Líbia global

Benghazi, Maio de 2011 | Fotografia de Rodrigo Abd
O título poderia ser: «No século 21 a guerra também é estilo». A reverberação mediática da imagem induz este efeito. Estranho, paradoxal, mas apenas na aparência.

Benghazi, Maio de 2011 | Fotografia de Rodrigo Abd
O título poderia ser: «No século 21 a guerra também é estilo». A reverberação mediática da imagem induz este efeito. Estranho, paradoxal, mas apenas na aparência.

Tomo conhecimento das novas exigências de Frau Merkl a propósito dos dias das férias e da idade da reforma dos portugueses, e ponho-me uma pergunta que não tenho visto suficientemente colocada. A negociação de uma dívida, seja ela de que natureza for, implica uma intromissão na vida familiar do devedor? Se eu pedir dinheiro emprestado para consertar a casa ir-me-á agora o banco forçar a provar que não gasto dinheiro em coisas supérfluas como jornais, espectáculos de teatro ou refrescos de groselha? E uma outra, ainda mais necessária e inquietante: não estamos a assistir a intromissões completamente abusivas em matérias que respeitam ao grau de independência próprio de um Estado soberano? Admito que quem empresta reivindique certas garantias – já os antigos usurários ou os donos dos estabelecimentos de «prego» o faziam, e além disso os bons samaritanos ficaram-se pelos tempos bíblicos – mas tal jamais implicou que a vida de quem se vê forçado a recorrer a esse expediente extremo passe a ser escrutinada, controlada, determinada pela vontade de quem mexe os cordéis da bolsa. Tudo isto começa a ficar parecido, demasiado parecido, com o caldo de cultura do qual saíram as regras autocráticas impostas pela diplomacia de Ribbentrop e a política de ocupação e rapina do Terceiro Reich. Mas foi também por causa delas que a Alemanha perdeu a guerra.

Como motivo de apreensão, sabemos que não é esta de momento a nossa prioridade. Mas se quisermos – como o provaram, no limite, as atitudes corajosas de tantas vítimas e sobreviventes dos campos de concentração ou extermínio – mesmo nas piores condições pode e deve criar-se um espaço destinado impedir que as desgraças dos outros sejam vividas num silêncio que só as agrava. Quando pouco ou nada podemos fazer para as minorar, podemos, pelo menos, tudo fazer para que esse sofrimento possa ter algum sentido. Por isso, e de acordo com um extenso relatório divulgado há dias pela Amnistia Internacional, não pode passar em claro que os campos de presos políticos da Coreia do Norte são afinal ainda maiores e piores do que até há pouco se pensava, contando nesta altura com cerca de 200 mil pessoas detidas.
Sucedem-se as execuções, o trabalho escravo tornou-se a regra, a tortura e a fome são uma constante. A Amnistia teve acesso a imagens de satélite que conseguem determinar a localização e o tamanho dos campos de prisioneiros políticos, tendo reunido também testemunhos de antigos detidos e de ex-guardas prisionais. Estes permitiram traçar um quadro negro e muito preocupante das condições de vida nesses campos. É possível que o aumento das prisões esteja relacionado com a tentativa de impedir perturbações numa altura em que aparentemente se assiste a uma transferência de poder em Pyongyang. Mas nada do que se passa é aceitável ou justifica, como tantas vezes se passa deste lado do planeta, que continue a praticar-se o crime de omissão.
Pode entretanto, assinar aqui, uma petição pedindo o encerramento do campo da Yodok, o maior e sem dúvida um dos piores.

La Puissance d’exister, de 2006, é apresentada pelo filósofo francês Michel Onfray como um manifesto, retomando nessa qualidade alguns dos seus temas mais caros: um pensamento e uma intervenção abertamente libertários, a defesa do hedonismo enquanto «dispositivo de resistência», uma sexualidade liberta por uma vez da pesada ganga judaico-cristã e burguesa, um ateísmo pós-cristão, a valorização objectiva do lugar social do rebelde. Talvez esteja justamente nesta qualidade de síntese, de revisitação, de «ponto da situação» como o autor reconhece, o grande interesse que tem para o leitor a iniciar-se no reconhecimento do trabalho de Onfray, sempre proposto como uma ferramenta para «voltar a encantar o nosso tempo melancólico com a proposta de um pensamento a viver.» O autor fala do Maio de 68 principalmente como «um trabalho que não foi levado até ao fim», e logo como tarefa a completar. Define a revolução como um trabalho perseverante e ininterrupto, assente numa capacidade individual de superação que, evocando mais o conceito camuseano de revolta, se encontra inscrita «no progresso do espírito humano.» No final, formaliza uma declaração de princípios já intuídos ao longo do livro. «Uma sociedade anarquista» totalmente esvaziada da intervenção regular do Estado parece-lhe sempre associada, como hipotética solução, a «uma perspectiva sinistra e improvável». O objectivo que prescreve é por isso bem diverso: criar as condições para a afirmação, no interior das actuais sociedades democráticas existentes, de possibilidades individuais ou comunitárias de alcançar «uma ataraxia real», de espaços de tranquilidade, de serenidade, capazes de tornarem a vida menos carregada, menos penosa, com lugar para o treino e a afirmação de uma atitude hedonista. Uma configuração da acção que, à entrada deste segundo decénio do século, parece conter algo de escapista. É provável que assim seja, mas talvez venha justamente daí a capacidade de sedução que o pensamento de Onfray exerce sobre os seus fiéis leitores.
A tradução portuguesa, intitulada A potência de existir, foi editada em 2009 pela Campo da Comunicação.

Não, não retirei isto de um romance com as folhas amareladas de Alves Redol ou de John Steinbeck. Quando tinha uns seis ou sete anos costumava acompanhar o meu pai, na altura representante de uma companhia de produtos químicos, em visitas periódicas às fábricas de lanifícios da minha região. Lembro-me muito bem, muito bem mesmo, de entrar em instalações antigas, algumas ainda com grandes máquinas a vapor, que alimentavam negócios aparentemente prósperos devido aos baixos salários e às péssimas condições de trabalho impostas aos operários. Não havia sequer «hora do almoço» tal como a concebemos hoje: bastavam uns minutos para eles comerem, controlados pelo encarregado, uma marmita de arroz acompanhada de pão e de uns goles de vinho. Tudo começava e acabava ao som de um apito – ainda o oiço perfeitamente –, ali, no soalho de pedra ou na relva, ao lado da máquina durante o inverno, ou do lado de fora, à sombra de um eucalipto, quando o tempo aquecia.
Hoje mesmo, num centro comercial amplo e moderno, paredes meias com a área da restauração onde fui comer com todo o conforto um almoço rápido, vi um grupo de mulheres idosas e vestidas de escuro, acompanhadas por algumas crianças, visivelmente chegadas de um Portugal que parecia de outras eras. Sentadas também no chão, com a complacência dos empregados da empresa de segurança, comiam calmamente, as sandes de broa de milho com chouriço e as laranjas que traziam consigo embrulhadas em lenço. O que mais me impressionou, aquilo que mais temo, é que esta cena não me pareceu configurar um vestígio raro e anacrónico de um passado em vias de desaparecer, mas sim desenhar, como num último ensaio, a antevisão daquilo que aí vem.

Como a maioria dos portugueses atentos ao que acontece no mundo real – ou seja, no YouTube – franzi o sobrolho e sorri ligeiramente quando vi o putativo ministro das Finanças de um incerto governo PSD servir-se num programa televisivo da expressão «andam a discutir ‘pintelhos’». Assim mesmo, como diz o povo que não tem dicionários capazes de sabiamente converterem o «i» em «e». Mas o pasmo não ficou a dever-se à expressão em si. Todos a conhecemos, apesar da minha avó ter preferido «andam a falar de coisas que não valem dez réis de mel coado» e de muitos de nós, entre os quais me incluo, gostarem mais de recorrer aos moluscos gastrópodes terrestres de concha espiralada calcária vociferando «andam com um raio de uma conversa que não vale um caracol». A surpresa relacionou-se, isso sim, com o facto dela ter saído da boca de uma figura com a qual o PSD, partido que deseja vender uma imagem de circunspecção à medida do seu precocemente circunspecto presidente, pretende conquistar credibilidade pública. Mas terminou aqui a chalaça, pois já não me parece nada engraçado, ou sequer útil, usar a gafe para atacar o partido ou Catroga, seu – isto sim um fenómeno do domínio do paranormal – não-militante e porta-voz. Não vejo que interesse pode ter servirmo-nos de um deslize, que até humaniza o personagem, como arma de arremesso político. Aliás, já achei a mesmíssima coisa na altura do «porreiro, pá» de um conhecido político da Beira interior, ou dos chifres parlamentares ostentados por outro. É que o povo até gosta destas coisas, pá. Vão por mim e deixem-se de pentilhices.

Dados os antecedentes, acredito que o poeta, escritor, cronista e ex-jornalista Manuel António Pina – ou o seu pseudónimo, e nem ele mesmo poderá garantir qual deles – se sentirá bastante preocupado com a atribuição do Prémio Camões de 2011. Ao contrário de nós, seus leitores, admiradores e «fiéis sequazes», que ficámos só muito felizes.
Então, para que conste, siga-se esse alguém:
AVISO À NAVEGAÇÃO
É altura de sair do armário e fazer uma revelação particularmente penosa: sou um pseudónimo. Na verdade, eu não sou eu. Nem outro, nem qualquer coisa de intermédio, nem «pilar da ponte de tédio/ que vai de mim para o outro». Uso um nome suposto, só por acaso coincidente com o do BI, porque não sei, como o taoista, que nome tenho.
Um leitor (aliás cordialíssimo) responsabiliza-me por uma crónica aqui assinada pelo pseudónimo sobre a hipocrisia do jornalismo. Estou cansado que me confundam com o pseudónimo. Já cheguei, num café, a ser chamado de «fascista», de «populista» e até de «católico» pelo vice-presidente de uma bancada parlamentar (sou sempre eu quem paga as favas, porque o pseudónimo existe apenas duas ou três horas por dia, diante do computador, e não vai ao café).
Num pequeno texto intitulado Borges y yo, o autor de Le regret d’Héraclite, quem quer que seja, revela que tem uma existência pacata e que tudo o que lhe acontece se passa com outro, um tal Borges. Comigo é igual. Estou farto (acho que já o disse, ou terá sido o pseudónimo?) de ser confundido com o autor daquilo que escrevo.
JN, 16.04.2009

É nas épocas difíceis que mais facilmente caem as máscaras. Quando tudo se complica e a dúvida se instaura, é mais fácil mostrar aquilo que realmente somos. Nus, sem a protecção das aparências que se cultivam com maior facilidade em tempos menos rudes e opacos, tornamo-nos mais genuínos, o que geralmente significa que cresce a imprevisibilidade e o perigo diante do que somos capazes de fazer. Solitários ou em bando, é preciso que se diga. E isso percebe-se muito bem quando vemos como a maquilhagem democrática de muitos de nós se transvestiu logo que as dificuldades aumentaram dramaticamente e o rumor da legítima revolta, moral ou física, impotente ou indignada, se afigurou no horizonte.
Em quase todo o espectro partidário saltaram os disfarces. A direita que temos, «democrática» e pluralista, deixou cair a verborreia antieuropeísta e os ímpetos «nacionalistas» e ultraliberais que ainda há pouco tempo sobejavam no seu vocabulário. Activamente ou por omissão, tornou-se radical na defesa do intervencionismo externo. A esquerda à esquerda retomou alguns devaneios, queixando-se da crise mas olhando-a ao mesmo tempo como antecâmara da tomada do poder em nome da revolta das massas. Por ela, aceita mesmo associar-se àqueles que da democracia apenas têm uma concepção instrumental. Pelo meio, os socialistas tornam-se ainda mais pragmáticos, tudo fazendo, sem disfarce, para conservar o seu núcleo identitário mais essencial: aquele que gere a conservação do poder pelo poder. Lá atrás, e como sempre, só os comunistas permanecem iguais a si próprios, uma vez que nunca procuraram enganar ninguém com apologias de uma «Europa europeia» fundada numa democracia não adjectivada.
Nesta paisagem, a dificuldade está em nos mantermos lúcidos, na claridade, e não nos deixarmos levar pelos ímpetos. Uma vida melhor, mais digna e mais democrática jamais se construirá tomando a linguagem do instinto como princípio de comunicação.

Quando passei hoje no Público pela coluna de António Vilarigues e vi o destaque – «A alternativa existe! E exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda» – pensei logo de mim para comigo: «É hoje. Tens andado distraído mas vais finalmente perceber que coisa é essa do ‘Governo patriótico e de esquerda’ que o PCP pressagia.» Juro que fiquei na expectativa, até porque gosto sempre de aprender coisas novas e, acima de tudo, gostaria de reconhecer a possibilidade de um modelo político e económico para o meu país que não aquele que desgraçadamente nos tem vindo a ser apresentado como inevitável. No entanto, essa expectativa durou só dois minutos. A «explicação» encontra-se no parágrafo final: «Mas a alternativa existe! Uma alternativa capaz de garantir a política necessária à resolução dos problemas nacionais. E que exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda. Governo com uma política que corresponda ao conteúdo e valor próprio da Constituição da República e dos ideais de Abril.» Sem mais, de novo. Ou seja, não existe alternativa alguma, pois ninguém percebe como chegar a tal governo, quem o constituiria e como é que ele resolveria o problema imediato da maioria dos portugueses; a saber, com que é que a partir de Junho estes vão pagar a sopinha de legumes da qual precisam para viver. Mas garanto que vou continuar a procurar – com a mesma tenacidade com a qual o velho Diógenes, de lanterna na mão, percorria as ruas de Atenas em demanda de uma pessoa honesta – a informação que me permita desfazer as dúvidas. Não quero acreditar que o PCP proponha como solução alguma coisa que não faz a menor ideia do que possa ser ou de que forma poderemos nós, ou poderá ele em conjunto com mais não sei quem, chegar a ela.

Sou um ignorante chapado em ciência económica e durante muito tempo até fiz gala disso. Um tipo que gosta é das letras, das artes, de mexer em arquivos e de idear futuros, que não se preocupa em demasia com o vil metal ou com o preenchimento do IRS, dificilmente fará melhor. Deito fora os suplementos de economia sem os ler, e quando no banco me sugerem «um novo produto» digo logo que estou com pressa. Além disso, jamais confiro os trocos, mudo de canal quando aparece o Gomes Ferreira e não ligo peva aos extractos de conta. Não tenho pois grande capacidade – melhor, não tenho capacidade alguma – para observações minimamente elaboradas e de confiança sobre a evolução económica e financeira do nosso país ao longo dos últimos 37 anos. Mas sou suficientemente ingénuo, ainda assim, para atirar uma pergunta para o ar. O que terá levado as finanças públicas portuguesas ao estado pré-cadavérico em que se encontram? Foi a construção de um Estado social projectada por uns quantos nos anos 60 e lançada ao caminho após a Revolução de Abril, como insinuam a todo o instante os urubus do neoliberalismo que «analisam» a crise em curso, ou foi a edificação de um suposto oásis de dinheiro fácil, de descontrolo das despesas públicas e de crédito sem limites projectada nos «anos dourados» do teso Cavaco e do bom Guterres? Uma pergunta insensata, de ignaro, admito.
Sigo o Jacques Tati de Mon Oncle numa pré-visão realista da via acelerada do meu país rumo a esse futuro próximo que podemos vislumbrar. Sem grandes exageros. Do novo-riquismo que Cavaco projectou nos anos 80 à queda numa realidade para a qual acabaram de nos projectar.



A sequência dos dias ia desbotando a data. Há um ano escrevi aqui: «Para os filhos e os netos de Abril tudo começou a 26 com o conta-quilómetros a zeros, e por isso para poucos deles há um «Sempre!». É assim e não há que ter pena. Há que olhar para o que está para vir e o resto é memória a guardar. Quente para muitos, sem dúvida, mas para cada vez menos porque a vida não faz pausa.» Cinquenta e duas semanas depois, estas palavras parecem-me imperfeitas. De repente, diante daquilo que até há pouco parecia improvável ou impossível, a cor viva, agora a da resistência, voltou à rua. E com ela o reforço de uma certa memória útil, de uma memória memorável.
Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.
Manifesto dos 74 nascidos depois de 74
Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.
O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. (mais…)
São quase três da manhã a 13º Celsius, o prédio está em silêncio e da minha varanda não se vê ninguém. Aqueço a sensação de que ninguém me lê, ninguém me escuta, posso escrever aquilo que me apetecer na direcção de Saturno. Faço então as contas à contradição na qual me vejo embrulhado. Num momento em que me sentia amaciar, tendendo, quanto mais não fosse por recomendação dos licenciados, para a moderação da vida burguesa, eis que a realidade não deixa. Neste país de democracia suspensa e futuro encostado à parede, estou condenado, como tantos outros mortais – sabe-se lá o que pode a imaginação fazer à pobre realidade –, a radicalizar-me de novo. Temo pelos perigos desta radicalidade nova, construída sem projecto de futuro, sem caminho à vista e voz audível na qual seja possível confiar. No horizonte dos que resistem não se encontram agora cidades maravilhosas, lideres inspiradores, miragens de futuros perfeitos e inevitáveis. Talvez reste apenas a possibilidade longínqua de um recomeço, de um estado de esperança capaz de partir outra vez do quilómetro zero a caminho de uma Nova Califórnia. Irá doer e demorará, sem dúvida, correr-se-ão os tais riscos, mas há-de partir porque o mundo não vai acabar aqui. E não será por serem agora três da manhã, por não se ouvir sequer o motor de um carro rasgando a chuva ou o latido distante de um rafeiro, que acredito menos nisso.

Inteiramente de acordo com o texto do Daniel Oliveira sobre o péssimo gesto e o mau sinal que foi a recusa do PCP e do Bloco de Esquerda a apresentarem-se nas reuniões dos partidos políticos portugueses com a delegação do FMI. Não gasto tinta em argumentos, uma vez que a maior parte do que aqui poderia dizer já ficou dito pelo DO. Como a posição do PCP é coerente com aquilo que o PCP tem desde há muito tempo mantido, resta-me acrescentar, enquanto cidadão que desde a primeira hora considerou o Bloco uma peça imprescindível da democracia portuguesa – e nele tem esperançosa e persistentemente votado –, ter começado a temer que a situação crítica que vivemos tenha em alguns dos seus dirigentes retirado da hibernação os velhos fantasmas do maximalismo kamikaze. Ou isso ou então a Ruptura-FER tomou já o poder e ninguém avisou a malta.

Vinte e cinco anos depois, lembra-o hoje o El País, chega a Cuba um plano de reformas económicas semelhante ao imposto em 1986 no Vietname para dar algum fôlego à iniciativa privada, tentando superar as dificuldades determinadas pelo paradigma ultracentralizado e burocrático imposto pelo governo comunista. Por essa altura, já Deng Xiao Ping tinha começado a aplicar esse «socialismo de mercado» que iria transformar a China na superpotência económica, agressiva e cheia de desigualdades sociais, que hoje conhecemos. A receita, principalmente em Pequim, sabe-se bem qual foi: conjugar o pior do «socialismo de «Estado» (a total supressão da liberdade de expressão e de organização, e a repressão brutal de qualquer forma de protesto) com o pior do capitalismo (a exploração desgovernada dos trabalhadores e o crescimento selvagem de uma iniciativa privada protegida pelo Estado, conjugados com a completa proibição da intervenção moderadora dos sindicatos).
A diferença, em Cuba, não está assim no modelo, cujos resultados práticos no desenvolvimento dos outros dois «Estados-irmãos» são bem conhecidos. Está em tudo ir ser feito debaixo da orientação das mesmíssimas pessoas que agora apontam erros graves e deformações ao trabalho pelo qual durante mais de meio século foram responsáveis. Não é, pois, difícil presumir que tendo existido liberdade de crítica e pluralidade de opiniões muito mais cedo e com muito menos custos para os cubanos se teria chegado a idênticas conclusões. O que não significa, obviamente, que estas levem a alguma coisa de positivo, para além do que já produziram na China: um acentuar dramático das desigualdades, um crescente alheamento das responsabilidades sociais do Estado e uma sofisticação da repressão política. Cuba não precisa de continuar a afinar os velhos motores, mas sim de máquinas novas. Não precisa de uma operação de cosmética, de «corrigir disfunções», mas antes de uma vaga de liberdade e de mudança na qual todos os cubanos, sem quaisquer reservas, possam participar.

Quando o horizonte se estreita e a vida se complica ao extremo, é fácil perdermos a paciência. Diante da crise social que se adensa e da ausência de perspectivas, a tentação de correr para a frente, vendo inimigos em todo o lado que não seja o nosso e esquecendo os princípios elementares da civilidade democrática, começa a fazer-se notar de forma preocupante. Vive-se uma realidade inaceitável, que tem os seus responsáveis e as suas vítimas, crescendo a tendência para que uns e outros se organizem em campos opostos. A velha luta de classes parece voltar a calçar as botas e a meter-se ao caminho, enquanto aumenta a distância entre os que entendem que o mal está no excesso de direitos e aqueles que lutam para evitar perdê-los.
Entre alguns destes corre então, de novo, a presunção de que só uma deriva radical pode reverter o curso dos acontecimentos, pensando de novo em Revoluções redentoras a caminho de outros «amanhãs que cantam». Embora ninguém saiba como despertá-los e menos ainda o que fazer com eles. A noção legítima, necessária, de que outra política é necessária, de que outro mundo é imprescindível, é então devorada por devaneios colectivos que confundem mudança com salvação. Pelo meio, a vida verdadeira, a das pessoas que não sonham com estandartes a adejar ao vento mas sim com uma vida digna, pacífica e livre numa sociedade solidária, é ignorada em nome de um retorno à luta de opostos. Esquecendo uns quantos que, tal como a história do século XX se encheu de provar, nenhum regime perfeito pode ser construído sobre a penúria e a terra queimada.
Aquilo que estamos a viver obriga-nos a repensar o futuro e os modelos, sem dúvida, mas também nos desafia a olhar a realidade e a procurar soluções. Por isso, na situação actual, recusar discutir com o poder questões das quais pode depender a sobrevivência das pessoas só porque se coloca à cabeça a impossibilidade de ouvir aquilo que o governo que irá negociar com o FMI tem para dizer – como fizeram hoje os dois partidos parlamentares à esquerda do PS – contribui para as deixar indefesas. Pode ser muito bom para multiplicar o descontentamento e capitalizar o devaneio de uma mudança que «tudo resolverá», mas é duvidoso que traga benefícios eleitorais e de certeza que não ajuda ninguém a sobreviver no meio da tormenta. É preciso ousadia, sim, e luta também, mas algum realismo pelo meio dará jeito. A fuga para a frente não serve para outra coisa que não seja para fornecer oxigénio, escasso oxigénio, a essas «teorias e conceitos» que, como escreveu certa vez Hannah Arendt, de pouco servem em tempos sombrios.
Encontra-se aqui o documento entregue na Procuradoria-Geral da República como o texto da denúncia facultativa contra três agências de rating às quais foi imputado abuso da posição dominante contra o Estado português. Se concordar com ele, pode tornar-se signatário a partir deste momento.