Author Archives: Rui Bebiano

Deco: light or dark?

Neste momento nada me move contra a Deco, a «Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor». Muito pelo contrário: trata-se de uma organização de utilidade e à qual muitos cidadãos recorrem em desespero de causa, quando têm problemas que a simples eficiência do vendedor de televisões, a comprovada simpatia do mecânico do automóvel ou a bondade da funcionária das finanças não possam resolver. Aliás, já fui assinante das revistas Proteste e Dinheiro & Direitos que a Deco edita, e só deixei de o ser pelos motivos absolutamentes supérfluos que se podem depreender daquilo que digo mais abaixo. Mas a Deco mantém também algumas práticas que me parecem pelo menos discutíveis.

Não falo das questões meramente estéticas, que aliás não serão de somenos. Os seus e as suas porta-vozes, vestem todos, absolutamente todos, fatos domingueiros ou saias-e-casaco de baptizado que mais parecem uniformes. E eu não gosto de uniformes. Além disso, as suas publicações têm sempre um grafismo espalhafatoso e ultrapassado, como a publicidade das festas do Santo Padroeiro (para além do hábito estranho de analisarem, muitas das vezes, produtos descontinuados). As campanhas para angariação de sócios, por sua vez, oferecem brindes de quermesse inenarráveis que apresentam como fantásticos gadgets. Mas admito que tudo isto seja irrelevante, resultado da mania parva de tentar meter beleza naquilo que dela não carece para funcionar. Agora o que já me parece bastante discutível é que a Deco não promova campanhas públicas relacionadas com as úteis descobertas que faz, que não divulgue com clareza os nomes das marcas e das empresas prevaricadoras, que disponibilize informação actualizada apenas a sócios pagantes. Esta consideração da defesa do consumidor como uma irrelevância enquanto movimento social seria pouco grave se por aqui existissem outras organizações e movimentos de cidadãos capazes de agirem, em alguns casos, através de iniciativas directas de denúncia pública e de boicote. Assim não sendo, limitamo-nos a uma defesa por intermédio de formulários, requerimentos e cartas registadas com aviso de recepção, a qual, em certos casos, será muito insuficiente. Gostaria de ver a Deco com menos gravatas e mais acção, sinceramente. Até me fazia sócio.

PS – Escrevi ontem este post e hoje mesmo o Público fala da «relação empresarial de subordinação» que a Deco mantém com a sociedade luxemburguesa com fins lucrativos Euroconsumers SA, a qual detém também três quartos do capital da empresa que gere as revistas da organização. O título da notícia é: «Tribunal italiano exclui pareceiros da Deco da lista das associações de consumidores». À atenção dos cidadãos. (20/07/2006)

    Opinião

    Samir Kassir e a desgraça árabe

    Fotografia de Ramzi Haidar

    Em 2005 Samir Kassir (سمير قصير em árabe) foi assassinado em Beirute aos 45 anos de idade. Professor universitário, jornalista e historiador, filho de um palestiniano-libanês e de uma síria, possuía dupla nacionalidade franco-libanesa e considerava-se essencialmente «um árabe laico», não alienado a uma cultura estrangeira e, estruturalmente, sem qualquer vontade de eliminar aqueles que não pensavam como ele. Enquanto activista de esquerda bateu-se pela independência da Palestina e pela implantação da democracia no Líbano e na Síria, sendo o autor de Considerações Sobre a Desgraça Árabe (Cotovia, 2004), um livro transparente e dramaticamente otimista, radicalmente crítico da deriva totalitária e obscurantista que vem dominando o mundo árabe, e que, tendo provavelmente servido para assinar a sua sentença de morte, acaba de ser editado em Portugal.

    Nele se aborda o grande impasse no qual todas as sociedades árabes se encontram, enunciando os seus traços mais dramáticos: uma enorme taxa de analfabetismo, disparidade entre os imensamente ricos e os desesperadamente pobres, sobrepovoamento das cidades, desertificação das províncias, estabelecimento de padrões espúrios de intolerância, um crescente isolamento em relação ao resto do mundo. Aos quais se associa a intervenção coligada dos governos autoritários e dos dignitários religiosos que as dominam, a qual – com o apoio dos novos meios de comunicação, e entre eles o da estação de televisão Al-Jazira – trocou a formulação de políticas no sentido da resolução dos problemas pela aceitação de crenças messiânicas que deles desviam as atenções. E que são frequentes vezes apresentadas como parte de um legado histórico que Kassir, com um grande detalhe, mostra ser inexistente. Lembra, por exemplo, que a visão da jhiad bélica, encarnada na figura do istichhadi – aquele que pede o martírio – «só tem um verdadeiro antecedente na cultura árabo-muçulmana, na seita xiita (mas não árabe) dos Assassinos», fundada em 1090 por Hasan ibn al-Sabbah. Facto que uma grande parte dos muçulmanos, bombardeada pela propaganda radical e pelas prédicas de numerosos imãs, simplesmente desconhece.

    Para muitos dos defensores da ordem obscurantista e do milenarismo mórbido que presentemente dominam esse universo múltiplo que querem transformar em uno – e para os seus complexados parceiros ocidentais, que fecham os olhos à barbárie considerando-a um aliado táctico na luta contra a globalização capitalista – falar hoje de modernidade árabe constituiria também uma quase «blasfémia intelectual». Porém, o próprio conceito de modernidade possui, tal como Samir Kassir procurou provar, uma tradição no mundo árabe, não sendo de forma alguma a expressão de um mal, de origem ocidental, diante do qual se impõe apenas a mais violenta das rejeições.

    Kassir anotou ainda, finalmente, que apesar do cerco existe uma saída, tal como existem forças capazes de procurá-la. Sublinhou assim a necessidade de «recusar Huntington» e a ideia de uma oposição violenta entre «eles» e «nós», mas também a importância de «não esquecer Lévi-Strauss», afastando a consideração de qualquer «civilização» como «superior» ou como «decadente», e aceitando sempre que «a humanidade é una, pois deriva de um fundo antropológico comum». A forma como o autor fechou o livro é um apelo que resulta particularmente dramático em função daquilo que lhe aconteceu poucos meses depois: «Que os árabes abandonem o fantasma de um passado inigualável para encararem por fim, de frente, a sua história. E, um dia, para lhe virem a ser fiéis.»

    PS – Quando do assassinato de Samir Kassir, Alain Gresh transcreveu no Le Monde Diplomatique, onde Samir colaborava desde 1981, as seguintes palavras de Elias Khoury: : «Je voudrais dire à ton assassin que le jour est proche, qu’il ne réussira jamais à tuer la liberté et la parole, sinon en nous tuant tous. Car les mots fabriqueront leurs nouveaux auteurs, la vie fleurira dans les champs, les cimetières se transformeront en portails pour la liberté». Durante o seu funeral cada um dos presentes exibia como arma simbólica uma caneta.

      Opinião

      «Desculpe lá, usted!»

      Parece-me boa a ideia de reexaminar os restos do rei fundador em condições científicas completamente diferentes daquelas que existiam no tempo de D. Miguel, senhor absoluto, quando pela última vez, num gesto de patriotismo mórbido, se procedeu à sua exumação. Para além dos possíveis resultados poderem satisfazer alguma curiosidade – o que me parece motivo mais do que suficiente para avançar com a pesquisa – eles podem vir também a constituir um factor de revisão da história pátria. Este segundo aspecto é, porém, justamente aquele que levanta mais objecções a quem possua do nosso passado comum uma concepção essencialmente sacral e povoada de mitos a preservar. Foi por isso que o médico legista Pinto da Costa, que passou parte da sua vida a remexer em cadáveres, fez conhecer a impressão que esta iniciativa lhe faz, uma vez que, para ele, «a verdade histórica está na estátua frente ao castelo de Guimarães». Já o arqueólogo Claúdio Torres sublinha a importância do mito afonsino como forma de «fundamentar o amor à pátria», defendendo um cuidado extremo nesta matéria. Um responsável do IPPAR, citado pelo Público, refere ainda o pudor necessário perante «os restos mortais de um chefe de Estado» (já agora, como se, ao tempo do rei Afonso, Portugal existisse enquanto Estado, e não como o singelo aglomerado de fidelidades vassálicas que era!).

      Por mim, acharia muito interessante que o conhecimento científico comprovasse o mito, o que quase seria como se de repente me confirmassem que Robin Hood existiu de facto. Mas consideraria ainda mais estimulante que me viessem agora dizer que D. Afonso Henriques tinha 1 metro e 60 de altura, as mãos pequeninas, uma completa ausência de sequelas físicas da guerra e, quiçá, traços não-caucasianos. Teríamos então de reconstruir a nossa memória colectiva, o que não deixaria de ser um bom exercício para a imaginação. E, muito provavelmente, o presidente Silva ver-se-ia forçado, por uma questão de honestidade, a enviar a Don Juan Carlos de Borbón y Borbón uma carta pedindo desculpa pelo enorme equívoco no qual andámos a marinar durante estes últimos 860 anos.

        Apontamentos

        Do andarilho

        As botas de Johnny Cash
        Emana uma beleza profunda de American V: A Hundred Highways, o álbum póstumo de Johnny Cash acabado de sair. Gravado à beira da morte do «homem de preto», e poucas semanas depois do desaparecimento da sua companheira June Carter, soa quase sempre desafinado, sem qualquer máscara, punjente, frágil como um sopro – mas um último sopro de vida – ao qual é impossível ficar indiferente. Porque Cash fala ali sobre o passado das estradas percorridas, dos quartos alugados, dos amores perdidos, da solidão: “I have been a rover, I have walked alone”. Mas sempre sem arrependimento.

          Novidades, Olhares

          Caminho do mar

          Mal assinalada em certos mapas, inteiramente ausente da maioria deles, a ilha utópica de Philos – concebida por Martigny, na Voyage d’Alcimédon (1789), como um república das artes e do amor – encontra-se protegida do mundo por uma geografia singular: a única parte da sua costa que não se encontra cercada por escarpas e enormes rochedos é um pequeno vale. Aí, porém, as águas são tão pouco profundas que os navios têm forçosamente de se conservar a grande distância. O único processo para alcançar a ilha será, pois, o provocar do próprio naufrágio.

            Devaneios

            Operários-leitores

            No inverno passado acordava sobressaltado, de segunda a sexta-feira, impreterivelmente às seis menos um quarto da manhã. Por essa hora de bárbaros, despertava-me a buzina de uma carrinha que passava para transportar os vizinhos ucranianos do 2º andar (ou russos, jamais saberei) até uma qualquer obra da periferia. Já desperto, levantava-me às vezes, e, por detrás da cortina, espreitava-lhes as sombras: apenas homens, os gorros até às orelhas, os pés batendo no chão para afastar o frio, vozes incompreensíveis numa algazarra imprópria para os suburbanos que, como eu, procuravam ainda dormir mais um pouco. Devido à incompatibilidade dos horários nunca nos cruzámos. E fui-me acostumando à invisibilidade da sua presença. Até ontem, quando vi que estavam de partida. Reparei então, empilhadas no elevador e à entrada do prédio, em caixas e caixas cheias de livros amorosamente embalados, grossos volumes de capa dura com títulos em cirílico, revistas com um grafismo estranho mas cuidado, dossiês com recortes de jornais – abri um rapidamente, sem que me vissem, apenas para confirmar se eram mesmo recortes de jornais – que os haviam acompanhado até aquele lugar para eles distante. Mais livros e papéis, muitos mais e mais bem tratados, posso garantir, do que aqueles com os quais tenho deparado nas casas de muitos portugueses com título académico e horários suaves.

              Apontamentos

              O vate do ano

              Ricardo
              Conan Doyle e Albert Camus foram goalkeepers de futebol, desporto ao qual dedicavam horas de preocupação e entusiasmo. Nabokov sempre desejou muito sê-lo. Andoni Zubizarreta Urreta, o basco espadaúdo, amante de ópera, que por mais de uma década defendeu sem rival à altura a baliza de Espanha, mantinha conversas que, a acreditar naquilo que nos conta Javier Marías, «eram só de Joyce para cima». Durante tantos minutos em campo como espectadores solitários, e tal como tem acontecido com pastores e faroleiros, é provável que alguns guarda-redes desenvolvam a imaginação criadora. Não me espanta por isso que Ricardo – o sensível montijense capaz de se concentrar na sua missão fixando, como recordou, «aquele português pequenino, completamente só num mar de ingleses» – tenha podido conceber um poema épico em cinco minutos.

              Adenda do escritor e jornalista brasileiro Nelson Rodrigues (1912-80):
              «Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes, num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol e, numa palavra, a derrota.»

                Etc.

                O diletante

                Escreveu Eça, na Correspondência de Fradique Mendes, que o diletante «corre entre as ideias e os factos como as borboletas correm entre as flores, para pousar, retomar logo o voo estouvado, encontrando nessa fugidia mutabilidade o deleite supremo». No mundo em busca de explicações plausíveis, atribui-se-lhe sempre uma etiqueta de má-nota. O Houaiss diz mesmo que ele exprime uma «atitude imatura, de amador, em relação a normas de ordem intelectual ou espiritual». Mas se o diletante, como a borboleta, pousa aqui e acolá de forma aparentemente gratuita, é porque procura alguma coisa. E achando-a, nunca a rejeita. Conhece por isso mais coisas, e escolhe melhor aquelas que deseja.

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                  Regresso ao passado

                  Mao por Warhol

                  A história da esquerda radical em Portugal começa a ser feita. Exceptuando estudos ainda dispersos e preambulares, a regra, porém, tem sido a produção de generalidades, introduzidas em obras de referência, e de reportagens, de teor mais ou menos anedótico ou sensacionalista, sobre o «glorioso passado revolucionário» de ministros, deputados e outras figuras públicas. E se as abordagens compreensivas daquele universo são raras, mais raros ainda são os testemunhos fornecidos pelos seus actores directos. A publicação de Conquistadores de AlmasMemórias de uma militância e prisões políticas (1970-1976), da autoria de Pinto de Sá (Guerra & Paz, 2006), sugere uma mudança neste panorama.

                  Trata-se de um volume demasiado extenso para aquilo que tem para dizer, povoado de detalhes e de redundâncias que, por vezes, só não se tornam irrelevantes porque o livro se assume como um esforço confessional, exaustivo, que se pretende documentado, de ajuste de contas com o passado. Certos aspectos transformam-no, porém, em obra que merece ser lida com alguma atenção.

                  Desde logo um factor perturbante: estas são as memórias de um «traidor». Alguém que integrou uma franja da oposição ao Estado Novo, mas que, confrontado com a prisão e o interrogatório da PIDE, rapidamente transigiu com os valores que defendera, fornecendo à polícia informações que possibilitaram outras prisões e o transformaram num seu informador activo e diligente. Facto que Pinto de Sá (PdS) tenta explicar pela interferência de uma capacidade de «conquista das almas» e de «massacre de personalidades» que a PIDE teria mantido. Esta experiência corresponderá a um fragmento do passado que outros portugueses partilharam e que não deixa de integrar o nosso lastro histórico. De facto, nem todos possuíam a mesma capacidade física, emocional e política para resistir à polícia: muitos sobreviveram a essa provação renegando as convicções e integram hoje a nossa sociedade democrática. Mas nem por isso a sua memória deve ser apagada.

                  Parte da originalidade do livro encontra-se também na forma como este testemunha o processo de politização de um estudante universitário comum, quase sem referências políticas e culturais prévias. Mostram-se traços do início do processo de revolta que são comuns a grande parte da juventude urbana que emergiu nos anos 60 («a minha idade de contestação começou um dia em que ouvi na rádio o “Satisfaction” dos Rolling Stones», p. 18). Mas o mais importante é, neste aspecto, a descrição pormenorizada da gestação e nascimento de um «jovem maoísta», que ia balançando entre leituras apressadas e nem sempre compreendidas de alguns textos clássicos do marxismo e do leninismo, a imersão num activismo frenético e muitas vezes sem norte, e um desejo de aproximação às «massas» e ao «povo», sempre distantes e fortemente idealizados.

                  Esta situação terá suscitado situações inquietantes, das quais é um bom exemplo a de PdS. Aquilo a que ele chama de «estado de paranóia” (p. 149) constitui, de facto, algo de notável no processo de formação da esquerda radical – e em particular na sua vertente maoísta – durante as décadas de 1960-70. A partir da experiência pessoal, aborda a discrepância entre a forma triunfalista como os jovens radicais imaginavam o desejo de mudança das «massas», o estado organizativo daquela que se considerava parte da sua suposta vanguarda, e a efectiva realidade sociológica e política. À compreensão deste aspecto associa, aliás, uma parte da argumentação que usa para explicar a sua traição, uma vez que, a dado momento, se apercebe finalmente do isolamento: «contrariamente aos elementos do PCP, (…) que se sentiam parte de metade da Humanidade e em regra tinham muitos laços afectivos e familiares com tradições de oposição ao regime, eu estava só» (p. 189).

                  Deste distanciamento parte também a crítica que faz da atitude de crença no derrube da ditadura por parte de um sector que partilhava igualmente de uma outra concepção ditatorial do exercício do poder, partilhando «ideologias que foram em grande parte responsáveis pelo século mais sangrento da História» (p. 302), minimizando PdS essa vertente da oposição ao regime salazar-marcelista. Fica pois, no ar, a ideia de que todo aquele numeroso grupo de jovens – já agora, eles eram muitos mais do que aqueles que invoca, pois o grupo ao qual pertencia (o CCR-ML) foi porventura um dos mais circunscritos dos agrupamentos maoístas – ter-se-á batido por uma causa sem sentido e condenada a ser execrada pela História. Prestando maior atenção às circunstâncias do processo histórico PdS perceberia que, podendo ser essa uma leitura contemporânea, no tempo e no meio em que emergiu ela correspondeu a uma forma empenhada e generosa de combater a ditadura. Contribuindo, ainda que em escala reduzida, para adensar uma rejeição que o 25 de Abril levou depois às últimas consequências.

                  Com alguma solidez interpretativa, com investigação suplementar sobre movimentos congéneres e sobre a própria realidade estudantil, com uma escrita mais cuidada e menos repetitiva, PdS teria, por certo, produzido um livro bastante mais útil e interessante. O que não significa que, enquanto testemunho vivido e sincero de uma época, deixe de ter utilidade. Servindo ainda, provavelmente, para exorcizar alguns fantasmas.

                    Memória

                    Motel

                    Motel
                    Luzes frágeis pelas quatro da madrugada. Os corredores vazios. De tempos a tempos, alguns passos, a porta que bate, água pelos canos, vozes que parecem palavras. Sem som, o televisor passa imagens indecifráveis. Lá fora, alguém desliga os faróis de um carro. Uma aparência de solidão.

                      Devaneios, Ficção

                      Como o mapa de uma ilha

                      Conta Pierre Kalfon que num certo dia de Abril de 1964, durante uma brevíssima passagem por Paris, Guevara almoçou descontraidamente numa pizzaria do Boulevard Saint-Michel, passeando depois junto da Sorbonne. De repente, na Rue des Écoles, alguém reparou no seu inconfundível aspecto – a barba rala e desalinhada, a boina preta e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que ia ao seu lado: «Tu repara no descaramento daquele tipo ali, a tentar imitar o Che Guevara.»

                      Desde muito cedo que a pessoa de Ernesto de la Serna se viu colada ao ícone que transcendia já o corpo terreno e se definia muito para além do seu lugar objectivo na história. De início, e durante anos, ele ganhou vida e manteve-se no espectro das crenças que definiam as possibilidades de erguer um mundo outro. Esse o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com um certo sentido de missão ou necessidade de reconhecimento tribal, ainda transportam em pins e t-shirts. Depois viu desdobrado o seu nexo de sentidos, que passou a remeter para algo de não objectivamente capturável, reunido no conjunto imenso de sinais dos quais se servem os imaginários de fuga. Um pouco como o logotipo dos cigarros Camel ou o mapa de uma ilha das Caraíbas na publicidade colorida a uma marca de rum. Para os quais olhamos sem grandes conjecturas, pensando apenas na viagem definitiva, libertadora, que sempre desejámos.

                        Olhares

                        Cinefilia em sonhos

                        chien andalou
                        Folheava num quiosque um diário espanhol quando um pormenor me chamou a atenção: uma pequena crónica sobre o mundo de futebol abria, de forma inusitada, com uma dupla dedicatória a Luis Buñuel e Sofia Loren. Afinal, que coisa teria passado pela cabeça do jornalista para juntar aquela epígrafe de recorte nostálgico a um texto que falava basicamente do interesse pelo hip hop de um rematador merengue? Apenas fui capaz de imaginar o autor, em noite de insónia e crise de ideias, incapaz de encontrar tema para o artigo que na manhã seguinte deveria impreterivelmente entregar. Adormecendo exausto, por fim, para acordar em sobressalto com a cena do olho retalhado a golpe de lâmina do Chien Andalou. Adormecendo de novo para ver surgir a Loren, em todo o seu antigo esplendor, beijando-o na testa e segredando-lhe o tema da crónica.

                          Devaneios

                          Ópio do povo

                          Em entrevista ao suplemento Mil-Folhas, Ali Ahmad Said Esber, o poeta sírio de pseudónimo pagão (Adónis), declarou não existir futuro sem laicidade: «O que complica o progresso, em relação à religião, é que enquanto fé real, revelação, terminou há muito tempo, está acabada. O que chamamos religião é hoje uma ideologia política». Acrescentando uma evidência: «É possível discutir com um homem de fé, mas com um homem que transformou a sua fé religiosa em ideologia não se pode discutir». Uma boa mensagem para entregar aos nossos cegos ensandecidos, que confundem as tiranias sinalizadas pela bandeira do crescente com os destinos de um mundo islâmico imenso, diverso e afinal tangível.

                            Apontamentos, Democracia, Recortes

                            Dormires

                            soneca
                            Não me espanta a ausência de resposta visível às iniciativas da Associação Portuguesa dos Amigos da Sesta. Sei que, há meses atrás, esta ainda conseguiu reunir em Estremoz uma «Conferência Nacional», na qual um dos presentes elogiou a sua prática como «postura natural e salutar, restauradora de energias», renegando o seu entendimento como «vício de preguiçosos e de fuga ao trabalho». Não espanta, por isso, que a maioria dos portugueses se alheie da causa. «Legalizar a sesta?», pensamos logo, indignados. «Mas perdia toda a piada!» É muito mais estimulante roubá-la ao chefe, dormi-la num intervalo do trabalho, deslocá-la no horário para quando der jeito, transformá-la numa informal soneca consumada por aqui ou por ali. É-nos, por isso, profundamente estranha uma atitude como a tomada pela selecção espanhola de futebol, que no Mundial da Alemanha decidiu acordar mais cedo para poder fruir todos os dias da indispensável siesta. Por algum motivo, de facto, a história nos separou.

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                              partida
                              No livro de bolso Arte de Viajar, Alain de Botton recorda a forma como Baudelaire se sentiu continuadamente atraído pelos portos e pelas docas, pelas estações de comboios, navios e quartos de hotel. Parecia sentir-se melhor, mais em sua casa, nos lugares de passagem, nas escalas das viagem. Nos instantes em que se achava «acabrunhado pela atmosfera de Paris», sempre que o mundo em que vivia lhe parecia demasiado monótono e pequeno, partia, partia então, «partia pelo amor da partida». E viajava. Viajava nem que fosse até um porto ou uma estação de comboios próximos. Aí chegado, deixava-se ficar na previsão das infinitas viagens, imerso nessa poesia «da partida» que demarcava a presença no mundo.

                              Existem pessoas assim. Que se aborrecem de morte em Nova Iorque, Seul ou Barcelona, que querem ir mais além, sempre mais, mais além, experimentando uma espécie de prazer, de profundo mas íntimo prazer, na simples antevisão da partida, na imaginação do momento de se lançarem ao caminho, na concepção das paisagens correndo sem cessar. Jamais saberão permanecer imóveis, esperando passivas, aceitando em silêncio os horizontes que não mudam.

                                Olhares