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A IS, a esperança e a falta dela

Em Homage to Catalonia, publicado em 1938 na ressaca da presença combatente na Espanha da Guerra Civil, George Orwell sublinhava que o que atrai as pessoas comuns, ou pelo menos muitas delas, para o socialismo, e «as deixa dispostas a arriscar a pele por ele», é a ideia de igualdade. Até há pouco diríamos que a hipótese de arriscar a pele por uma causa corresponderia, nesta Europa descrente mas em aparente expansão que saiu do termo da Guerra Fria, a um círculo muito restrito de combates e de lugares, marcados por um extremismo socialmente isolado ou pelo regresso do nacionalismo. A reinstalação da desigualdade à qual assistimos nos últimos tempos pode, porém, inverter rapidamente esta situação: perante o colapso dos mercados, do capitalismo e da democracia parlamentar tal como a conhecemos, o retorno da política dos extremos pode conduzir à reemergência dessa atitude-limite que transforma uma causa no sentido de uma vida vivida no fio da navalha. Como escreveu Tony Judt num dos seus derradeiros livros, «sociedades grotescamente desiguais também são sociedades instáveis», dividindo-se através de conflitos internos, cada vez maiores e mais insanáveis, que terminam geralmente «com desfechos não democráticos». (mais…)

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    Günter, Israel e os outros

    Günter

    «O que deve ser dito», o «poema» na origem da polémica é, de facto, confrangedoramente mau para alguém com a sua responsabilidade literária. Desqualificado como decrépito e apodado de insensível antissemita, Günther Grass declarou entretanto à Associated Press que se pudesse reescrevê-lo teria evitado usar o termo «Israel» e referido expressamente o atual governo de Benjamin Netanyahou. O episódio conta-se em poucas palavras: revoltado com o facto de a Alemanha vender a Israel um submarino com capacidade para lançar mísseis armados com ogivas nucleares, Grass publicou o referido «poema», no qual, num arremedo estético da cartilha do velho realismo (socialista ou não), acusa o governo israelita de «ameaçar a já frágil paz mundial». A peça vai mais longe, condenando «o suposto direito de um ataque preventivo» contra as «supostas» ameaças de um Irão empenhado, também ele, reconhecidamente, em desenvolver armamento nuclear. Em consequência, o governo militarista de Israel declarou o escritor persona non grata, impedindo-o de regressar a um país que, como convidado, visitou já por diversas vezes.

    A posição do governo israelita é, obviamente, escusada e bastante condenável, apenas possível porque este se encontra nas mãos de alguns dos setores mais conservadores e agressivos do país. É contraproducente, do ponto de vista da imagem global de Israel, e incompreensível até para quem gosta, sem estar de todo desprovido de razão, de se gabar de ser «o único Estado democrático da região». Bernard-Henri Lévy, que também não é um anjo, aproveitou para desancar nos esquecimentos do escritor alemão, lembrando-lhe que, já agora, podia falar do que ao mesmo tempo se passa na Coreia do Norte, na Rússia de Putin, na Síria e no Irão ali mesmo ao lado. Mas aquilo que realmente impressiona é o facto de a esquerda antissemita ocidental – a mesma que ainda há pouco tempo apontava o dedo a Grass pelo seu longínquo e por longo tempo escondido passado filo-nazi – passar a incensá-lo como se de um herói se tratasse. Vale tudo para ser «contra Israel», independentemente das circunstâncias históricas e políticas do seu trajeto, seja o que for que possa desenhar-se no horizonte da região. Uma atitude que indicia a ausência de uma «política de princípios», justa e democrática, que é, afinal, cada vez mais necessária. Entre outras coisas para obter para aquelas paragens uma paz duradoura, sem vencidos e vencedores.

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      Contra as praxes vexatórias

      Eis o abaixo-assinado proposto por 15 professores da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e destinado a sugerir medidas para que as «praxes académicas» deixem de se apresentar como «atos de humilhação, de atemorização e de atentado à dignidade». Pretende-se sobretudo divulgar junto dos novos estudantes o seu caráter estritamente voluntário e a impossibilidade legal de se fundarem em práticas vexatórias, o que grande parte dos visados desconhece. Independentemente da opinião pessoal de cada signatário, necessariamente variada, no conjunto, e ao contrário daquilo que alguns meios de comunicação afirmaram, o documento não se destina a «acabar com a praxe», mas antes a impedir os efeitos perigosos ou nefastos que em seu nome têm vindo a ocorrer. Entretanto o texto já recolheu largas dezenas de assinaturas de outros professores da FLUC, estando a circular por mais faculdades. Dentro de dias mais informações serão divulgadas.

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        Atualidade, Coimbra, Democracia, Novidades

        Marcuse de volta

        Herbert Marcuse

        Protegido provavelmente pelo estado de confusão no qual viviam os censores do marcelismo, em janeiro de 1971 o semanário de atualidades Vida Mundial, com uma tiragem, exorbitante para a época e para o país, de 40.000 exemplares, fazia a capa com um cartoon representando Herbert Marcuse, ao qual dedicava um dossiê inteiro. A razão da escolha: pouco tempo antes, já com setenta anos cumpridos, o filósofo da Escola de Frankfurt passara para a ribalta ao ser apropriado pela reflexão libertária e crítica da sociedade pós-industrial que integrou a vertente mais radical e antissistema das movimentações saídas de Berkeley e do «Maio francês». Em 1955 saíra Eros e Civilização, obra que recorria à conceção freudiana do progresso da civilização para demonstrar como a sociedade capitalista altera e condiciona o desejo. Uma posição muito naturalmente sedutora para o padrão hedonista de representação do mundo que moldava a cultura sixtie. Foi no entanto em 1964, com O Homem Unidimensional, só agora traduzido e editado em Portugal, que Marcuse passou a integrar o núcleo duro dos acusadores da sociedade tecnológica desenvolvida que considerava um fator de escravidão.

        A particularidade desse modelo societário residiria então, para além de seu elevado nível de automação, no facto de suscitar um enganador «funcionamento suave do todo». Este assumiria características totalitárias, já que continha «uma coordenação técnico-económica não-terrorista» capaz de operar «através da manipulação das necessidades por interesses estabelecidos», impedindo desta forma o surgimento de «uma oposição eficaz ao todo». O próprio indivíduo transformar-se-ia num produto da alienação provocada por uma sociedade consumista e massificada, dentro da qual a possibilidade de oposição fora suprimida ou desviada, criando uma forma unívoca, padronizada, de pensamento e de ação. Obra de denúncia do modelo monstruoso para o qual o capitalismo parecia empurrar a sociedade, foi no entanto reprovada por uma parte da crítica de esquerda por não oferecer uma via de escape para essa forma servidão que impunha ao indivíduo uma atitude conformista, consumista e acrítica. No entanto, se bem que a estrutura da obra defina principalmente uma intenção analítica – desenhando um quadro ainda hoje de considerar – não terá sido acidental a escolha da frase redentora de Walter Benjamin com a qual termina: «Só através dos que não têm esperança a esperança nos é dada.»

        Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional. Sobre a Ideologia da Sociedade Industrial Avançada. Trad. de Miguel Serras Pereira. Letra Livre. 326 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.

          Atualidade, História

          Ainda e ainda as praxes académicas

          Em Coimbra

          versão revista de um post publicado há cerca de um ano

          De novo às voltas com as praxes académicas. Não que representem um problema para quem, nos ambientes universitários, delas faz – até há pouco tempo, durante algumas semanas, agora o ano letivo inteiro – o eixo das suas vidas. Pelo contrário, aparentemente essas pessoas até se divertem, daquela forma muito própria e bastante pobre e falha de imaginação de se divertirem. Mas porque para a maioria dos cidadãos, que as observam de fora como vestígios exóticos de uma época e de um mundo que não entendem bem, são um fator de perturbação. As razões que as impõem não se prendem, no entanto, com o lado mais ou menos folclórico da «festa permanente» que lhes está associada. Na raiz implicam um espaço de recreio muitas vezes legítimo, e afinal nem todos temos o dever de achar divertidas as mesmas coisas. Mas relacionam-se com três circunstâncias sobre os quais podemos alinhar umas ideias. (mais…)

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            Limpar o pó a Marx

            K.M.

            A avaliação da obra e da influência de Marx tem produzido três modelos de leitura que tendem a depreciá-la ou a empurrá-la para o esquecimento público. O primeiro, sem dúvida o dominante, é aquele que as proclama como decisivamente mortas e enterradas com a derrocada dos Estados do socialismo burocrático e o presumível «fim do comunismo». O segundo modelo, mais antigo, assegura-lhe uma dimensão rígida e nostálgica, como indicador das experiências históricas anteriores à Queda do Muro observadas ainda, por certas consciências, como essencialmente positivas. O terceiro modelo, devedor do anterior apesar de seguir outro caminho, é aquele que vê no «regresso a Marx» a possibilidade de uma sequela, ainda que revista e melhorada ao nível dos conceitos, de um caminho até ao dogma que o próprio filósofo expressamente rejeitara em vida. O objetivo manifesto deste livro de Sousa Dias é pensar e mostrar a possibilidade de uma outra via, na qual a interpretação do mundo injusto e desigual em que vivemos, os caminhos para a sua transformação, bem como a própria ideia de comunismo, projetadas por Karl Marx, são repensados na sua iniludível capacidade revolucionária e na sua dramática necessidade.

            Trata-se de uma viagem por um conjunto de condições teóricas e de possibilidades. A abrir, e diante do apregoado «fracasso do comunismo», o autor mostra que terá sido outra coisa, não o comunismo mas sim uma sua caricatura, «comprometida pelo seu uso estatal e burocrático», aquilo que iniludivelmente fracassou. Procede-se depois a um reconhecimento da atualidade de Marx, separando a leitura dogmática da sua obra, e «um certo marxismo» corrompido pelo leninismo, realmente liquidados ou moribundos, da perspetiva revolucionária, fortemente positiva e incandescente, que o seu trabalho continua a ser capaz de projetar. Aborda-se em seguida a urgência do retomar da ordem do económico sobredeterminando o domínio do político enquanto consequência necessária de um regresso à leitura de Marx. Para os dois últimos capítulos ficam as propostas mais difíceis de teorizar, aquelas que associam ao pensamento de Marx uma grandeza que está para além do seu lugar como instrumento de análise. Erguendo-se contra a velha ideia de revolução enquanto inevitabilidade histórica, o autor mostra de que maneira o verdadeiro pensamento marxiano sugere a «possibilidade impossível» de romper com a ordem injusta, só aparentemente imutável, do capitalismo, e de alcançar a sua superação. E procurando esboçar o rosto da «comunidade por vir», do que será enfim o comunismo, recusa a construção fabulosa de uma ideia de sociedade perfeita, que troca pela «obra do próprio comum como poder instituinte», que não pode ser antecipado mas apenas construído a partir da experiência.

            Um ensaio que retira o pó ao filósofo de Trier e o recoloca vivo nas nossas mãos. A ler com urgência por quem não gosta de ideias feitas e anda à procura de uma saída para isto.

            Sousa Dias, Grandeza de Marx. Por uma política do impossível. Assírio & Alvim. 176 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.

              Atualidade

              Duas ou três coisas que eu sei sobre manifes

              Fotografia: Patrícia de Melo Moreira/AFP

              Depois de uma época na qual fui ativista profissional, a certa altura quase deixei de participar em manifestações de rua. As razões podem reduzir-se a três, sendo as duas iniciais com toda a certeza partilhadas. A primeira teve a ver com o recuo das causas durante os anos 80 e a forma como, falhas de imaginação e de um norte, as correntes que contestavam a ascensão neoliberal se limitavam a repetir até à náusea, receitas, motivações, bandeiras e palavras de ordem que tinham sido necessárias nos anos de resistência ao regime e durante o processo revolucionário mas já não se aplicavam a uma realidade em rápida mudança. A segunda razão ligou-se à apropriação das datas simbólicas por uma burocracia partidária, ou mesmo sindical, que procurou usar os movimentos de massas como ferramenta de estratégias sectárias, rejeitando uma corrente dinâmica, unitária e participada que pudesse exprimir-se também na rua. Banalizou-se assim o protesto, cada vez mais ritualizado, controlado, organizado para «marcar posição» e não para arquitetar futuros. A terceira razão, mais recente, não tem motivação política: justamente quando as circunstâncias mudaram e as manifestações de rua passaram a ter de novo um papel decisivo na mobilização cívica, algumas limitações de ordem física impedem-me de estar presente como queria e deveria. Por isso sou agora mais um apoiante do direito à manifestação do que um manifestante, o que, no entanto, não reduz o meu direito à crítica ou minimiza a minha condição de «homem da luta». (mais…)

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                Um discurso para a esquerda

                [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=84T-XLN_RPE[/youtube]

                A campanha de Jean-Luc Mélenchon, o candidato da Frente de Esquerda às presidenciais francesas de 2012, tem passado estranhamente discreta pelos média portugueses, mais interessados no confronto entre Sarkozy e Hollande, e lateralmente nas frases da menina Le Pen contra os emigrantes. No entanto a campanha de Mélenchon vai já nos 15% das intenções de voto, e em subida, justificando maior atenção. Admirador do socialismo e do pacifismo à Jean Jaurès, o candidato da FE (agrupando a Esquerda Unida, o Partido da Esquerda, o PCF e muitos independentes) recupera uma retórica socialista e internacionalista que vem das profundezas do século XIX. Daquela esquerda insurrecta que ainda não fora entorpecida pelo processo, crescentemente desligado de uma ideia de humano e das expectativas mais profundas dos cidadãos, com que o jargão do marxismo-leninismo, das ciências sociais e da teoria económica a foram cercando ao longo do século seguinte.

                Com toda a certeza, daí provém, como provém também, sem dúvida, da rara, mobilizadora e veemente capacidade do candidato como tribuno, o entusiasmo e a multiplicação dos apoios por parte de quem encontra na sua oratória uma forte mensagem de esperança. Vale a pena, para quem entenda o francês, seguir o discurso notável, pronunciado no passado 18 de março em Paris, na Praça da Bastilha, que aqui se reproduz. Perceberá melhor como pode aquilo que os historiadores reconhecem como velho reemergir, de um modo fulminante, como novo e mobilizador. Acontece que afinal a «primavera dos povos» permanece por cumprir. E aquele «tempo das cerejas e dos dias felizes» que desejavam os communards está por conquistar. E o povo sente isso.

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                  O papel higiénico e a crise

                  A analogia não é bonita mas a redução da nossa qualidade de vida tem pouco de bonito. Uma portuguesa e uma grega que conheço falavam há dias sobre as poupanças da classe média e a conversa foi dar inevitavelmente aos cortes nos consumos domésticos. E ao do papel higiénico em particular. Primeiro cortaram no perfumado, depois no colorido, a seguir reduziram as exigências em termos de maciez e depois de densidade. Ambas concordaram que mais baixo já não é possível descer.

                  Adenda: Publicado este post, mão amiga diz-me que ainda é possível descer mais baixo.

                    Apontamentos, Atualidade, Devaneios

                    Onde está o movimento estudantil?

                    Nas últimas décadas desenvolveu-se em volta do movimento estudantil um conjunto de justificações da sua redução a ações de natureza corporativa e do seu quase desaparecimento como movimento social com influência pública e visibilidade mediática. O termo de comparação, invocado nostalgicamente por alguns ou usado por outros na tentativa de compreender o que aconteceu para que tal tivesse ocorrido, assentou no modelo de ativismo desenvolvido a partir da década de 1950, que teve o seu apogeu com a experiência do Maio de 1968 e o seu canto do cisne durante os anos 70. Basicamente, alterações sociais profundas e uma readaptação do quadro institucional das democracias teriam esvaziado de sentido a politização, muitas vezes de caráter radical, que antes havia conduzido, um pouco por toda a parte, de Berkeley a Paris, da Cidade do México a Praga, no Rio ou em Tóquio, a uma intervenção estudantil capaz de se assumir como componente fundamental da mudança social, da renovação cultural e até da modernização. E também como «escola de democracia», servindo de campo de treino a toda uma geração aberta à crítica e à participação cívica como parte fundamental da vida coletiva e do conhecimento. (mais…)

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                      Cenário desolador

                      De acordo com uma sondagem da Universidade Católica para a RTP ontem divulgada, a maioria dos portugueses (62%) considera que o Governo liderado por Pedro Passos Coelho/relvas está a ter um mau desempenho. Mas uma maioria ainda mais ampla (73%) não encontra melhor alternativa em qualquer um dos partidos da oposição, julgando-os incapazes de fazer melhor. A falta de desígnio e de esperança propaga-se na medida direta da ausência de confiança e de expectativas. A democracia caminha por uma viela escura.

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                        O Segundo Século Vinte (1) | Pára-arranca

                        coimbra69

                        O Segundo Século Vinte é um ciclo de debates e apresentações relacionado com temas da história recente de Portugal. A iniciativa, uma organização do Centro de Documentação 25 de Abril e do Teatro Académico de Gil Vicente, é de periodicidade bimensal e começa já nesta quinta-feira, dia 23 de fevereiro, pelas 18 horas. Será em Coimbra, no TAGV. Nesta sessão, «Pára-arranca. História e amnésia no movimento estudantil», falar-se-á das experiências, dos esquecimentos e dos recomeços que explicam mas também condicionam a intervenção cívica e reivindicativa dos estudantes. Participarão os investigadores Guya Accornero e Miguel Cardina, sendo a moderação de Rui Bebiano. Pode ver e copiar aqui o cartaz do ciclo.

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                          Wallerstein e a aproximação da esquerda

                          Immanuel Wallerstein

                          Em artigo publicado no Esquerda.net, Immanuel Wallerstein fala dos grandes desafios colocados à esquerda mundial depois de 2011, que considerou «um bom ano». As razões desta qualificação positiva relacionam-se com a perceção, por parte de um número crescente de pessoas, da necessidade absoluta de uma alteração radical de sistema, lançada «contra a excessiva polarização da riqueza, os governos corruptos e a natureza essencialmente antidemocrática desses governos, tenham ou não sistemas multipartidários». Por isso, pela primeira vez em muito tempo, em tantos lugares tantas pessoas comuns passaram a questionar a própria natureza do sistema em que vivem, deixando de o ver como imutável e ampliando assim as condições subjetivas necessárias à sua alteração.

                          O sociólogo enuncia ali duas grandes tarefas colocadas à esquerda para poder dar corpo a essa imprescindível mudança. Uma delas, a mais óbvia, tem a ver com a escolha entre um modelo «desenvolvimentista», que privilegie na construção de um novo sistema o crescimento económico, e um outro, «anti-desenvolvimentista», que insista nas mudanças nas condições de trabalho e no padrão de vida dos cidadãos. A outra tarefa tem, entretanto, menos a ver com o sistema pelo qual combater e mais com o combate político por esse futuro. Consiste em saber como projetar, à esquerda, a indispensável transformação política, já que em todo o mundo «as forças de centro-direita ainda comandam», influenciando uma grande parte da população. A proposta de Wallerstein é direta e óbvia, ao considerar que se quiser promover a mudança a esquerda mundial precisará de um grau de unidade ou de proximidade política que ainda não tem, devendo, por isso, concentrar boa parte das suas energias nessa tarefa de reconciliação, ou pelo menos de avizinhamento. Recordando que existem profundos e velhos desacordos tanto sobre objetivos de longo prazo quanto sobre escolhas táticas, sublinha que, sendo estes discutidos com frequência e acaloradamente, de facto pouco progresso tem sido obtido na superação ou no esbater das divergências e das divisões. (mais…)

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                            A CGTP e o «fascismo morno»

                            CGTP

                            Não podemos se não ter um enorme respeito pelo trajeto das pessoas, ou de gerações inteiras, que deram o melhor de si, que lutaram e sofreram, por causas que consideraram justas, urgentes e imprescindíveis. Mesmo quando neste ou naquele momento, como é próprio do humano, se equivocaram nas decisões. Mas muitos dos que na época estiveram ou podiam ter estado com essas causas olham agora de uma forma algo distanciada, quando não profundamente crítica, certas tentativas para evitar a sua adaptação ao novos e, aparentemente, não menos difíceis tempos que se aproximam. Os gestos, como as ideias, os programas e as convicções, têm o seu tempo e começam a perder o pé quando deixam de se questionar e se repetem como numa litania, quando se fixam numa imagem do real menos complexa e móvel do que aquela que realmente vivem, quando envelhecem sem de tal se aperceberem.

                            Por isso, se deve manter-se o sentimento de gratidão pelo combate passado dos comunistas pelo estabelecimento da democracia e dos sindicalistas da mesma ou análoga tendência pelo alargamento e a defesa dos direitos dos trabalhadores, já não o devemos conservar quando notamos, em muitos dos que pretendem prosseguir o seu legado, uma grande dificuldade para se adaptarem ao mundo tal qual ele agora é, às tarefas e políticas de alianças que, numa fase dramática como a que vivemos, exigem tanto de coragem como de capacidade para ser-se maleável, antisectário e inventivo. Por isso também não posso deixar de estar de acordo com José Medeiros Ferreira quando este, em crónica recente, comenta, a propósito do primeiro e ríspido discurso de Arménio Carlos, o novo líder da CGTP e membro do Comité Central do PCP, que nos conflitos que se avizinham «a sociedade portuguesa só dará a vitória a quem for mais abrangente na resposta aos problemas do momento, e não a quem for mais sectário.» A força do combate contra este «fascismo morno» que nos está a envolver estará necessariamente na capacidade para mobilizar com base num denominador comum e numa retórica aberta, não na exibição de um discurso pré-apocalíptico e de estratégias de uma «luta de classes» cega que tendem a desunir.

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                              Um tema difícil

                              O tema é difícil. Principalmente para quem integrou e conserva nas suas quimeras úteis o ideal de uma pedagogia que capaz de privilegiar tanto o conhecimento das coisas e das ideias quanto a formação da capacidade crítica de pessoas livres. Um tema doloroso para quem jamais deixou de simpatizar com as propostas antiautoritárias de Paulo Freire e dos seus bons cúmplices. Como Agostinho da Silva, para quem «nada pode ser ensinado por imposição» e um professor «não é um capataz mas um auxiliar e um guia, cuja função é sugerir e não impor.» Difícil ainda para as convicções de quem pensa que a este princípio não pode ligar-se o seu inverso, que é o da subordinação do professor a lógicas que transtornaram os papéis de quem tem a missão de ensinar e de quem precisa aprender, convertendo a escola num local de conflito dentro do qual, demasiadas vezes, se gasta mais tempo a mediá-lo do que a fazer aquilo que realmente importa.

                              É este, no entanto, o cenário sobre o qual se têm desenvolvido os dolorosos problemas «de disciplina» que afetam muitas escolas secundárias e que – aspeto ainda algo encoberto – chegaram já às universidades. Na verdade, e por isso usei as aspas ao falar de disciplina, trata-se sobretudo de problemas de ausência de autoridade. Não no sentido da imposição violenta da vontade de alguém, ou de um regime educativo tirânico, mas da defesa das condições de trabalho de quem, professores e alunos, vive em comum para ensinar e para aprender. Por isso não posso se não discordar da posição dos que defendem serem os dispositivos legais que podem reforçar a autoridade do professor «uma resposta ilusória», como acaba de declarar uma deputada do Bloco, ou que esta se obtém basicamente «por reconhecimento social», como sugeriu um deputado do PCP. É que foi justamente esta posição, dominante durante décadas, que desarmou os professores e os transformou em alvos fáceis, retirando-lhes instrumentos necessários para poderem exercer de forma digna, livre e democrática a sua missão. O tema deveria, por isso, ter um peso importante na agenda dos partidos da esquerda e dos sindicatos do setor. E não ficar nas mãos da direita.

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                                Está caladinho

                                o conformista
                                Jean-Louis Trintignant em «Il Conformista», de Bernardo Bertolucci (1970)

                                Da crónica de hoje, a última de Pedro Rosa Mendes para a última semana de «Este Tempo», o programa da Antena 1 que a administração da RDP entendeu fazer calar por conter vozes incómodas, deixo um fragmento que pode servir-nos para aferir do estado cataléptico em que a nossa democracia se encontra. Do qual este episódio é apenas mais um sinal. Um panorama demasiado assustador? Talvez o seja. Mas os mais velhos ensinaram-nos que não há como sustos e adversidades para aprender a crescer e a rasgar caminhos. Aqui ficam então, também para que se não diluam rapidamente no éter, as palavras de Rosa Mendes que sublinhei.

                                «Quatro décadas de democracia produziram, afinal, uma sociedade asfixiada por valores do silêncio, da cobardia, do bajulamento e dessa gangrena da nossa pátria que é a inveja social. Por junto, uma cultura mesquinha em que quase sempre não há ninguém que diga aquilo que todos sabem, mas que todos devem calar. Uma terra onde, finalmente, se instalou o medo e uma noção puramente alimentar da dignidade individual. Traduza-se: está caladinho, para guardares o trabalhinho.»

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                                  Censura e falta de vergonha

                                  O episódio envolvendo o fim de «Este Tempo», o programa de opinião da Antena 1 no qual colaboravam Pedro Rosa Mendes e Raquel Freire, para além de António Granado, Gonçalo Cadilhe e Rita Matos, devido a uma crónica na qual o jornalista e escritor falava, moderadamente aliás, da comunicação acrítica que pactua com o servilismo do governo português diante do angolano, coloca-nos diante de quatro realidades preocupantes. A primeira, mais óbvia, diz respeito à intromissão do poder político na esfera da liberdade de opinião. Não sendo nova em democracia, está agora a atingir um nível insólito de intensidade e de atrevimento, recorrendo cada vez mais à lógica dos supostos «interesses nacionais». A palavra censura emerge aqui, com todas as letras, como a adequada para descrever aquilo que está a acontecer. A segunda realidade tem a ver com a mistura, materializada desde logo na atuação do governo, entre os direitos políticos, que dizem respeito à esfera do coletivo e podem aparentemente ser condicionados, e os interesses económicos que têm a ver com a atividade privada de alguns e, nesta lógica, devem supostamente estar libertos de incómodos. A terceira refere-se ao nível de compactuação dos responsáveis eleitos e de algumas correntes políticas de um pais democrático com o governo corrupto, nepotista, despótico, e para mais não-eleito, de Angola. A quarta realidade integra enfim a ostentação, e a proteção, desse padrão de jornalismo sabujo, bajulador e intoxicante, pago além disso com dinheiros públicos, diretamente visado pela crónica de Rosa Mendes na referência que fez ao programa de Fátima Campos Ferreira emitido em direto de Luanda com a participação do omnipresente ministro Relvas. Sobre tudo isto a pesada sombra da ausência de vergonha e da ostentação do intolerável. [a notícia] [em cartaz]

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