Wallerstein e a aproximação da esquerda

Immanuel Wallerstein

Em artigo publicado no Esquerda.net, Immanuel Wallerstein fala dos grandes desafios colocados à esquerda mundial depois de 2011, que considerou «um bom ano». As razões desta qualificação positiva relacionam-se com a perceção, por parte de um número crescente de pessoas, da necessidade absoluta de uma alteração radical de sistema, lançada «contra a excessiva polarização da riqueza, os governos corruptos e a natureza essencialmente antidemocrática desses governos, tenham ou não sistemas multipartidários». Por isso, pela primeira vez em muito tempo, em tantos lugares tantas pessoas comuns passaram a questionar a própria natureza do sistema em que vivem, deixando de o ver como imutável e ampliando assim as condições subjetivas necessárias à sua alteração.

O sociólogo enuncia ali duas grandes tarefas colocadas à esquerda para poder dar corpo a essa imprescindível mudança. Uma delas, a mais óbvia, tem a ver com a escolha entre um modelo «desenvolvimentista», que privilegie na construção de um novo sistema o crescimento económico, e um outro, «anti-desenvolvimentista», que insista nas mudanças nas condições de trabalho e no padrão de vida dos cidadãos. A outra tarefa tem, entretanto, menos a ver com o sistema pelo qual combater e mais com o combate político por esse futuro. Consiste em saber como projetar, à esquerda, a indispensável transformação política, já que em todo o mundo «as forças de centro-direita ainda comandam», influenciando uma grande parte da população. A proposta de Wallerstein é direta e óbvia, ao considerar que se quiser promover a mudança a esquerda mundial precisará de um grau de unidade ou de proximidade política que ainda não tem, devendo, por isso, concentrar boa parte das suas energias nessa tarefa de reconciliação, ou pelo menos de avizinhamento. Recordando que existem profundos e velhos desacordos tanto sobre objetivos de longo prazo quanto sobre escolhas táticas, sublinha que, sendo estes discutidos com frequência e acaloradamente, de facto pouco progresso tem sido obtido na superação ou no esbater das divergências e das divisões.

Uma das principais tem a ver com o papel das eleições nos processos de mudança e de validação democrática do poder. Recorda-se que existem três posições essenciais a seu respeito: a primeira é a do setor que suspeita profundamente das próprias eleições, argumentando que participar é politicamente ineficaz e reforça a legitimidade do sistema existente; a segunda, mais pragmática, é a daqueles que querem trabalhar apenas a partir de dentro na transformação dos maiores partidos de centro-esquerda; a terceira é a dos que insistem que não há diferenças significativas entre os principais partidos próximos do arco do poder e insistem em votar em algum que esteja «genuinamente» à esquerda, contando sobretudo com o seu crescimento. Aquilo que o Wallerstein argumenta é que lhe parece claro que, se não houver alguma ação comum entre esses três grupos em relação ao comportamento eleitoral, «a esquerda mundial não tem muitas hipóteses de prevalecer a curto ou a longo prazo.» Acreditando então na possibilidade de uma conciliação, propõe, em nome dos imperativos práticos, que se faça «uma distinção entre as táticas de curto prazo e a estratégia de longo prazo», possibilitando assim a subordinação temporária dos grandes princípios, necessariamente divergentes, à tarefa urgentíssima de derrotar a direita e evitar o abismo.

Esta escolha, aplicável também ao combate político numa dimensão que não seja apenas a do simples ato eleitoral, é, claro, a única capaz de introduzir uma inadiável dinâmica viragem. Defronta-se, no entanto, com problemas muito específicos, que variam de país para país e em Portugal se relacionam com os três núcleos – PCP, PS e BE – fundamentais para obter tal unidade táctica, ainda que esta deva obrigatoriamente integrar outras forças e movimentos, para além dos cidadãos sem partido mobilizáveis para uma solução política urgente e eficaz. Sem entrar em detalhes sobre as qualidades e as malformações de cada um desses núcleos, sobre a sua fidelidade a modelos caducos e não-democráticos (PCP), a processos de desenvolvimento comprovadamente desastrosos (PS) ou a opções por vezes politicamente ambíguas (BE), sobre a desconfiança que conservam entre si, ou ainda sobre a suspeição que levantam a muitas pessoas descontentes com o atual estado das coisas, uma coisa é certa: sem uma aproximação tática dos três, que passa obviamente por transformações na sua natureza e nos seus tiques, bem como por uma abertura ao que é essencial, não é possível a construção de uma alternativa eficaz à direita. Essa que, à conta da crise mundial e por não ter oposição à altura de gerar tal alternativa, por cá tem vindo a instalar-se e a impor o seu ressabiado projeto de restauração, já quase sem retoques «democráticos» de cosmética, do padrão de sociedade desigual e opressiva derrotado vai para trinta e oito anos.

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