Uns mandam, outros trabalham

International Workers Day,
por Thorbjørn Chiloux Fessel

O objetivo do Ministério da Educação de, já no ano letivo de 2013/2014, introduzir na organização do sistema de ensino alterações tendentes a fazer com que os «estudantes com notas fracas» sejam forçados à aprendizagem de ofícios «como eletricista, talhante, agricultor ou canalizador», é um golpe brutal nos princípios da escola democrática. Princípios que, no essencial, presidiram após o 25 de Abril à organização do ensino obrigatório e tendencialmente universal. Este objetivo do governo revanchista de Coelho e Portas foi hoje mesmo criticado, com agudeza e detalhe, em dois artigos que recomendo vivamente: «O erro Crato», de André Macedo, e «Cada criança no seu galho», de José Soeiro. Não duplico os dados e a reflexão que estes apresentam, uma vez que os reproduzo no final deste post,  mas chamo a atenção para dois aspetos específicos e uma circunstância particular que não têm sido suficientemente vincados na sua dimensão social e na sua completa perversidade.

Primeiro aspeto: este desígnio do governo implica que o processo de formação profissional básica em atividades de natureza manual esteja concluído no 9º ano de escolaridade, devendo para isso começar no 6º, o que significa o traçar de um destino praticamente definitivo, aos 12 anos de vida, para as crianças com maiores dificuldades de aprendizagem e com menos condições materiais para as superarem. Segundo aspeto: não se trata de valorizar o ensino profissional como uma escolha, o que é um princípio positivo, mas antes de determinar como imposição uma separação clara, rápida e quase irreversível, entre aqueles que estão vocacionados para mandar e os que se destinam apenas ao mundo do trabalho, libertando o Estado do «peso» financeiro da escolarização universal.

Aos processos previstos deve, entretanto, somar-se uma circunstância particularmente dramática. Num país como Portugal, e diferentemente do que ocorre por exemplo no norte da Europa, é mínima a possibilidade de fora da escola pública a generalidade dos jovens aceder a bibliotecas e a meios informáticos adequados, ao trabalho partilhado e estimulante, ao convívio com os valores humanísticos, com a criação e com um saber sistematizado e aberto. Este plano empurrará assim uma percentagem significativa e crescente de cidadãos para o obscurantismo e uma impreparação endémica. Materializando condições e expectativas de vida que só terão paralelo no medonho mundo do trabalho que alimentou a primeira revolução industrial. Aquele que o movimento operário e o combate pelos direitos cívicos e humanos foi capaz, felizmente, de transformar ao longo dos últimos 170 ou 180 anos. Um universo de mão-de-obra barata, e provavelmente ignorante do mundo situado para além do horizonte do seu ofício, quem nem sequer às dinâmicas atuais do capitalismo poderá servir. É para isto que nos quer conduzir este governo sem um norte para além da cartilha neoliberal mais elementar. Que descobriu como se fosse a pólvora e está a tentar aplicar como se não fosse um remédio antigo e ineficaz.

 

O erro Crato, por André Macedo (Diário de Notícias)

O ministro da Educação quer desenvolver o ensino vocacional. Muito bem. Como seria bom que os estudantes pudessem escolher formações técnicas capazes de lhes transmitir (também) um saber profissional. Como seria excelente que estes cursos respondessem (também) às necessidades do mercado de trabalho. Como seria bom que não se desperdiçasse recursos atirando para cursos superiores pessoas que não os querem fazer. Já se pensou no tempo que poderíamos poupar? Na inteligência, energia e talento que um plano assim libertaria? Aposto que seríamos um país mais feliz e competitivo.


Mas se é assim tão evidente, porque nunca se deu este passo como deve ser? Porque será que a concretização se revela tão difícil? Porque será que as famílias e os alunos evitam esta escolha? A resposta está no projeto macabro de Nuno Crato. De acordo com o ministro, quem irá para estes cursos? Ora bem, além dos voluntários – coitadinho, tem 14 anos, mas não dá para mais… -, os que chumbarem duas vezes no ensino secundário também têm o destino traçado. É um castigo: és uma besta, vais já para jardineiro; sim, terás mais uma oportunidade para voltar ao ensino regular, mas para já ficas-te por aqui. Depois, se passares os exames do 9.º ou 12.º anos, logo veremos.


Não há dúvida: se a via profissional é apresentada como uma punição, é lógico que poucos – entre os bons e talentosos – quererão juntar-se a este gueto onde a qualidade será ridiculamente baixa. É lógico que só as famílias mais pobres ou desinformadas aceitarão este afunilamento precoce, cruel e estúpido das perspetivas. Os outros nem por um segundo pensarão em seguir este caminho (a segunda divisão!) que o próprio Governo se encarrega à partida de desvalorizar. O que isto revela de Nuno Crato é apenas um terrível cheiro a naftalina.


Na Alemanha, pátria do ensino vocacional, ninguém é chutado da “escola regular”. Não se fecham portas. Não se elevam barreiras aos 14 anos em lado nenhum do mundo civilizado. Avaliam-se competências, oferecem-se alternativas. Não se apressam escolhas à reguada. A ligação às empresas é uma das maneiras de fazer isto com algum êxito: são as associações de empresários que, na Alemanha, ajustam a oferta de cursos profissionais às necessidades do mercado. Não há rigidez, há flexibilidade e oportunidade – a oportunidade de, na idade adequada, estagiar numa empresa. É por isso que 570 mil alunos alemães se inscreveram nestes cursos em 2011, contra os 520 mil que preferiram a universidade. Não foi porque lhes enfiaram orelhas de burro na adolescência.


Nuno Crato vive preocupado em exibir autoridade. Quer chumbar, punir, travar. Vê a escola como um centro de exclusão, não como espaço de desenvolvimento de competências sociais, culturais e técnicas – com regras, competição e exigência. Não tem um plano educativo desempoeirado: sofre de reumatismo ideológico. Engaveta os alunos. Encolhe o País. Reduz a riqueza. É matemático.

 

Cada criança no seu galho, por José Soeiro (esquerda.net)

Anunciam hoje os jornais que o Governo pretende, já para o ano letivo de 2013/2014, que os «estudantes com notas fracas» sejam «direcionados» para a aprendizagem de «ofícios como eletricista, talhante, agricultor ou canalizador». A ideia, segundo as notícias, é que os alunos com duas reprovações ou três chumbos intercalados até ao 6º ano sejam obrigados a frequentar esta via.


A proposta parece má de mais para ser verdade. Mas é a expressão profunda e a concretização curricular de uma visão do mundo e da escola. O que está na base do que é anunciado poderia ser resumido em três ideias.


Primeira ideia: a escola não serve para promover igualdade, mas deve assumir a desigualdade como programa, através da diferenciação de vias. A dualização dos percursos educativos é assim uma forma de estratificar internamente a escola, separando os que estão destinados a prosseguir para o ensino superior e aqueles cuja formação deve ser apenas a estritamente necessária para abandonarem o mais rapidamente possível a escola em direção ao mercado do trabalho. Trata-se de uma mudança profunda no fundamento e no mandato da escola democrática.


Segunda ideia: os «ofícios» não são uma coisa importante e que deve ser valorizada, mas um castigo para os miúdos que «não têm jeito para a escola», isto é, os que têm «notas fracas». A suposta apologia do ensino profissional (o objetivo do Ministro é que mais de 50% dos estudantes do ensino obrigatório optem por esta via já este ano), tão enfatizada retoricamente, assenta por isso na sua desvalorização social. Isto é, não parte da vontade de diversificar a experiência de todos na escola e de combater a hierarquia entre saberes e qualificações, mas precisamente do oposto, da velha divisão social do trabalho que põe de um lado os «pobres» e os «incapazes», destinados ao trabalho manual apresentado como punição, e do outro os que «podem» ter acesso a um ensino mais geral.


A terceira ideia resulta das anteriores. A desigualdade educativa passa assim a ser a forma de garantir, o mais precocemente possível, a desigualdade social. Em função dos resultados das crianças até ao 6º ano, determina-se o seu percurso posterior. De acordo com esta conceção, a escola não pode nem deve garantir a todos uma educação de qualidade e nem todas as crianças estão «talhadas» para aprender algo mais do que serem mão-de-obra. De pequenino se impõe um destino.


Numa entrevista dada ao Público em 2010, o ministro Crato já defendia a ideia de um sistema educativo a várias velocidades: «devíamos ter alunos que conseguissem fazer as coisas de forma mais rigorosa e avançada, alunos que fizessem o percurso médio – a larga maioria – e alunos com apoios especiais. É um sistema que existe em muitos países». Percebemos agora como pode materializar-se esta suposta inovação, que é na realidade a mais velha e ultrapassada das ideias sobre a escola. Este regresso ao passado não diz apenas respeito a quem se envolve na educação. Nestes debates e nestas escolhas, na capacidade de as desmontar e de lhes resistir, jogam-se também dimensões fundamentais da própria democracia.

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