Operários-leitores

No inverno passado acordava sobressaltado, de segunda a sexta-feira, impreterivelmente às seis menos um quarto da manhã. Por essa hora de bárbaros, despertava-me a buzina de uma carrinha que passava para transportar os vizinhos ucranianos do 2º andar (ou russos, jamais saberei) até uma qualquer obra da periferia. Já desperto, levantava-me às vezes, e, por detrás da cortina, espreitava-lhes as sombras: apenas homens, os gorros até às orelhas, os pés batendo no chão para afastar o frio, vozes incompreensíveis numa algazarra imprópria para os suburbanos que, como eu, procuravam ainda dormir mais um pouco. Devido à incompatibilidade dos horários nunca nos cruzámos. E fui-me acostumando à invisibilidade da sua presença. Até ontem, quando vi que estavam de partida. Reparei então, empilhadas no elevador e à entrada do prédio, em caixas e caixas cheias de livros amorosamente embalados, grossos volumes de capa dura com títulos em cirílico, revistas com um grafismo estranho mas cuidado, dossiês com recortes de jornais – abri um rapidamente, sem que me vissem, apenas para confirmar se eram mesmo recortes de jornais – que os haviam acompanhado até aquele lugar para eles distante. Mais livros e papéis, muitos mais e mais bem tratados, posso garantir, do que aqueles com os quais tenho deparado nas casas de muitos portugueses com título académico e horários suaves.

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