Free Pussy Riot
A liberdade é sempre, e em primeiro lugar, a liberdade de expressão.
A liberdade é sempre, e em primeiro lugar, a liberdade de expressão.
«Sentia ganas de ir oferecer os seus serviço aos corsários, mau grado a proibição de El-Rei.» Se é verdade que a História jamais poderá repetir-se, sob determinadas circunstâncias pode pelo menos imitar-se.
Para Antonio Muñoz Molina algumas das maiores revoluções da sua vida aconteceram aos outros. Em lugares onde não estava, como Lisboa, Berlim ou o Cairo. Uma experiência frustrante que pode ser partilhada. Não estar ali, naquele momento, no lugar onde tudo aconteceu. Quando a História toma o freio nos dentes e por instantes as grandes expectativas, outrora adiadas para futuros incertos, ganham forma em vidas que não são as nossas, em cidades que jamais habitámos, em línguas que não nos pertencem. Delas chegam-nos então as imagens rápidas, televisionadas, das correrias pelas ruas, dos cartazes que se agitam, dos gases irrespiráveis, das mots d’ordre na ordem do dia. Nessas alturas reconhecemos na ira dos outros, no rasgo que dela chispa, um impulso simpático que partilhamos, necessário para que as nossas vidas possa, também elas, incluir uma dimensão de esperança. Se é verdade, como escreveu Ralph Waldo Emerson, o filósofo e poeta americano de Oitocentos, que cada revolução começa por ser uma ideia na nossa própria cabeça, então vislumbrá-la nesses horizontes distantes ecoa em nós, através dos outros, noutras vozes e noutras praças, a consciência da sua possibilidade. Tudo acontece rapidamente e a festa acaba demasiado depressa, mas ficam as marcas, os despojos, insinuando que um dia pode voltar a acontecer. Algures, talvez aqui, talvez connosco.
Na cidade síria de Alepo, a segunda do país com 2,5 milhões de habitantes, perante o avanço das forças de Assad, «um número muito grande de civis», encurralado pelos bombardeamentos cerrados de artilharia pesada por terra e ar, «reuniu-se em parques públicos em áreas mais seguras» ou então «refugiou-se nas escolas». A maioria dos cidadãos está desesperada, temendo pela vida e assistindo à destruição sem piedade da sua cidade-museu. O esquerda.net já viu aquilo que está a acontecer na Síria: uma chacina em nome da defesa de um regime massivamente contestado nas ruas de todo o país. Mas limita-se a noticiar, não toma uma posição. A «teoria do não-intervencionismo a todo o custo», em qualquer caso, independentemente de situações extremas nas quais o que deve importar é a defesa elementar de vidas humanas, conduz o Bloco de Esquerda a becos sem saída desta natureza. Já o Avante! apoia as forças do regime e vê coragem e nacionalismo, «defesa legítima» contra uma agressão externa «programada nos corredores do Pentágono», onde existe principalmente a brutalidade sem limites, lançada no terreno contra as forças anti-regime mas que atinge sobretudo civis que lhe não conseguem escapar. Enquanto o PCP é consequente com a sua fidelidade política ao inquebrantável princípio leninista do «inimigo principal» e ao velho parceiro na região da «saudosa» União Soviética, o BE evita tomar uma posição clara face a uma tragédia humana desta dimensão. Queira-o ou não, quem cala consente.
Como seria de esperar, a morte de José Hermano Saraiva (1919-2012), está a dar lugar, a par das demonstrações de pesar que são devidas sempre a quem parte, a um cortejo de elogios excessivos. Mas deteta-se também a invocação de algumas de críticas ao seu trabalho no campo da História e a exibição de comprometedores silêncios sobre o seu papel como cidadão. O peso do lugar que ocupa no nosso imaginário coletivo justifica um olhar sobre estes três aspetos.
Os elogios decorrem, naturalmente, da sua popularidade como divulgador da História de Portugal, ou, de acordo com algumas leituras, como historiador. Os seus programas televisivos, ampliados pela enorme capacidade histriónica que detinha, tornaram-no figura única, em termos de popularidade, na sua área de especialização. Relato um episódio que me foi contado há já uns anos por um colega, historiador e professor da Universidade do Porto, que é bastante revelador do peso dessa aura. Tendo sido a dada altura decidido fazer aos alunos do 1º ano de História da Faculdade de Letras um inquérito sobre os seus conhecimentos da disciplina, e tendo-lhes sido pedido que indicassem o nome de três historiadores portugueses vivos, nem um só deles deixou de indicar o nome de José Hermano Saraiva. O curioso, e também significativo, é que vários indicaram como segunda e terceira escolha… Alexandre «Saraiva» (referindo-se a Herculano, claro, falecido em 1877) e Vitorino Magalhães «Saraiva» (Godinho, como é bom de ver). «Saraiva» tem, pois, para muitos portugueses, uma relação de sinonímia com «historiador», reforçada pelo facto de, nesta profissão, poucos serem conhecidos fora dos círculos académicos ou dos setores educados da classe média. (mais…)
Para além de ser um dos nossos mais importantes medievalistas, José Mattoso é também um historiador que não tem vivido a sua profissão como um espartilho, refletindo sobre domínios que se cruzam com os caminhos do contemporâneo e a experiência da cidadania. Comprovam-no os quinze ensaios escritos ao longo das últimas quase duas décadas que este Levantar o Céu reúne. Fá-lo adotando uma busca de sentidos, apoiada sempre numa reflexão muito pessoal, para essa «sabedoria verdadeira» que jamais se mostra à primeira vista, sendo por isso necessário «desejá-la, compreendê-la, descobri-la», aceitando que ela «não explica nada, explica-se». O título é pois uma declaração de intenções: se «levantar o céu» impõe a vontade de desvendar a relação entre o ideal que este representa e a materialidade da vida terrena, como possível via para perceber a mudança na ordem do mundo, já compreender o percurso labiríntico para alcançar a sabedoria é o mote que acompanha estes textos. A bússola oferece-a Mattoso no encontro, tantas vezes julgado como um inevitável desencontro, ou no equilíbrio que pessoalmente sempre procurou obter, entre fé e razão. O ceticismo do qual em alguns momentos nos dá conta apenas reforça esse sentido de procura. (mais…)
Orwell escreveu certa vez que o que atrai as pessoas comuns, ou pelo menos muitas delas, para o socialismo, e as deixa «dispostas a arriscar a pele por ele», é a ideia de igualdade. Até há pouco diríamos que a hipótese de morrer por uma causa corresponderia, nesta Europa tão descrente saída do descalabro das ideologias e do termo da Guerra Fria, a um círculo restrito de combatentes pautados por um desespero quixotesco e fora de moda. Mas a reinstalação da desigualdade à qual assistimos nos últimos tempos está a inverter rapidamente a situação: perante o colapso dos mercados, do capitalismo e da democracia parlamentar tal como os conhecemos, o retorno da política dos extremos pode trazer de volta essa atitude-limite que associa uma causa insurgente ao sentido da vida, militante e radical, de um número crescente de pessoas, reinstalando a violência insurrecional como necessidade. Num dos seus derradeiros livros, Tony Judt alertou para a transformação de «sociedades grotescamente desiguais» em sociedades instáveis, dividindo-se através de conflitos internos, cada vez maiores, mais insanáveis, que terminam geralmente «com desfechos não democráticos». Mas só se percebe verdadeiramente a mensagem de Judt se se tiver em linha de conta a sua proposta de ultrapassagem das anestesiantes fantasias de prosperidade e progresso individual, sugerindo um retorno a essa matriz original da social-democracia assente na convicção do papel regenerador da liberdade política, da justiça social e da ação coletiva.
No pequeno ensaio militante A Crise da Esquerda Europeia (D. Quixote), Alfredo Barroso coloca o dedo na mesma ferida, questionando a deriva neoliberal e individualista dos partidos socialistas e social-democratas europeus – o PS português claramente incluído entre eles – e o facto de, perante crises económicas e financeiras cada vez mais graves provocadas pela desregulação do capitalismo, não se ter erguido neste campo «uma forte reação política e um sobressalto ideológico». A razão terá sem dúvida a ver com uma alteração do código genético desses partidos: controlados por círculos de natureza essencialmente tecnocrática, penetrados pela clientelagem, seduzidos durante muito tempo pela sereia de um «desenvolvimento económico» endeusado, que supostamente a todos traria o bem-estar, preferiram aliar-se à direita, ou copiar acriticamente o comportamento desta. Em vez de se aproximarem mais naturalmente da restante esquerda, passaram a queixar-se do sectarismo que a imobiliza sem mexerem um dedo para o tentarem perceber e ajudar a diluir. A situação atual, de intenso questionamento do modelo de desenvolvimento adotado, parece ser, nesta área política, uma porta para outras possibilidades. O livro de Barroso, que merece ser lido, considera-a absolutamente necessária.
Os objetivos mais essenciais do documento que abaixo se transcreve e que apoio unem-se à proposta de realização de um Congresso Democrático das Alternativas. A ideia é unir para construir e propor – contra a austeridade pela austeridade, o saque sem precedentes ao Estado Social e a criminalização do trabalho e dos trabalhadores – uma alternativa real de governo. Não se pretende dar lições do quer que seja, mas debater processos de colaboração e de mobilização para a construção de um outro destino que não aquele que a troika nos determina como inevitável. Infelizmente, e para já, o PS e o PCP apenas estão representados por setores minoritários, distantes das atuais direções partidárias. A esperança é, no entanto, que este impulso ajude a superar a tentação de apenas participar no que é possível controlar, promovendo uma aproximação programática que configure uma verdadeira alternativa. Tentar não custa. O resto está por fazer..
Resgatar Portugal para um futuro decente
«Só vamos sair da crise empobrecendo”. Este é o programa de quem governa Portugal. Sem que a saída da crise se vislumbre, é já evidente o rasto de empobrecimento que as políticas de austeridade, em nome do cumprimento do acordo com a troika e do serviço da dívida, estão a deixar à sua passagem. Franceses e gregos expressaram, através do voto democrático, o seu repúdio por este caminho e a necessidade de outras políticas. Em Portugal, o discurso da desistência e das “inevitabilidades” continua a impor-se contra a busca responsável de alternativas.
Portugal continua amarrado a um memorando de entendimento que não é do seu interesse. Que nos rouba a dignidade, a democracia e a capacidade de coletivamente decidirmos o nosso futuro. O Estado e o trabalho estão reféns dos que, enfraquecendo-os, ampliam o seu domínio sobre a vida de todos nós. Estamos a assistir ao mais poderoso processo de transferência de recursos e de poderes para os grandes interesses económico-financeiros registado nas últimas décadas. (mais…)
Posso ser acusado de muita coisa pouco abonatória, mas jamais de não gostar de livros. Desde a escola primária, eles acompanham a maior parte do meu tempo – livre ou ocupado – e desde essa altura que mantenho o hábito de carregar sempre um ou dois, às vezes mais, mesmo que anteveja não poder retirar algum tempo para o(s) ler. Além disso, como professor, investigador e crítico, eles são o meu ganha-pão. Como se tal não bastasse, ainda escrevo alguns e, na condição de impenitente viciado, ao longo dos anos tenho vindo a preencher com eles, cada vez em maior quantidade, a maior parte das divisões das casas que vou habitando. Tendo-me desfeito há pouco, justamente por falta de espaço, de cerca de meia centena, guardo ainda assim umas doze ou treze vezes essa quantidade. Continuando sempre a gostar deles, regressando sempre a eles. Não posso, por isso, ser acusado pelos puristas do papel de não amar os livros, de ir como um tolo atrás das modernices eletrónicas, de ter traído a minha própria biografia, perdendo a fidelidade «ao cheiro, ao toque, à beleza» do livro físico e trocando-o pela tentação do digital.
No entanto, nada disso me impede de conviver com a inevitabilidade de, para as gerações agora a chegarem à universidade, o livro físico ser já, ou tornar-se em breve, um objeto de arquivo, respeitável mas destinado aos especialistas, aos investigadores, aos curiosos, aos colecionadores, mas não ao comum dos cidadãos. Para estes, o conhecimento legado servir-se-á dos suportes que a tecnologia tem vindo a aperfeiçoar ou está a inventar, transformando a forma de ler, de comunicar ou de criar. E isto não é futurologia, como o era ainda quando há cinquenta anos Marshall McLuhan falava do fim da «galáxia de Gutenberg» e há trinta Nicholas Negroponte se entretinha a propor-nos o «paradigma digital». Esta realidade é-me confirmada pelo inventário, que acabo de fazer, dos livros dos quais me tornei feliz proprietário durante os últimos dois anos: sem contar com jornais e revistas, comprei 34 livros tradicionais, em átomos, foram-me ainda oferecidos (a larga maioria por autores ou editores) 57, e comprei… 67 e-books, contando-se entre estes aqueles mais atualizados e diretamente relacionados com o trabalho profissional e os meus interesses diários. Afinal já cheguei ao «futuro previsível», esse que para alguns será «impossível», «jamais acontecerá». E ainda não tinha dado completamente conta disso.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=9hVceFcBh8Y[/youtube] |
Curta-metragem do jovem realizador sírio Bassel Al Shahade, assassinado em Homs pelas tropas de al-Assad. Num dos massacres que alguns dos habitués da distorção da História dizem não ter acontecido. E que os adversários do não-intervencionismo a qualquer preço fazem por ignorar. Enquanto permaneceu vivo, Bassel foi aliás uma das testemunhas do que estava (e continua neste preciso momento) a acontecer. De notar que poderia ter permanecido a salvo, por se encontrar a estudar nos EUA com uma bolsa Fulbright, tendo decidido regressar ao seu país para cobrir os acontecimentos. Mais informação aqui.
O fim da ordem bipolar introduzida pela Guerra Fria e o estado de desgraça ao qual na atualidade chegou o capitalismo têm trazido de volta a hipótese da demolição da ordem pública tal qual a conhecemos. Fala-se da «anarquia das ruas», com o pavio acendido em Atenas, causada pela revolta incontida contra o recuo abrupto do Estado social e a falta de horizontes de sobrevivência, mas fala-se também da «anarquia dos mercados», determinada pela incapacidade de alguém prever ou moderar o seu comportamento errático. Todavia, a teoria política e a experiência dos movimentos sociais, não têm promovido o retorno do ideário anarquista ou anarcossindicalista que, desde os meados do século XIX, orientou os primeiros passos da reivindicação operária e ajudou a construir a perceção do futuro de um grande número de filósofos, escritores, artistas e outros atores sociais. Existe de facto um peso, determinado pela domesticação dos partidos da esquerda e dos sindicatos, que esvaziou o velho filão do anarquismo militante, da escola de Bakunine, confinado à cultura antiquada dos militantes saudosos de outros tempos, com bandeiras desbotadas que já não mobilizam, ou, longe deles, a setores de jovens automarginados, que encontram na atitude libertária o arsenal da sua barricada identitária. E, no entanto, como sugere Octavio Alberola, porque não associar o anticapitalismo que a crise fez reemergir a um antiautoritarismo renascido, capaz dar perigosamente voz a quem já não acredita nas burocracias partidárias e sindicais? Eis uma questão levantada, com uma reflexão convincente e propostas à vista, num pequeno livro de M. Ricardo de Sousa (Os Caminhos da Anarquia, da Letra Livre) que anda aí, algo escondido, pelas estantes das livrarias. Apresentado como uma reflexão pessoal «sobre alternativas libertárias em tempos sombrios», levanta uma possibilidade de ressurgimento na luta social que, no contexto presente de gestão crítica das expectativas e das sobrevivências, é de ter em atenção.
Não fazendo parte do seu núcleo impulsionador e redator, fui dos primeiros signatários do «Manifesto para uma Esquerda mais livre». Neste momento, o número de pessoas que assinaram o documento, muitas delas de trajeto e méritos publicamente reconhecidos, já vai em cerca de duas mil e continua a aumentar. A sua localização política é muito plural e a leitura que cada uma delas faz do documento será, por isso, com toda a certeza muito diferenciada. É natural que assim aconteça, dado não se tratar de um programa partidário, de uma plataforma eleitoral ou de um plano para a tomada do poder, mas antes de um conjunto de princípios maleáveis, razoavelmente consensuais para diversas áreas da esquerda não dogmática, destinados – é essa a minha leitura, e foi nessa perspetiva que assinei – a colaborar na procura de estratégias de aproximação e de renovação para uma esquerda dividida. Uma esquerda demasiadas vezes entrincheirada nas suas diferenças e absolutas certezas, como tal sem hipóteses de enfrentar com êxito uma direita que sabe unir-se e incapaz de aplicar a estratégia de mudança que a atual situação do país e da Europa requer. É o princípio de algo, não se saberá ainda bem do quê. Mas em relação a uma coisa podemos desde já ficar com alguma segurança: não servirá para dividir, mas sim para unir, como não servirá para enquadrar, mas para pensar. E não é «contra os partidos», embora admita que estes por si só não bastem para abrir os caminhos da mudança. (mais…)
A primeira reação foi de alegria, a segunda de ceticismo, a terceira de esperança. Como pessoa de esquerda, adversário da transformação da realidade europeia num laboratório para a produção de meros exercícios de gestão financeira no interior de um capitalismo retornado ao estado de barbárie, custem eles o que custarem em termos sociais e humanos, não pude deixar de me sentir momentaneamente feliz com a vitória da esquerda francesa reunida em torno da candidatura de François Hollande. Nem com os avanços que essa esquerda anti-austeritarista, projetada à margem das cartilhas dogmáticas pré-Queda do Muro, foi capaz de obter na Grécia.
Já como alguém que sabe não serem só os problemas colocados que são complexos e reconhece que as soluções para os superarmos o podem ser ainda mais, não posso deixar de despertar rapidamente do estado de graça e de perceber que o que aí vem irá defraudar muitas das expetativas dos eleitores. Hollande não é propriamente a mola de uma frente unitária contra a ditadura dos mercados, a desigualdade social e o recuo do Estado-providência. Dentro do sistema que domina a economia europeia, as suas tímidas propostas reformistas poucas hipóteses terão de ser aplicadas e de produzir efeitos duradouros. Já o Syriza, é, no contexto grego, um partido do protesto, do descontentamento, o que não assegura capacidade para afirmar aquilo que não tem: uma estratégia de governo e uma saída à vista para os problemas mais dramáticos dos gregos.
No entanto, a esperança nasce também das maiores dificuldades. A perceção de que é necessário encontrar uma solução e a pressão dos cidadãos para que tal se faça de forma rápida e com uma gestão de recursos que não seja cega, irão criar condições para que, em França, na Grécia e noutros teatros da crise, novos e melhores caminhos possam ser visados, preparados e percorridos. Não os que levam a Pasárgada, a cidade-ideal da vida boa projetada no conhecido poema de Manuel Bandeira, mas os que alimentam essa dose de esperança necessária a toda a regeneração.
Outra das entradas escritas para o Dicionário das Crises e das Alternativas lançado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de parceria com as Edições Almedina, a revista Visão e o Jornal de Letras. Ainda em alguns quiosques.
Até à década de 1960, média designava um campo integrador dos «meios de comunicação de massas» enquanto instrumentos de propaganda destinados a impor uma mensagem de natureza política ou publicitária. Nos anos 70 essa perspetiva foi alargada, percebendo-se que a dimensão instrumental não indicava apenas aos públicos o modo como estes deveriam pensar, mas incorporava também a aptidão para impor aquilo em que eles deveriam ou não pensar. Neste sentido, os média têm funcionado como aparelhos de subordinação dos cidadãos a formas de perceção do real social e do curso da História que escapam à intervenção da crítica, não sendo acidental que as piores formas de opressão, instaladas nos regimes de pendor totalitário mas também nas fissuras das democracias, recorram a eles para impor o seu domínio e eliminar a divergência. A ideia de «indústria cultural», proposta por Adorno e por Horkheimer, referia já o modo como a instauração de um dado fluxo de informação servia de instrumento de propagação da ideologia dominante, dando lugar a uma uniformização dos quadros de pensamento e dos comportamentos, no sentido da aceitação ordeira do capitalismo. Para Baudrillard, o peso do signo na «sociedade de consumo» irá, por sua vez, suscitar uma vertigem de natureza opressiva. A vulgarização da televisão, e depois a disseminação da Internet, crescentemente dependentes da intervenção dos grupos financeiros e também dos governos, irão reforçar este papel de manipulação e controlo, impondo, perante o recuo do jornalismo de combate, um ruído que ao mesmo tempo silencia. No presente contexto de crise, este tende a difundir a convicção de que não existe escolha perante os desmandos do sistema, o qual poderá quanto muito ser reabilitado. A capacidade da rede mundial de computadores integra, porém, uma forte dimensão democrática e libertária que tem servido a circulação de informação (veja-se o caso Wikileaks), o debate político, a mobilização do protesto e a perceção da possibilidade de uma mudança mais profunda, contornando os média tradicionais, eles próprios forçados a repensar-se.
A propósito das cenas violentas e completamente degradantes provocadas pela campanha de descontos do Pingo Doce, não parece justo culpar apenas a atitude canalha da empresa de Jerónimo Martins, ao servir-se do feriado do Primeiro de Maio para desencadear a sua campanha de publicidade agressiva, manipulando as carências das pessoas e provocando os seus próprios trabalhadores. Como não será correto culpar os largos milhares de famílias que para sobreviverem à crise foram até à selva das prateleiras lutar corpo a corpo por escassas centenas de euros. Para sermos justos, e entendermos o que aconteceu de um modo mais completo, precisamos olhar também para a atitude continuada dos partidos políticos e de muitas organizações sindicais que têm desenvolvido a sua ação exclusivamente centradas numa política de interesses, na gestão economicista do deve e do haver de todos e de cada um. Fazendo-o sem atenderem à defesa da consciência cívica como princípio de solidariedade, da honra individual como eixo da vida coletiva, da (voltemos sem medo à palavra) ideologia como instrumento de mobilização e de mudança. Marx dizia que a consciência política do operário – alarguemos: do trabalhador, do cidadão – não se mede apenas pelo tamanho do porta-moedas. Talvez o que aconteceu se deva, em boa parte, ao esquecimento de que nem só de pão vivemos.
Um documentário de Jorge Costa.
Hesitei um pedaço antes de escrever algumas linhas sobre o desaparecimento triste e prematuro do Miguel Portas. Por diversos motivos. Desde logo, porque muitas outras pessoas, mais próximas dele, mais e melhor conhecedoras da sua jornada de vida, escreveram de maneira informada sobre episódios, dificuldades, alegrias e projetos partilhados. Fizeram-no, em diversos casos, de forma muito sábia, justa, comovida e magnífica. Jamais o poderia ou saberia eu fazer com idênticos atributos. Hesitei depois porque falei com o Miguel apenas uma meia dúzia de vezes desde que o conheci, tardiamente, no ano 2000. O Bloco de Esquerda nascera há pouco e na altura sentia-me suficientemente perto para participar como orador numa iniciativa pública. Recordo que sendo o penúltimo a falar me vi interrompido pela chegada de uma equipa de televisão com pouco tempo para gravar o discurso principal, da responsabilidade do próprio Miguel. Fiquei, claro, um tanto irritado com a situação, mas horas depois, já no comboio, recebi um telefonema caloroso e gentil, explicando detalhadamente o sucedido e pedindo um milhão de desculpas. Gesto definidor de um modo de agir raro no universo, tantas vezes brutal e cheio de prioridades trocadas, do ativismo profissional de todos os quadrantes. Mas hesitei ainda porque não queria, nem quero, servir-me de um acontecimento tão infeliz para travar o meu próprio combate político. Não posso, no entanto, deixar de recordar, uma vez que nestas horas tem permanecido omisso nos obituários, a luta do Miguel que conheci contra o sectarismo de todos os matizes e pela ampliação da crítica e da autocrítica dentro da «esquerda da esquerda». Opção difícil pela qual se bateu, mesmo até ao final do caminho, com perseverança e equilíbrio, por considerá-la a única forma de somar forças e ideais para o combate, cada vez mais urgente, cada vez mais imprescindível, por um país melhor e por um mundo mais justo. E do novelo de tantas hesitações resultou este acanhado post, que não passa de um adeus sentido e combatente.
O Segundo Século Vinte é um ciclo de debates e apresentações relacionado com temas da história recente de Portugal. A iniciativa, uma organização do Centro de Documentação 25 de Abril e do Teatro Académico de Gil Vicente, é de periodicidade bimensal e tem mais uma sessão nesta quinta-feira, dia 26 de abril, pelas 18 horas. Será em Coimbra, no TAGV. Nesta sessão, «Casas pró Povo. O Projeto SAAL antes e agora», falar-se-á da experiência e do exemplo deste projeto pioneiro de habitação social criado em Julho de 1974 e desarticulado a partir de Outubro de 1976. Participarão os arquitetos Alexandre Alves Costa e José António Bandeirinha, sendo a moderação de Natércia Coimbra. Pode ver e copiar aqui o cartaz do ciclo.