Na New Yorker desta semana, o jornalista Nicholas Lemann conta num artigo biográfico intitulado «Transaction Man» a inacreditável história do primeiro encontro de um importante mórmon de Salt Lake City, Douglas Anderson, partidário dos democratas, com Mitt Romney, o candidato republicano às presidenciais norte-americanas. Corria o ano de 1968 e Anderson acabara de entrar na Universidade de Stanford. Romney chegara a Stanford cerca de três anos antes, depois de ter viajado por França no seu trabalho como jovem missionário mórmon. Andava Anderson a passear pelo campus quando um estudante mais velho, que ele conhecia mal, lhe dirigiu uma pergunta: «És mórmon?». Anderson respondeu que sim. «E conheces Mitt Romney?». Não, não conhecia. «Mitt Romney é a pessoa mais excecional que alguma vez conheci!». E afastou-se. Pouco tempo depois Anderson descobriu que o desconhecido era o próprio Mitt.
Não representa uma vantagem, mas sim um problema e um péssimo sintoma. Pode também ser um ponto de viragem para indispensáveis mudanças de atitude. Torna-se evidente que uma boa parte da dimensão e do êxito das manifestações anti-troika e anti-governo de 15 de Setembro se ficou a dever – para além, claro, da revolta genuína, profunda, dos cidadãos espoliados e ofendidos – ao seu caráter apartidário. A necessidade e a unidade na ação produziram então o necessário para que as bocas se abrissem: uma conjugação de vontades, fundadas em alguns objetivos elementares e comuns, que não se acharam submetidas a figuras tutelares, a discursos estereotipados, a «serviços de ordem» ou a previsíveis aproveitamentos. Essa foi a vantagem.
Já o problema começa quando o caráter apartidário degenera em sentimento antipartidário, e nada garante que a linha separadora das duas dimensões não tenha sido já transposta. Tanto no que diz respeito aos partidos do governo, quanto no que concerne àqueles que formalmente se lhe opõem. Chegamos então à perceção de que este pode ser o perigoso sintoma de uma certa rejeição da democracia representativa de base partidária tal como esta se encontra desenhada na Constituição, o que pode antecipar uma arriscada vertigem de caráter messiânico ou autoritário. Aguarda-se por isso que aquilo que aconteceu suscite, quanto mais não seja por efeito do instinto de sobrevivência, uma reflexão dentro dos próprios partidos. E que preludie uma reconfiguração do nosso mapa político e partidário, com a emergência de novas formas de organização, de ação, de discurso e de representação política. A esperança que nos alimenta reclama esta possibilidade.
A dimensão e as características dos protestos deste 15 de Setembro terão sido uma surpresa, tanto para os governantes quanto para os partidos do chamado arco da governação. E mesmo para os próprios organizadores, que só tinham as adesões no Facebook como indicador. A surpresa começou pelo número esmagador de manifestantes que foram para a rua, em tantos e tão diversos locais, somando perto do milhão. Falamos, repare-se bem, de 10% da população em protesto contra a ingerência da troika em Portugal, contra a vertigem insana da austeridade sem horizonte assumida pelo governo, e contra a proposta injusta e desumana de uma Taxa Social Única que traduziria uma política de terra queimada. Foi esta, aliás, a gota que fez transbordar o copo. (mais…)
Não me parece plausível, surgindo mais como uma manobra de diversão para atemorizar algumas pessoas e diminuir o impacto do movimento de protesto, que possam ocorrer atos de violência nas dezenas de manifestações «Que se lixe a Troika! Queremos as nossas vidas!» previstas para este sábado, 15, em todo o país. Mas já pode ser preocupante que possam acontecer, ainda que esporadicamente, atitudes de sectarismo contra pessoas conotadas com posições políticas mais próximas do «arco do poder» que resolvam estar presentes. É absolutamente crucial para o êxito destes protestos e a sua transformação em instrumento de uma dinâmica de mudança política alargada à maioria dos portugueses, que todos percebamos não se tratar de uma caminhada para a «revolução dos oprimidos», mas sim de um passo, apenas um passo embora importante, no sentido da construção da unidade e da alternativa, ao pesadelo de governo e de futuro que nos estão a tentar impor. Por uma vida digna. Neste momento, preciso, imperioso e urgente é unir forças e gritar a uma voz em nome do que é mais importante.
Uma carta-aberta é aquilo que sabemos. Escrita por alguém (neste caso o escritor e ensaísta Eugénio Lisboa), dirigida a outro alguém (aqui o destinatário é o infeliz que é neste momento o primeiro-ministro de Portugal) e aberta à leitura de todos porque a todos importa. Retirada do blogue Da Literatura, de Eduardo Pitta.
CARTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL
Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe. (mais…)
É provável que muitas pessoas o tenham entretanto esquecido e, uma vez que a Queda do Muro aconteceu há já perto de um quarto de século, que muitas outras nunca se tivessem apercebido de tal coisa. No entanto, durante os anos da Guerra Fria, os governos dos países do «socialismo de Estado», autoproclamado «realmente existente», bem como a maioria dos «partidos irmãos» que no resto do planeta os apoiava, sempre mostraram maior empenho na vitória republicana nas eleições para a presidência dos EUA do que interesse no resultado contrário. A lógica era simples: republicanos e democratas eram uma e a mesma coisa, não passando de inimigos «da humanidade progressista e da paz dos povos», e por isso mais valia que vencessem os menos enganadores, os mais assumidamente agressivos e por isso os mais capazes de ajudar a congregar vontades para o combate anti-imperialista. Era a lógica do quanto pior, melhor: um governo americano mais inflexível no domínio interno e mais propenso a aventuras no plano mundial, seria preferível para a vitória planetária do socialismo. (mais…)
Por um conjunto de razões que não tenho agora tempo para esclarecer, as eleições parlamentares de hoje em Angola fazem-me rememorar uma frase de Paul Theroux deixada no seu Viagem por África: «Em países onde os políticos corruptos se vestem todos de fatinho às riscas, as melhores pessoas andam esfarrapadas.»
International Workers Day, por Thorbjørn Chiloux Fessel
O objetivo do Ministério da Educação de, já no ano letivo de 2013/2014, introduzir na organização do sistema de ensino alterações tendentes a fazer com que os «estudantes com notas fracas» sejam forçados à aprendizagem de ofícios «como eletricista, talhante, agricultor ou canalizador», é um golpe brutal nos princípios da escola democrática. Princípios que, no essencial, presidiram após o 25 de Abril à organização do ensino obrigatório e tendencialmente universal. Este objetivo do governo revanchista de Coelho e Portas foi hoje mesmo criticado, com agudeza e detalhe, em dois artigos que recomendo vivamente: «O erro Crato», de André Macedo, e «Cada criança no seu galho», de José Soeiro. Não duplico os dados e a reflexão que estes apresentam, uma vez que os reproduzo no final deste post, mas chamo a atenção para dois aspetos específicos e uma circunstância particular que não têm sido suficientemente vincados na sua dimensão social e na sua completa perversidade. (mais…)
Segundo o Público, os organismos de veteranos que tutelam a praxe de oito academias – Évora, Porto, Aveiro, Minho, Beira Interior, Trás-os-Montes e Alto Douro, Leiria e Coimbra – vão reunir-se no início de Setembro «para defenderem as tradições académicas», isto é, as praxes, procurando criar um regulamento geral capaz «de separar muito bem o que é a praxe e o que não é». O objetivo último da iniciativa, declaram alguns dos que a preparam, é conter os abusos, impedindo «barbaridades» e estimulando «o respeito». De acordo com o responsável de um desses organismos, tal respeito será necessariamente «dos mais novos em relação aos mais velhos, mas também dos mais velhos em relação aos mais novos». As regras não colidirão com os vários códigos da praxe, destinando-se apenas a impedir os excessos e o enviesamento dos objetivos corporativos que visam essas práticas «tradicionais» e datadas. (mais…)
Não parece que a proposta de dois rostos para coordenar o Bloco de Esquerda possa ser uma boa ideia. Para além da sua justificação mais simples surgir associada por Francisco Louçã a um certa dose de novidade e de imaculada correção política – de fundamentação e de eficácia, aliás, bastante duvidosas –, evidencia a intenção óbvia de esbater, através dessa forma de representação «bicéfala», alguns dos problemas mais óbvios desse equilíbrio político interno que se encontra na matriz do Bloco e com o qual, desde a fundação, este tem convivido sem dramáticas ruturas. Trata-se de uma sugestão bastante discutível, que, a concretizar-se, pode ter custos políticos muitíssimo elevados. Desde logo por ser um óbvio caso de «meter a carroça à frente dos bois», indicando um novo modelo de direção sem que este venha associado a um programa político claro, realmente renovado e com capacidade de mobilização. Mas também porque, se for consumada, terá consequências difíceis de prever e certamente nada positivas para o partido.
Num mundo como o atual, submetido à omnipresença dos média e à força imensa da imagem, numa sociedade em crise aguda como esta em que estamos, no sistema político representativo como aquele em que vivemos, o papel da liderança é, para os partidos, ainda crucial na agregação de apoios, na mobilização do universo eleitoral e na negociação de soluções. Por isso, ela deve ter um rosto único, expressivo, com autoridade política determinada pela biografia de quem a personifica, com capacidade para fazer convergir diferenças, com estofo político e humano para saber propor metas, para moderar os inevitáveis problemas pessoais e conflitos internos, para ser a voz do coletivo na primeira linha dos combates mais necessários. Ora uma solução como esta, frágil e de confeção burocrática, de facto de continuidade e de «consenso possível», sabe a remédio amargo e não parece responder a estas necessidades. A ocorrer, só pode trazer maus resultados para o Bloco e más notícias para quem nele deseje encontrar uma parte forte da solução para o futuro próximo deste país em tormenta.
[O segundo parágrafo foi ligeiramente retocado cerca de uma hora depois de publicado.]
A fotografia que acompanha este post foi tirada em Sófia e documenta uma intervenção estética integrada no movimento global de solidariedade que após a sua prisão, há já cinco meses, tem apoiado as três Pussy Riot e divulgado a intervenção que protagonizam. A introdução da balaclava – o acessório inventado durante a Guerra da Crimeia por umas caridosas senhoras britânicas que é o sinal visual da banda punk moscovita – sobre as cabeças de algumas das figuras de um grupo de soldados do Exército Vermelho representados na estrutura erguida durante o pesadelo do realismo socialista numa praça central da capital búlgara, acentua a dimensão iconoclasta do seu ativismo. E sublinha agora a importância da sua luta pela liberdade. (mais…)
O mesmo jornal Avante! que se aplica, sem um momento de quebra ou desânimo, a vituperar como «terroristas» todos aqueles que na Síria se opõem ao regime de Al-Assad, não tem uma palavra na sua edição online sobre o massacre, ou sequer a dura luta por melhores condições salariais, dos mineiros sul-africanos. Nem sobre a atuação reivindicativa e iconoclasta que culminou com o castigo brutal imposto agora às três Pussy Riot. Nem sobre a campanha de intimidação com a qual o governo angolano está a tentar impedir qualquer surpresa eleitoral. Para o PCP, um ANC cada vez mais autoritário, a Mãe Rússia, bastião do anti-imperialismo, e o MPLA, «partido do trabalho», ainda não tombaram do altar. Convém tomar nota.
Quando era criança costumava passar o Agosto inteiro na praia da Figueira da Foz. Umas semanas bastante aborrecidas, ocupadas com infinitas horas de vagas e areal, intervaladas de sestas, merendas e sonos noturnos para descansar do excesso de mar, sol e areia. Num certo ano, porém, os meus pais resolveram aproveitar a altura, sem pedirem opinião, para tentarem fazer de mim um desportista, inscrevendo-me por atacado em três cursos de formação. Um ensinava a andar de patins e o objetivo era, naturalmente, prepararem o futuro jogador de hóquei: fui a uma única lição, estatelei-me duas vezes e desisti logo ali. Outro curso ensinava natação mas percebeu-se imediatamente que aquele não era o meu ambiente natural: enquanto as outras crianças começaram a nadar à quarta ou quinta aula, e eu só o consegui, e mal, à décima segunda. (mais…)
Há cerca de 14 meses, logo após o desastre eleitoral que o BE produziu e viveu nas legislativas de 2011, e em consonância com um debate público, alargado a não-militantes, que então parecia ir ter lugar, escrevi aqui quatro posts sob o título comum «O Bloco no seu labirinto». O tempo passou, a discussão parece ter-se escondido, e um conjunto de práticas então criticadas manteve-se aparentemente inalterável. Este texto retoma, resume e atualiza alguns dos argumentos ali avançados. Mas procura, pois agora só isso é urgente, olhar principalmente para o futuro.
Não me parece, ao contrário do que por aí se diz e escreve, que as dificuldades do Bloco de Esquerda, a clarificação das dúvidas sobre os caminhos que pisa, o esclarecimento público dos seus objetivos, passem necessariamente por mudanças profundas no núcleo dirigente. As escolhas, claro, são feitas por pessoas: elas têm rosto, traduzem percursos, sugerem as expectativas e as qualidades de quem as toma. Mas não parece existirem clivagens que imponham a troca de dirigentes com rodagem e com energia para cumprirem o seu trabalho político, por outros que, numa mera operação de cosmética, apenas poderão oferecer, como numa mudança de logótipo, uma imagem pública diferente. O alargamento e a renovação dos organismos de direção, a expansão da sua representatividade e colegialidade, o combate ao sectarismo que ainda se deteta, a ampliação dos militantes com formação qualificada, integram uma solução; já deitar fora ideias, experiência, dedicação, não tem necessariamente de fazer parte dela. A solução deve encontrar-se noutro lado. (mais…)
Uma das formas de desrespeito pelos direitos dos outros – e também de aviltamento da condição humana – passa pelo uso seletivo, contra alguém ou contra grupos, de insinuações, meias-verdades ou completas mentiras. Pode ser que quem o faça consiga os seus intentos imediatos, mas não ganha com isso, com toda a certeza, a consideração de quem se apercebe de tais estratagemas. Eis uma «lei universal» que a todos se aplica: não é possível respeitar quem, para obter vitórias fáceis e rápidas, ou para depreciar publicamente alguém, recorra à mentira ou à manipulação das palavras. Fazê-lo é, entre outras coisas, sinónimo de falta de transparência e de caráter. As duas ou três pessoas com quem nesta vida me incompatibilizei, justificaram a minha atitude justamente pelo uso reprovável da manipulação, da mentira, da depreciação de outros. Distorcendo as suas palavras ou fazendo eco, sabendo o que faziam, de calúnias produzidas por terceiros. Produzindo pravda, «verdade revolucionária», em vez de verdade. (mais…)
Boa parte do cinema que tem pautado os modos de ver ou de imaginar uma certa identidade norte-americana passa pela carreira longa e pela figura esguia de Clint Eastwood. Começou a participar em filmes, ainda como ator secundário, em 1955, mas a projeção mundial obteve-a como «Homem Sem Nome» («Joe», «Manco» ou «Blondie») na trilogia «dos dólares», modelo do western spaghetti, rodada entre 1964 e 1966 por Sergio Leone: Por um punhado de dólares, Por mais alguns dólares e, mais conhecido, O Bom, o Mau e o Vilão. Aí protagonizou o tipo de herói, comum na ficção americana, mostrado como um indivíduo violento e sem grandes princípios, em conflito à escala diminuta com a ordem dominante, que as circunstâncias empurram para atitudes que o espetador reconhece como «justas» e nas quais, por isso mesmo, a violência, incluindo a mais extrema, parece aceitável. Este será o modelo retomado pelo Eastwood das décadas de 1970-1980, na pele do detetive Harry Callahan, «Dirty Harry», num conjunto de filmes onde, uma vez mais, a brutalidade e a falta de escrúpulos do polícia duro e automarginalizado surgia como uma necessidade determinada pela procura da justiça.
«Sentia ganas de ir oferecer os seus serviço aos corsários, mau grado a proibição de El-Rei.» Se é verdade que a História jamais poderá repetir-se, sob determinadas circunstâncias pode pelo menos imitar-se.