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Está caladinho

o conformista
Jean-Louis Trintignant em «Il Conformista», de Bernardo Bertolucci (1970)

Da crónica de hoje, a última de Pedro Rosa Mendes para a última semana de «Este Tempo», o programa da Antena 1 que a administração da RDP entendeu fazer calar por conter vozes incómodas, deixo um fragmento que pode servir-nos para aferir do estado cataléptico em que a nossa democracia se encontra. Do qual este episódio é apenas mais um sinal. Um panorama demasiado assustador? Talvez o seja. Mas os mais velhos ensinaram-nos que não há como sustos e adversidades para aprender a crescer e a rasgar caminhos. Aqui ficam então, também para que se não diluam rapidamente no éter, as palavras de Rosa Mendes que sublinhei.

«Quatro décadas de democracia produziram, afinal, uma sociedade asfixiada por valores do silêncio, da cobardia, do bajulamento e dessa gangrena da nossa pátria que é a inveja social. Por junto, uma cultura mesquinha em que quase sempre não há ninguém que diga aquilo que todos sabem, mas que todos devem calar. Uma terra onde, finalmente, se instalou o medo e uma noção puramente alimentar da dignidade individual. Traduza-se: está caladinho, para guardares o trabalhinho.»

    Atualidade, Democracia, Olhares, Recortes

    Censura e falta de vergonha

    O episódio envolvendo o fim de «Este Tempo», o programa de opinião da Antena 1 no qual colaboravam Pedro Rosa Mendes e Raquel Freire, para além de António Granado, Gonçalo Cadilhe e Rita Matos, devido a uma crónica na qual o jornalista e escritor falava, moderadamente aliás, da comunicação acrítica que pactua com o servilismo do governo português diante do angolano, coloca-nos diante de quatro realidades preocupantes. A primeira, mais óbvia, diz respeito à intromissão do poder político na esfera da liberdade de opinião. Não sendo nova em democracia, está agora a atingir um nível insólito de intensidade e de atrevimento, recorrendo cada vez mais à lógica dos supostos «interesses nacionais». A palavra censura emerge aqui, com todas as letras, como a adequada para descrever aquilo que está a acontecer. A segunda realidade tem a ver com a mistura, materializada desde logo na atuação do governo, entre os direitos políticos, que dizem respeito à esfera do coletivo e podem aparentemente ser condicionados, e os interesses económicos que têm a ver com a atividade privada de alguns e, nesta lógica, devem supostamente estar libertos de incómodos. A terceira refere-se ao nível de compactuação dos responsáveis eleitos e de algumas correntes políticas de um pais democrático com o governo corrupto, nepotista, despótico, e para mais não-eleito, de Angola. A quarta realidade integra enfim a ostentação, e a proteção, desse padrão de jornalismo sabujo, bajulador e intoxicante, pago além disso com dinheiros públicos, diretamente visado pela crónica de Rosa Mendes na referência que fez ao programa de Fátima Campos Ferreira emitido em direto de Luanda com a participação do omnipresente ministro Relvas. Sobre tudo isto a pesada sombra da ausência de vergonha e da ostentação do intolerável. [a notícia] [em cartaz]

      Apontamentos, Atualidade, Opinião

      O lugar da cobardia

      A frase «dos fracos não reza a História» assinala a infâmia daqueles que não enfrentam as dificuldades ou se vergam diante do mais forte. Sublinha a vileza sem remissão de toda a cobardia. Estigmatiza sem piedade a sua lembrança. O seu uso supõe no entanto uma condição: a de que se observe o tempo como tribunal e como teatro diante do qual cada um é julgado pela forma como representou o seu papel. Com a crescente depreciação da História enquanto espaço para um julgamento equitativo da experiência, com a sobrevalorização do imediato e do valor de mercadoria, a expressão parece hoje deixar de fazer sentido. A valorização da cobardia e da apatia diante da força não é nova, mas estava antes confinada aos oportunistas, aos agiotas, aos tiranos e aos tolos. Agora parece por vezes transformar-se em bússola do bom cidadão, exilando-se quem pensa no longo prazo, ou defende a necessidade da resistência diante da injustiça, para o campo minado da irrelevância ou mesmo do crime. No entanto tudo isto obedece a ciclos, a etapas em rápida corrente e contracorrente, e inevitavelmente será a própria História a tratar do assunto pela medida seletiva de sempre. Em nome da coragem e do futuro, é sempre bom sabê-lo. Ou pelo menos acreditar nessa possibilidade.

        Atualidade, História, Olhares

        A «linha justa», a esquerda e a direita

        Na esquerda política, historicamente erguida a partir da contestação da ordem tirânica e injusta do capitalismo, tem-se mantido uma posição dominante de impaciência ou de desprezo perante a inclusão efetiva da diferença. Em Portugal, é verdade que todos os seus partidos e movimentos declaram justamente o contrário, mostrando sempre vontade de se abrirem à integração de pontos de vista e de cidadãos reputados como «independentes». Todavia, estas têm como característica indispensável, para cumprirem o papel que lhes está destinado, o fazerem com que as suas provas de independência jamais contrariem a «linha justa» traçada pelas direções. Nestas condições, deixam de ser as pessoas e as suas ideias a ser integradas, sendo antes o seu corpo e a sua voz que são requisitados em nome da estratégia ou da campanha do momento. Pode então ter-se toda a razão, mas se essa reserva é ultrapassada e se diverge explicitamente dos procuradores da linha que decide, se se defendem em público posições que a contestam, é-se silenciado ou, no limite, combatido. Diga-se aquilo que daí para a frente se disser, ou tomem-se as posições que se tomarem, a marca infamante fica gravada como uma tatuagem. E muitas vezes deixa de haver lugar para essas pessoas nas fileiras. Conheço ou conheci algumas. (mais…)

          Atualidade, Opinião

          O problema húngaro

          Ontem, no Parlamento Europeu, Daniel Cohn-Bendit, ele mesmo. Face a face com Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, durante o debate sobre a grave situação política naquele país. Um discurso de combate e de denúncia da nova ameaça totalitária. Um discurso que a nossa informação, bastante mais interessada na humilhante derrota de José Mourinho em Madrid e nas intervenções desarrazoadas do ministro da Economia, se encarregou de tornar irrelevante.

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            A laranja e a luta de classes

            É provável que muitos portugueses, mais preocupados com a aparente traição de Irina Shayk ao namorado Cristiano ou com as desculpas esfarrapadas do capitão do navio italiano que se deixou naufragar, não tenham ainda tomado consciência das alterações consumadas hoje nas leis do trabalho. E que demorem até a compreender verdadeiramente a situação agora criada. Mas estas mudanças configuram a primeira alteração radical da orientação seguida desde os anos de 1974-1975 e modificam de maneira profunda as relações entre patrão e empregado com as quais nos habituámos a conviver ao longo de tantos anos. Junte-se a isto, como lembra José C. Nogueira a título de exemplo do que vai acontecer, que mesmo a pequena parte que conheceu as relações pré-Revolução nunca viu uma indemnização por despedimento tão baixa como a que entra agora em vigor para os novos contratos de trabalho. Este é, sem dúvida, o momento decisivo da Contra-Revolução, aquele pelo qual, desde há perto de quarenta anos, gerações de empresários de vistas curtas e de políticos de uma direita débil, cobarde e envergonhada tanto esperaram, conseguindo agora o que sempre quiseram, e de mão-beijada, por intervenção da crise financeira, dos mandatários do capitalismo internacional e, que fique para a História, da iniciativa da atual geração de dirigentes do PSD (já que o CDS segue a bordo por circunstâncias particulares e apenas ajuda à festa). (mais…)

              Atualidade, Olhares, Opinião

              Da paz podre

              Logo pela manhã, um post da Helena Araújo relembrou-me um pormenor, associado à história dos símbolos, que tem tanto a ver com episódios passados da nossa vida coletiva como com situações agora mesmo diante dos nossos olhos. A imagem ou a silhueta da pomba tem servido em tempos e lugares diversos como sinal da paz, do amor, da maternidade, da gentileza ou da figura do mensageiro. De acordo com a tradição bíblica, após o Dilúvio, teria sido uma pomba enviada em demanda de terra firme que, ao regressar à Arca com um ramo de oliveira no bico, sinalizou a Noé o recuo das águas e a possibilidade de retomar a vida sedentária. Para uma boa parte dos cristãos, é também o sinal visível do Espírito Santo, essa parte imaterial da Santíssima Trindade que se não vê, que não se toca, mas que se sente, anunciando na Sua omnipotência e na Sua bondade, a fundação e a intervenção da Igreja. No século XX, todavia, a dimensão simbólica do pequeno ser alado passou a estar associada mais sistematicamente à ideia de paz ou à defesa militante do pacifismo, sendo recuperada, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, em publicações, emblemas e estandartes, por numerosas campanhas antiguerra ou de propaganda da não-violência. (mais…)

                Atualidade, Democracia, História, Opinião

                Democracia e trivialização da maçonaria

                Muito antes da atual polémica pública se instalar, ocorreu-me uma ou outra vez escrever sobre a maçonaria, os seus caminhos, atalhos, desvarios e remanescentes sinais da antiga e agora decaída grandeza. Ao longo dos anos 80 e 90, algum trabalho académico levou-me a encontros laterais mas regulares com a sua história muitas vezes heróica, algumas outras menos edificante, sempre rica em peripécias, escrita no curso dos últimos três séculos. Talvez por isso pudesse ter qualquer coisa de razoável a dizer sobre o assunto. Pareceu-me, no entanto, que muito do que poderia escrever iria acertar em pessoas concretas, algumas conhecidas e aos meus olhos inteiramente respeitáveis, que pertenciam honesta e convictamente à instituição maçónica. Além disso, vivia-se uma época na qual, para além dos cidadãos diretamente envolvidos, apenas os entusiastas das práticas esotéricas se interessavam pelo tema. Entendi por isso, pesando o interesse do caso, que a polémica na qual me iria meter não valeria o esforço. E dessa forma fui adiando o que tinha para dizer sobre esse mundo particular que passou agora, pelos piores motivos, para os grandes títulos da imprensa e dos telejornais. Mas não será ainda desta vez que o farei com detalhe, limitando-me a um curto apontamento.

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                  Atualidade, História, Olhares, Opinião

                  Islão e direitos humanos

                  Tariq RamadanNão conheço, a não ser por alusões laterais e três ou quatro leituras-relâmpago, o trabalho de Tariq Ramadan, o cidadão suíço, muçulmano praticante e professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos em Oxford, que é também visitante em instituições académicas do Qatar, de Marrocos e do Japão. Por isso, falar aqui sobre o seu trabalho académico parece-me imprudente e de evitar. Sei do lugar importante que desempenha no processo de compreensão de um islamismo ocidental, ou mais especificamente europeu, distinto daquele que, emergindo de forma mais direta da sua matriz histórica, é praticado, sob diferentes rostos, no Médio Oriente e em outras paragens mais a sul e a leste. Foi em parte esta atitude de autonomia cultural, associada à crítica dos regimes islâmicos ditatoriais, que fez com que, até há pouco tempo, fosse considerado heterodoxo e persona non grata em países como a Tunísia, o Egito, a Arábia Saudita, a Líbia e a Síria. Ramadan estará nesta quinta-feira, dia 5, em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, onde ao final da tarde proferirá uma conferência pública. (mais…)

                    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                    O regresso do mundo bipolar

                    Logo no prefácio deste Da China, Henry Kissinger informa que desde a viagem secreta a Pequim no ano de 1971, realizada, segundo instruções de Richard Nixon, com o objetivo de restabelecer o contacto entre os Estados Unidos e aquele país e de preparar um pacto de defesa antissoviético, esteve neste país mais de cinquenta vezes. Algumas delas na qualidade de Secretário de Estado dos presidentes Nixon e Ford, outras nas de académico e investigador de temas de política internacional e diplomacia, outras ainda a título particular. Entre estas últimas, sem dúvida – Kissinger não o refere mas a capa do livro di-lo claramente – algumas na qualidade de presidente da Kissinger Associates, Inc., uma empresa de consultadoria internacional obrigatoriamente atenta às transformações das últimas décadas e à afirmação da China num âmbito global. Em todo o caso, transversal às diversas qualidades do visitante é o conhecimento que este foi acumulando da história e da realidade chinesas. Destaca por isso, nos capítulos iniciais, a forma como ao longo do século XIX, por vontade própria ou não, as autoridades do país começaram a pôr termo ao tradicional isolamento, tecendo uma diplomacia complexa e criteriosa destinada a controlar uma abertura imperativamente gradual. Um dos caminhos mais evidentes tomados por este volume resulta pois do esforço para, sem negar as vicissitudes históricas vividas na região e as sucessivas configurações que o poder político foi tomando, nele se demonstrar a existência de uma linha de continuidade estratégica, no campo das relações com o exterior, que o autor acredita remontar ao tempo dos mongóis e da dinastia Manchu e se terá estendido de modo quase ininterrupto até à atualidade. (mais…)

                      Atualidade, História

                      Don Juan e a presidência da França

                      Um número recente da série da Le Point sobre os «grandes mitos» é dedicado a Don Juan. Se seguirmos a definição do Houaiss, podemos considerá-lo a representação ou a súmula do «homem extremamente sedutor, conquistador, mulherengo». Do donjuanismo diz um dicionário popular ser «mania» de quem quer para si, como num ritual de posse, «fêmea após fêmea». Outras fontes associam a figura a uma personagem semilendária que «parece ter vivido em Sevilha», servindo a fantasia da sua existência de inspiração a autores que recorreram ao tipo do «conquistador brilhante, libertino e sem escrúpulos» ao qual as mulheres são incapazes de resistir. Se bem que depois, recorrentemente, como um dever, ele «as engane, despreze e rapidamente esqueça.»

                      Destaco dois artigos deste número da revista. No primeiro, Michel Delon, autor de um estudo recente com um título tão estimulante como Le Principe de délicatesse. Libertinage et mélancolie au XVIIIe siècle, contrapõe Don Juan a Casanova, o aventureiro italiano ao qual é frequentes vezes equiparado. A separação deve-se principalmente, para Delon, ao facto de Casanova arrebatar, por processos de sedução algo artificiais, o amor das mulheres, enquanto Don Juan o obtém naturalmente, pela sua própria maneira de ser. Um, o italiano, jogando sempre nos limites do cinismo, o outro, o espanhol, vivendo cada dia nas margens do absurdo. Num outro artigo, o sociólogo Michel Maffesoli define a figura do conquistador sevilhano como «arquetípica» de uma certa sede de viver o presente de forma total, permanente, que é muito característica do nosso próprio tempo. Aplicado na exaltação da paixão, vivendo cada relação numa espécie de estatuto de inocência, incapaz de considerar experiências anteriores, é, sob essa perspetiva, uma figura extremamente contemporânea. (mais…)

                        Atualidade, Cinema, Olhares

                        O inadiável confronta o improvável

                        A minha formação cristã já decorreu há muito tempo. Mas não o tempo suficiente para que eu já confunda a quadra do arrependimento e da expiação do pecado pela via dolorosa da penitência, que decorre na Quaresma, com as esperanças serenas e indulgentes que o Natal supostamente transporta consigo. Todavia, como o suceder do tempo acelera cada vez mais, existem erros e dislates cometidos pela esquerda portuguesa que quanto mais tarde começarem a ser expiados – no sentido da emenda, não da fustigação dos seus executantes – tanto mais longa será a via-sacra de penitência que irão impor.

                        Há que designar as realidades pelos nomes, sem qualquer intenção de abater este ou aquele mas também sem fazer de conta que está tudo bem. Ou mais ou menos bem. A desgraça pública patrocinada pelo governo da direita tem, de facto, o seu reverso na responsabilidade da esquerda pela situação criada e pela ausência de uma saída. Nesta imputação de culpa existem duas asneiras com ecos brutais na nossa vida que convém dissecar na perspetiva da reparação. Primeira asneira: ter-se considerado o PS de Sócrates, ou qualquer outro, como «rigorosamente igual» ao PSD de Coelho. Está visto que não era e, como muitas pessoas que votaram à esquerda dos socialistas logo preveniram, vê-se agora como esse erro de perspetiva nos empurrou para a queda abissal no pântano do capitalismo mais primário e bestial. Segunda asneira, consequência da primeira: que a insistência na moção de censura responsável pelo derrube do governo PS tornou essa queda inevitável.

                        Tudo isto se relaciona com uma imposição da realidade que sei levantar muitos problemas à «esquerda da esquerda» mas que se mostra incontornável. Sem hipóteses de uma alternativa autónoma, eventualmente mais profunda e radical, nesta fase, que possa transformar-se em projeto de poder, só um grande (grande mesmo) arco de unidade pode ultrapassar a lógica exclusiva do mero protesto e lançar as dinâmicas que conduzam ao derrube da direita. E este, por muito que doa a quem tenha a memória fresca – e a mim dói, acreditem – tem de incluir os socialistas. Ou melhor, não é palavrão, o Partido Socialista. Com cedências de todas as partes, claro. Procurando uma base mínima que, nesta fase, se dedique à tarefa ultra-urgente de combater o pior inimigo: o revanchismo insano da direita e a falta de visão e de coragem para defender o país e os seus por parte de quem, circunstancialmente mas com condições para determinar décadas do nosso futuro coletivo, está agora no governo. Quando o inadiável está na preservação «da paz, do pão, saúde, habitação», de que serve e a quem serve passar o tempo a projetar panoramas improváveis com rubras bandeiras a adejar?

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                          Sem dedos e sem anéis

                          emigrar

                          O desnorte da governança do país, exclusivamente imersa nas soluções de curtíssimo prazo e no revanchismo de direita em detrimento da busca de um caminho e de uma esperança para o país e para os portugueses, está a atingir níveis que estão para lá da compreensão de todo o cidadão habituado, para o mal ou para o bem, a projetar a intervenção dos partidos de governo e dos seus líderes como subordinada a uma estratégia minimamente coerente. A proposta da emigração de professores e de outros quadros como solução para a situação crítica das finanças públicas e da economia do país, que de hipótese ou escolha individual passou a bandeira do governo CDS-PSD, é de uma irracionalidade e de uma ausência de perspetiva colossal. Esta apenas se tornou possível graças à chegada ao eixo do poder de uma geração de quadros partidários treinada no arrivismo e na gestão do imediato. Gente pequena, sem horizonte, com escassa ou nula experiência profissional e claramente pouco inteligente – o seu léxico e a sua retórica demonstram-no cabalmente aos mais atentos – que mostra uma espantosa incapacidade para definir um desígnio razoável para a coisa pública e para o infeliz país que lhe foi parar às mãos.

                          Podem enumerar-se algumas razões para abominar esta hipótese da sangria de quadros, em cuja formação Portugal foi investindo ao longo de quase quatro décadas, como forma de «despachar» uma parte do problema do desemprego. Elas têm sido referidas por muitos comentadores e não vale a pena repeti-las. Limito-me a constatar o absurdo que é afugentar justamente as pessoas que, enquadradas por políticas coerentes e positivas, estão em condições de recolocar Portugal no caminho do desenvolvimento humano e tecnológico como via para recuperar a economia e a qualidade de vida. Como pode conceber-se que será apenas com cidadãos próximos da idade da reforma, já sem condições para emigrarem e recomeçarem o seu trajeto, ou então com trabalhadores menos qualificados, que, mesmo na ótica do capitalismo selvagem, podemos inverter a queda em espiral na qual mergulhámos? Mas há pior: esta proposta, a materializar-se, imporá uma condenação ao exílio perpétuo de um número imenso de jovens. Sem que isso traga outro benefício para o governo que não seja retirá-los das ruas, nas quais podem engrossar o descontentamento e a contestação. É que, pessoas com essa formação, no mundo de cultura global no qual habitamos – que já não é o do emigrante de valise en carton, futuro torna-viagem, com as suas «remessas» de divisas –, transferirão os seus horizontes de vida e de trabalho para os países de acolhimento e, com toda a certeza, não mais regressarão. Esquecendo obrigatoriamente o passado, os lugares da infância, talvez a língua, enquanto se esforçam por ir construindo, a milhares de quilómetros da aldeia dos seus avós, novas «zonas de conforto». E nós por cá ficaremos sem dedos e sem anéis. Mais pobres ainda e sem meios humanos para podermos sair da pobreza.

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                            O riso de Václav Hável

                            Václav HávelNo início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.

                            Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.

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                              Abogi, Abogi! (Adeus Querido Líder!)

                              A morte de Kim Jong-il está a servir ao governo norte-coreano para intensificar uma das características mais brutais do seu «socialismo dinástico»: o drama da escravidão dos corpos e das consciências imposto à generalidade dos cidadãos, sob o efeito da repressão, do treino, da propaganda, do preconceito e da ignorância de realidades alternativas. Do livro de Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), que venceu em 2010 o Prémio Samuel Johnson e compila diversos testemunhos de cidadãos da Coreia do Norte que puderam passar a fronteira e escapar ao regime concentracionário de Pyongyang, retiro uma descrição de momentos que se seguiram, em 8 de julho de 1994, ao desaparecimento de Kim Il-sung, fundador do regime. O paralelismo com as cenas públicas de hoje é inevitável.

                              – Abogi, Abogi! – gemiam as velhas, empregando o título honorífico usado para uma pessoa se dirigir ao seu pai ou a Deus.

                              – Como pudeste deixar-nos assim de repente? – gritavam os homens por sua vez.

                              Os que esperavam na fila saltavam para cima e para baixo, batiam na cabeça, caíam em desfalecimentos teatrais, rasgavam as roupas e davam murros no ar, numa raiva inútil. Os homens choravam tão copiosamente como as mulheres.

                              A teatralidade da dor assumia um aspeto competitivo. Quem conseguia chorar mais alto? Quem estava mais perturbado? Os que prestavam o seu tributo eram incitados pelos noticiários televisivos, que transmitiam horas e horas de pessoas a prantear, homens adultos com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a baterem com a cabeça nas árvores, marinheiros a baterem com a cabeça nos mastros dos navios, pilotos a chorarem na cabina de pilotagem, e assim sucessivamente. Estas cenas eram intercaladas com imagens da trovoada e dos copiosos aguaceiros. Parecia o dia do Juízo Final. (mais…)

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                                Contra a supressão dos feriados

                                Abaixo-assinado da responsabilidade de um conjunto de historiadores.

                                A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.

                                Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. (mais…)

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                                  Uma oportunidade

                                  Reds

                                  Há já algum tempo que não escrevo sobre os caminhos e as escolhas do Bloco de Esquerda. Não por falta de assunto ou de vontade, mas apenas porque me tem parecido pouco útil alimentar, em época de intenso drama coletivo, o fogo de conflitos menorizados à escala e conservados em lume brando. Tenho, por exemplo, evitado mencionar o lamentável eclipse do debate projetado no período que se seguiu à derrota eleitoral de 5 de Junho, materializado no adiamento de uma Convenção Nacional destinada, não a fazer «rolar cabeças», mas a desenvolver o debate político, a aperfeiçoar a atividade militante, a rever erros e descaminhos. Tenho também passado por distraído ao dar a impressão de não reparar no regresso à desmesura da política de tribuna, adiando, aparentemente sine die, a construção de uma alternativa política lançada no terreno e associada a um movimento de opinião amplo e elástico. Alternativa capaz de iluminar um futuro de combate que não seja meramente protestativo e que tenha uma meta no seu horizonte (uma meta, vinque-se, não um destino, pois sabe-se como a demanda deste deu péssimos resultados no passado). O meu objetivo ao regressar ao tema é, entretanto, menos ambicioso. (mais…)

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                                    A «incidência contributiva»
                                    segundo o Xerife de Nottingham

                                    No mito de Robin dos Bosques o Xerife de Nottingham era o executante local das exações fiscais determinadas pelo príncipe João, o usurpador do trono do bom mas desaparecido rei Ricardo. Como sabemos que os mitos são sempre uma representação formal de atitudes humanas consagradas pela repetição, não é difícil encontrar, muitos séculos depois do seu desaparecimento, pequenos e médios xerifes que são fiéis continuadores da pura maldade aplicada em nome de quem manda «porque pode».

                                    Falo apenas de ilegalidades praticadas arbitrariamente pelos executantes do Estado. Por exemplo, da forma como, recentemente, numerosos contribuintes portugueses foram forçados a aguentar as consequências de execuções fiscais e a pagar coimas por uma ausência de pagamento de impostos devidos da qual não haviam sido previamente informados. Simplificando: não se avisa um bom número de pessoas que está devedor e assim, através do pagamento da inevitável multa, aumentam-se exponencialmente as receitas do Estado. Presumo que tal comportamento valha, aos xerifes espertalhaços que o conceberam e aplicaram, uma merecida comenda. Ou, no mínimo, um louvor. (mais…)

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