Categorias: Democracia

A «maldade dos políticos», Camus e a ética

Se fosse forçado a viajar para uma ilha deserta e a ali permanecer incomunicável até ao meu último dia, e se antes de partir me dessem a hipótese de transportar comigo um caixote com livros, embora de um único autor, apesar do desgosto de deixar muitos para trás escolheria sem dúvida os de Albert Camus. Levaria absolutamente tudo o que escreveu e se encontra publicado em milhares de páginas: os romances, os ensaios filosóficos, os diários fragmentados, os combativos artigos de opinião, os discursos públicos, mesmo os apontamentos e notas de leitura espalhados por jornais e revistas, bem como as coletâneas de emotivas cartas que trocou com amigos, camaradas e amantes. 

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    Democracia, Leituras, Olhares, Opinião

    O 25 de Novembro que foi (e o deles)

    Muito tem sido escrito por aí, nestes tempos mais próximos, sobre os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975. A começar por reflexões de pessoas, historiadores e não só, que sabem do que estão a falar, e a terminar em banalidades ou atestados de ignorância. Limito-me, pois, a um banal parágrafo. Para resumir muito resumidamente, vou ao essencial: o que aconteceu naquele dia traduziu-se historicamente numa vitória do Partido Socialista, da «ala moderada» do MFA e, em consequência, do modelo constitucional da democracia representativa. Marcou também, como toda a gente sabe, o termo da fase necessariamente experimental e mais intensa da nossa revolução democrática. Recordo-me de, na manhã do dia seguinte, ter acordado tristíssimo e com uma sensação amarga de «fim da utopia». A tentativa de aproveitamento da direita e da extrema-direita para os seus objetivos revanchistas, procurando construir um sentido simbólico sem qualquer referente histórico ou o menor fundo de verdade, é patética. Mas também significativa e perigosa, sobretudo por estar a inquinar a opinião pública.

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      Três reflexões em tempo de pós-europeias

      1. A primeira coisa que um observador progressista dotado de razoável sentido de realismo político dirá é que os resultados globais das eleições para o Parlamento Europeu não foram tão maus quanto se esperava. Ao contrário de muitas sondagens e de diversos textos de reconhecidos analistas, a extrema-direita populista, apesar de ter crescido – e isso aconteceu particularmente em dois estados centrais, como a França e a Alemanha – não conseguiu, longe disso, impor uma maioria soberanista e antidemocrática. Ao contrário, os partidos democráticos do centro-direita e os do centro-esquerda, mantêm-se em maioria, o que augura, se nada inesperado acontecer, cinco anos de laboriosas negociações e, em muitos casos, de impasses. Em contrapartida, as forças associadas à política verde e às causas da esquerda recuaram de uma forma inquestionável, o que é uma má notícia, reduzindo a possibilidade de uma reformulação da política europeia no sentido cada vez mais imperioso da proteção do clima, da solidariedade social e da defesa da paz e dos refugiados. 

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        O meu voto nestas europeias

        Como tem acontecido a cada momento eleitoral, sirvo-me das redes sociais para partilhar o sentido do meu voto e explicar brevemente o porquê. Por muito que tenhamos queixas, algumas mais que justificadas, sobre o funcionamento do sistema político, reconhecendo muitas das suas falhas, o voto não deixa de ser uma forma de, em escala pessoal com um impacto coletivo, ajudar a encontrar soluções para a vida e os problemas que partilhamos. Além disso, sendo o instrumento fundamental da democracia, serve também para honrar o esforço dos que por ela um dia se bateram, tantas vezes com elevados riscos e pagando por isso. Esta importância do voto não o é menos nas eleições europeias, relativas à escolha de um Parlamento onde cada vez mais se define o futuro do continente e de quem o habita há mais ou menos tempo. Nas atuais, a ter lugar em Portugal e em toda a União Europeia, esta importância é acrescida devido ao possível crescimento da extrema-direita populista, aplicada a virar povos contra povos em nome do ódio, da desigualdade e do egoísmo.

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          Atualidade, Democracia, Opinião

          Porque não podem passar nas Eleições Europeias

          A exclamação «Não Passarão!» remonta à Batalha de Verdun, ocorrida em 1916, pronunciada então pelo general francês Robert Nivelle. Mais tarde, durante a Guerra Civil Espanhola, foi usada entre 1936 e 1939, durante a defesa de Madrid, pela dirigente comunista Dolores Ibárruri, «La Pasionaria», inspirada num cartaz republicano de Ramón Puyol. Destinava-se a mobilizar a resistência contra a insurreição militar que procurava derrubar a República, da qual viriam a resultar, após mais de meio milhão de mortos e o triplo de feridos e prisioneiros, a vitória do franquismo e quatro décadas de feroz ditadura. A partir dessa altura, o lema passou a exprimir por toda a parte e em todas as línguas a determinação de resistir aos fascismos e a quem deles partilhe metas e métodos.

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            É preciso não calar

            Os termos nos quais hoje o jornalista Manuel Carvalho, do Público, aborda o tema do constante linguajar ofensivo do Chega – dirigido a etnias, a nacionalidades, a mulheres, a ciganos, a negros, a pessoas LBGTQIA+ ou simplesmente a cidadãos de esquerda – é típica de um modo de encarar este problema que me parece não apenas errado, mas inaceitável. Considera basicamente MC que o alarido levantado à volta do tema apenas favorece os deputados do Chega e o seu crédito junto de parte importante do eleitorado. Acaba, como muita gente também faz, por defender que se deve evitar levantar a questão em demasia. Como antes outras pessoas achavam que não se deveria nomear sequer a Ventura e ao seu partido, deixando-lhes na verdade o campo livre. A história do século XX, como a deste que agora partilhamos, está recheada de exemplos sobre o modo como ignorar a extrema-direita – ou os movimentos de pendor totalitário de uma forma geral – apenas tem servido para lhes dar lastro e espaço de manobra. Fazer política é também, talvez até sobretudo, divulgar a tolerância e a civilidade, combatendo abertamente, ao mesmo tempo, quem as rejeita.
            [originalmente no Facebook]

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              A Palestina, Israel e a paz como causa comum

              Existe um alarme global associado aos últimos desenvolvimentos do conflito palestiniano-israelita e às suas ondas de choque. Longe da inquietação ou da indignação sentida pelos que, sobretudo na Europa ou nos Estados Unidos, no conforto das suas vidas, dele colhem apenas o eco, os povos da região, muitos israelitas, mas em particular a população civil de Gaza, têm vivido de forma dramática esta nova fase de violência generalizada. Começou a 7 de outubro de 2023 com o ataque infame do movimento islamita Hamas sobre populações civis de Israel, prosseguindo com as brutais represálias do governo de Benjamin Netanyahu, lançadas em escala absolutamente desproporcionada e destinadas a reduzir ainda mais as áreas sob controlo palestiniano.

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                Sobre uma decisão

                Partilho uma decisão pessoal com quem me segue nas redes sociais e tem acompanhado em artigos de opinião e campanhas de natureza cívica. 

                Apenas tive atividade partidária entre 1971 e 1977, ligado então a uma organização da esquerda revolucionária da qual saí mais por razões de natureza ética do que política. O distanciamento político surgiu depois e veio devagar, se bem que a evolução pessoal jamais colidisse com valores fundamentais de solidariedade e justiça que cedo adotei e jamais deixei de partilhar. 

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                  Coimbra, o movimento estudantil e o 25 de Abril

                  É muitas vezes evocada a importância do movimento estudantil na resistência ao Estado Novo e o seu importante contributo para a queda do regime caduco e injusto que o sustentou. Infelizmente, esta evocação é com frequência bastante parcial, sendo acompanhada de um esquecimento de vários dos seus importantes momentos, escolhas e protagonistas. Esta tendência determina perspetivas incompletas, que relativizam o papel crucial e de longo fôlego, para a vitória da democracia, da intervenção política e cultural de sucessivas gerações de estudantes. Nos cinquenta anos de Abril, vale a pena mencionar esta lacuna centrando a atenção no caso de Coimbra e nos últimos anos do anterior regime.

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                    Coimbra, Democracia, História, Olhares

                    O 25 de Abril e a (falta de) cultura

                    «Maioria diz que democracia é “preferível”, mas 47% apoiariam “um líder forte” sem eleições». O título encima no Público uma notícia destacada sobre um significativo estudo do ISCSP de que o jornal foi parceiro. Conhecendo razoavelmente o meu país e estes cinquenta anos de história, não tenho dúvida alguma em afirmar que uma das razões desta tendência – não a única, é claro, mas uma das principais – se funda na ignorância do passado e na falta de densidade cultural da maioria dos cidadãos, com a qual o regime democrático e a generalidade dos partidos, aceitando nivelar a instrução básica por baixo e fazendo da área da cultura sobretudo um bibelô, sempre contemporizou. [originalmente no Facebook]

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                      Uma homenagem e um equívoco

                      É hoje, 17 de Abril, quando se completam 55 anos sobre o episódio que desencadeou a «crise académica» de 1969, inaugurado em Coimbra pelo PR um mural de homenagem àquele momento que é centrado em Alberto Martins, então o presidente da AAC e o seu mais conhecido protagonista, dado o papel que teve ao pedir a palavra em nome dos estudantes. Parece-me bem e justo, embora discorde da forma como o episódio, que teve uma natureza coletiva e distendida no tempo, continua a ser recordado e representado como centrado num momento e numa só pessoa, que «apenas» foi instada – como a própria ainda há dias reconheceu num debate em que também participei – a falar em nome de todos.

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                        Um «fim de ciclo» de Abril?

                        As últimas legislativas e a mudança de orientação política da governação coincidiram com o cinquentenário da Revolução de Abril, proporcionando, a par de uma maioria de sínteses, evocações e interpretações globalmente positivas, um conjunto de leituras e afirmações de sinal contrário. Este não emerge como fruto do acaso. Refiro-me ao surgimento, nos setores partidários de direita e de extrema-direita, em parte significativa do universo do comentário político público e mesmo junto de bom número de eleitores, de posições que qualificam este momento do nosso trajeto coletivo como «fim de ciclo». Alguns, mais afoitos ou embalados por um clima de impunidade sobre quem se declara contra a democracia, têm falado até de «enterrar o 25 de Abril».

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                          Afinal, andávamos bastante enganados

                          No final do século passado, quando da emergência na Europa e nas Américas da atual vaga da extrema-direita populista, mantinha-se em Portugal, entre quem observava a paisagem política sob uma perspetiva democrática, a convicção de que ela jamais cá chegaria. Em diferentes quadrantes, no campo plural da esquerda, mas também entre setores moderados do centro-direita, cultivou-se a ideia de que a memória da ditadura, a inclusão na União Europeia e as conquistas de Abril e da democracia – capazes de erguer um país muito mais livre, próspero, pacífico e justo do que aquele desaparecido em 1974 – seriam o bastante para desviar para bem longe aquela negra nuvem. 

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                            O óbvio, antes que esqueça

                            Parece-me mais ou menos óbvio que nesta altura de viragem entre nós, o combate da esquerda plural, tanto no isolamento e no afastamento do populismo de extrema-direita como na busca para procurar evitar perder os inegáveis, ainda que sem dúvida insuficientes, avanços progressistas gradualmente obtidos a partir de 2015, passa por uma aproximação política e até orgânica das suas partes. Defendo-o há muito, se bem que quase sempre a nadar contra as marés do sectarismo ou da simples cegueira política. Isto não exclui, é claro, as diferenças, algumas bastante fortes e históricas, que existem entre as suas partes, mas tende a relevar, e sobretudo a desenvolver, aquilo que, no essencial, se não as une, por certo as pode aproximar.

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                              O que pode fazer-se?

                              Todas as pessoas de formação progressista, e também, não tenho qualquer dúvida, um bom número das que são estruturalmente conservadoras ou mesmo de direita, embora de formação democrática, estão em choque com a semi-vitória do Chega nas eleições do passado domingo. Ainda que ela fosse esperada, existia sempre um esperança de as sucessivas sondagens estarem enganadas, mas se o estavam foi porque pecaram por defeito. A verdade é esta, bem crua: em cada mil eleitores, 180 votaram num partido sem um programa claro, para além de um cúmulo de ódio de natureza racista, xenófoba, contra a igualdade de género, homofóbica, e igualmente passadista, antieuropeia e apostada no desmantelamento do Estado social, seja no campo da saúde, da educação, da segurança social ou da cultura. A meta é, destruir a democracia, trocando-a por um populismo desvairado de extrema-direita, ou, como proclamava um apoiante mais sincero desse partido, «acabar com o 25 de Abril».

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                                Oito notas quase telegráficas sobre as legislativas

                                Antes de um texto mais extenso e minimamente fundamentado, algumas notas, contendo ideias avulsas e ainda um tanto desarrumadas, a propósito das eleições deste domingo.

                                1. O grande vencedor foram as televisões e alguma imprensa, que, em favor da direita, conseguiram condicionar o eleitorado. Justamente em condições de crescimento económico e de melhoria gradual de vida no país, ainda que com naturais problemas, disseminando uma inventada imagem de caos e de corrupção, e quase apagando a memória dos anos terríveis e que se supunham traumáticos do governo de direita de 2011-2015. Isto no ano do cinquentenário de Abril.

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                                  Sempre me pareceu dispensável o «dia de reflexão». Refiro-me às vinte e quatro horas que, entre nós e em mais alguns países, antecedem cada jornada eleitoral, sendo durante elas proibida qualquer iniciativa julgada perturbadora do sentido do voto ao influenciar, direta ou indiretamente, o eleitor. Por este motivo, além de as campanhas partidárias terminarem quando elas se iniciam, não podem então ser transmitidas, di-lo a Comissão Nacional de Eleições, «notícias, reportagens ou entrevistas que de qualquer modo possam ser entendidas como favorecendo ou prejudicando um concorrente às eleições em detrimento ou vantagem de outro». Ainda assim, não vamos tão longe por cá quanto os argentinos, que durante dois dias suspendem até as peças de teatro e os concertos. 

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                                    A minha escolha no dia 10

                                    O meu voto sempre esteve, no momento da decisão, associado à pluralidade da representação da esquerda e à escolha de políticas baseadas nos valores que esta fundamentalmente partilha. A saber, para mim e para tantas outras pessoas: a defesa da democracia e da liberdade, a promoção da justiça social e de um desenvolvimento material harmonioso, a propagação do bem-estar, da saúde e da educação, o progresso da cultura, a defesa dos direitos humanos e do relacionamento pacífico entre povos. Sempre ancorados no papel imprescindível, ainda que infinitamente em construção e aperfeiçoamento, do Estado-Providência. É este, na essência, o sentido da minha escolha no momento de votar. E é também esta a razão pela qual, com o gesto, procuro contribuir para afastar a direita, a extrema e a dita «moderada», que são o contrário de tudo isso.

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