♪ A/O poeta
Música: Max Richter – Maria, The Poet (1913) [Memoryhouse]
[audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/12/richter-max-maria-the-poet-1913.mp3]
Música: Max Richter – Maria, The Poet (1913) [Memoryhouse]
[audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/12/richter-max-maria-the-poet-1913.mp3]
De acordo com a revista Exame Informática, um tal Centro de Estudos da Toshiba considera que durante este ano terão sido vendidos em Portugal cerca de um milhão de computadores portáteis. O mesmo organismo estima que existam neste momento à roda de 2 milhões de portáteis em funcionamento nas casas e nas empresas portuguesas. Tratando-se de um país de cerca de 11 milhões de habitantes, o número é de facto impressionante, ainda que não tanto quanto o dos telemóveis, que ronda já os 15 milhões. Mas se neste caso a quantidade anunciada é perfeitamente plausível, dado o número de aparelhos inactivos ou obsoletos que permanecem registados, no que respeita aos computadores o anúncio tem a ver com uma vaga recente. A minha profissão situa-me numa área de actividade na qual a integração do computador no quotidiano das pessoas é das mais elevadas, mas ainda assim não me parece que a percentagem de infoincluídos – inserindo-se nestes aqueles que ainda usam computadores antigos, lentos e com sistemas operativos rançosos – seja sequer comparável à avançada pelo estudo da Toshiba. Por esse motivo, arrisco dizer que ela mais parece uma manobra para que o público passe a aliar à compra do portátil a mesma imagem que em tempos foi associada aos telemóveis: quem não possui um verá bastante diminuído o seu grau de prestígio e a sua capacidade de integração na sociedade de mercado, e quem puder afagar o touchpad com o obsceno dedo médio sentir-se-á um conquistador.
O facto desses países viverem subordinados a regimes despóticos, autoritários ou populistas não justifica que se silenciem os dados conhecidos: depois de Cuba e da Venezuela, a Bolívia é o terceiro país da América Latina a proclamar a erradicação do analfabetismo (e o próximo a juntar-se ao clube deverá ser o Paraguai). Poderão os que o proclamaram não ter em conta a dimensão e a fácil reincidência do «analfabetismo funcional», poderão cantar uma vitória à maneira de Kruchtchev quando decretou o triunfo definitivo do «comunismo integral», mas seja como for trata-se de uma meta positiva que foi alcançada. Sob este aspecto, demonstrando que determinados objectivos se alcançam com pouco dinheiro pois dependem essencialmente da vontade política de quem governa e da mobilização dos cidadãos, deram uma bofetada na cara dos cordatos governantes democráticos que se limitam a empurrar os menos preparados para fora dos seus projectos de desenvolvimento. Com direito a pensão de sobrevivência, naturalmente.
Os problemas de tesouraria das instituições universitárias – ou, mais concretamente, a gradual desresponsabilização do Estado em relação aos custos de manutenção do ensino superior público – têm forçado todas elas a prodígios de engenharia financeira e a alguns cortes dramáticos. Como sintoma de que o alerta vermelho se encontra activado, até 5 de Janeiro a Universidade do Minho irá mesmo desligar a corrente eléctrica e reduzir ao mínimo a segurança e a limpeza em diversas instalações. Mas determinadas medidas são de deixar qualquer cidadão com a impressão de que existe qualquer coisa de errado na definição daquilo que deve ou não ser prioritariamente cortado. De acordo com o Público, o Instituto Politécnico de Portalegre decidiu, por exemplo, diminuir o número de banhos dos estudantes que vivem nas residências universitárias. Suspeito que aquilo que assim se poupar acabará por ser dispendido em desodorizante ambiental ou com custos de saúde, e tenho a impressão de que este tipo de medida apenas costuma ocorrer em tempo de guerra ou de catástrofe natural, mas a gestão do IPP lá avaliará as suas prioridades.
Uma das mais enfadonhas canções de Natal – que escuto sempre com uma certa sensação de entorpecimento físico e mental – é também uma daquelas que mais continua a ouvir-se como fundo sonoro dos corredores dos pequenos, médios e grandes centros comerciais para o mês de Dezembro. Tanto tempo depois de surgir, em 1942, no musical Holiday Inn (um filme só com brancos que a televisão portuguesa de canal único passou dezenas de vezes), White Christmas, de Irving Berlin, permanece, na voz branda e xaroposa de Bing Crosby – ou em outras mil versões –, como «sinónimo de Natal» e um dos temas fora do tempo que, a par da Silent Night ou de Let It Snow, somos forçados a ouvir até à náusea nas voltas consumistas que a quadra nos obriga a dar. Nada tenho contra o Natal e o seu «espírito», mas, honestamente, preferia vivê-los ao som de Paranoid.
Para Frantz Fanon, os «condenados da Terra» não se insurgem apenas contra a miséria e a fome, mas também contra a contínua humilhação a que são submetidos. A sua lição não foi no entanto assimilada por aqueles a quem, no que ainda há pouco tempo era o território do Estado-Providência, competia assegurar a moderação dos desequilíbrios sociais e a integração daqueles que eram empurrados para a exclusão. Então, quando a ira coletiva sobrevém, os obstáculos a desmantelar pelos revoltados não podem ser escolhidos de forma racional. Quando fala das condições de emergência nas sociedades contemporâneas de uma nova forma de guerra civil, Hans Magnus Enzensberger relembra trechos de uma destruição que se revela exprimindo «a raiva pelas coisas intactas, o ódio a tudo aquilo que funciona.» Pelo caminho dessa rebelião em estado puro, geralmente praticada em horda, tudo é reduzido a escombros: o mobiliário das salas de aulas é destruído, os pneus são furados, os automóveis incendiados, os sinais de trânsito inutilizados, os jardins ficam cheios de fezes e de urina, os telefones de emergência são inutilizados com alicates, as vidraças das pequenas lojas são partidas à pedrada, os quiosques são assaltados, grafitti cobrem as paredes com frases que se amontoam e se anulam umas às outras. É verdade que, muito provavelmente, a maioria não quer a destruição, mas, como nota ainda Enzensberger, «a maioria é muda, ninguém lhe presta atenção, sempre que tem oportunidade vira as costas à luta e foge». Refugia-se então nos seus lares, por detrás dos monitores onde se reproduz, a uma distância segura, o tumulto que ficou na rua. E esfrega as mãos de contentamento, imaginando que lhe escapou. (mais…)
A mais extrema miscigenação cultural já chegou aos nossos call-centers. Hoje atendeu-me uma menina da «assistência ao cliente» da Zon que combinava claramente, e com toda a tranquilidade, a fala da zona sul da cidade de Dnipropetrovsk com o mais lídimo sotaque tripeiro da freguesia de Santo Ildefonso. Para além de me ter falado umas vinte vezes da necessidade de «restauracionar» o software.
A frase vinha no Avante! em artigo não assinado: «Que em Portugal existiu uma ditadura fascista é um facto que muitos «historiadores» tentam, hoje, negar. Nas estantes das livrarias, abundam biografias do ditador Salazar e de inspectores da PIDE – sempre «neutras» e observando, sempre, o lado «humano» dos biografados.» Assim se retoma a tónica de deturpação e de má-fé na qual o PCP tem insistido a propósito do tema.
Deturpação porque não é possível conhecer historiador algum – se se excluir uma ou outra figura que possa manter uma posição de proximidade política em relação ao defunto regime – que rejeite liminarmente a existência de um «fascismo português». Aquilo que se pode encontrar, isso sim, são investigadores que sustentam o facto do salazarismo e do Estado Novo, no seu tempo e no seu lugar, pouco terem a ver com a definição filosófica, política, sociológica e orgânica do fascismo italiano e das suas réplicas. E que, por esse motivo, preferem não o qualificar tecnicamente como um fascismo. Mas tal não significa o branqueamento dos delitos do regime ou uma percepção simpática da sua natureza. Se pessoas dessas existem com obra publicada e reconhecida academicamente, então palavra de honra que gostaria muito de saber quem são elas. Apenas por curiosidade.
Existe também má-fé quando se fala de biografias que «abundam» de «inspectores» da PIDE quando se sabe que apenas uma foi editada, a biografia de Fernando Gouveia, da autoria de Irene Flunser Pimentel, e que em momento algum esta procede a uma qualquer lavagem pública do carácter e da intervenção profissional desse indivíduo. Meses após a sua publicação, continuar a afirmar tal coisa não é admissível a não ser com uma intenção pré-definida de denegrir, sem sequer o citar com clareza e propriedade, o trabalho de investigação da autora, uma vez que, entretanto, foi possível ler-se o livro e perceber-se que em momento algum nele se dá uma imagem agradável do pidesco torcionário.
Detecta-se ainda na frase do jornal um pressuposto que se situa algures na fronteira entre o disparate e a ignorância. O processo de construção da história não é «puro» ou «apolítico», mas não é por isso que deve deixar de mostrar os aspectos do passado vivido que tem a possibilidade de documentar, assim desvendando a complexidade do mundo do qual se ocupa e a das pessoas que o fizeram. Calígula como Átila, Torquemada como Robespierre, Goebbels como Beria, não foram monstros alados, ou criaturas verdes com garras e chifres, mas seres, tão humanos quanto nós, que em determinadas circunstâncias puderam cometer actos terríveis, e a complexidade das suas vidas integra muitos momentos nos quais eles não se distinguiram dos outros humanos. Foi aliás através destes, e não por actos de mero desvario, que acederam ao poder. E é a compreensão dessa duplicidade que torna as suas personalidades ainda mais perturbantes. O denso retrato psicológico de Hitler feito por Alan Bullock, ou a exibição do lado folgazão do jovem Estaline que expõe a biografia de Simon Sebag Montefiore, não enunciam a adesão ou a aversão dos autores diante dos biografados: eles são antes esforços de compreensão de perfis e de circunstâncias. O Avante! poderá indicar algum historiador profissional, português ou alienígena, que negue publicamente o valor cultural e científico deste tipo de trabalho? Se sim, gostaria também de o conhecer.
Independentemente do apreço que me merece o seu primeiro mentor – no meio de outras boas razões, não esqueço, desculpem lá a pirosice, que ainda ouvi a Voz da Liberdade num rádio de pilhas e cantarolei E alegre se fez triste enquanto seguia de comboio para uma breve clandestinidade – declaro à cabeça que não aprecio particularmente o dialecto «alegrista». Ele conserva parte do reservatório temático do antigo ideário republicano e um «sentimentalismo de esquerda» que assenta mais na declaração mais ou menos nostálgica de princípios vagos do que num programa para a acção. Também me incomoda um pouco um discurso algo moralista que declara, e certas vezes alardeia, uma heráldica de valores cujo sentido a larga maioria dos cidadãos com menos de quarenta anos tem dificuldade em decifrar e, sobretudo, em utilizar. E, no entanto, tendo a olhar com simpatia o eventual aparecimento de uma força que, não oferecendo ao «alegrismo» um lugar central mas incorporando a lógica de anti-aparelhismo e de humanização da governação que lhe permitiu um tão flagrante apoio nas últimas eleições presidenciais, nos possa libertar do círculo vicioso dos símbolos repetidos. E que nos limpe, nem que seja apenas por algum tempo higiénico, da mancha de prepotência, sem desígnio ou vitalidade política, de um «blairismo» de fim-de-festa que o PS de José Sócrates tem continuado a destilar como uma peste. Basta essa vaga expectativa para justificar alguma atenção ao que parece mover-se no horizonte.
Alguns jornais dizem a verdade mas não dizem toda a verdade. Uma parte da verdade é esta: «Professores universitários formaram uma cadeia humana em torno do edifício da Universidade de Atenas.» O complemento desta verdade parcial é o seguinte: aqueles professores, pelas imagens televisivas quase todos com mais ou bem mais de cinquenta anos – pois não é apenas o corpo docente do ensino superior português que está a ficar preocupantemente envelhecido –, formaram o cordão para defenderem a sua escola. De quê? Da pilhagem e da destruição, imposta por alguns bandos que debaixo da capa de impunidade criada pela actual situação insurreccional se preparavam para assaltar, e provavelmente vandalizar, as instalações da Universidade. O seu trabalho e o lugar da sua da actividade diária estavam em causa, e alguns, particularmente perturbados pela emoção, declararam aos jornalistas que por aquela missão não se importariam de dar a vida. Um exagero, claro, mas nestes momentos conservar a calma e procurar uma retórica de convencimento nem sempre é fácil.
Hoje não fui «para Tábua», mas parei à beira da estrada para almoçar num daqueles restaurantes onde é sempre possível encontrar um certo e determinado padrão de português: aquele para quem os prazeres da vida não mudaram muito desde os tempos do Doutor Oliveira do Vimieiro. O bacalhau com todos continua a ser o bacalhau com todos, a Água das Pedras a Água das Pedras, o Benfica o Benfica, e o leitão da Bairrada o leitão da Bairrada. Parei pois a pileca num daqueles comedouros nos quais, logo à entrada, percebemos não estar na Finlândia ou em Singapura: homens morenos, de bigode farto e fato domingueiro, em idade de pré-reforma, as esposas com aspecto de esposas a quem o caro-metade apresenta sempre como «a minha senhora» (para não a confundirem com «a outra»), nem um único jovem à vista e meia dúzia de crianças com ar de quem espera desesperadamente por crescer para se livrarem daquela chatice domingueira.
Claro que eu ia também à procura do meu pleonástico lacãozinho, mais a sua pele crocante, mas tive um mau pressentimento quando vi à entrada um grande pano anunciar o «Convívio de Natal dos Amigos dos Mercedes». E mal entrei no estacionamento reparei no contraste entre a minha viatura utilitária amolgada do lado direito e a enorme quantidade de automóveis orgulhosamente reluzentes – prateados, brancos, pretos, grenás – da mesma marca da qual a Janis Joplin pedia ao Senhor um só para si («Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz? / My friends all drive Porsches, I must make amends»). Mas sou um bocado distraído e não liguei. Lá dentro, contudo, percebi logo que a fauna era outra que não a costumeira: homens morenos, de bigode farto e fato domingueiro, em idade de pré-reforma, mas todos com os sapatos convenientemente limpos e reluzentes, as esposas com aspecto de esposas a quem o caro-metade apresenta sempre como «a minha senhora» (para não a confundirem com «a outra») ostentando vistosos colares de pérolas, nem um único jovem à vista e meia dúzia de crianças com ar de quem espera desesperadamente por crescer para se livrarem daquela chatice domingueira. O ruído era enorme, o cheiro a perfume era intenso, a única mesa livre ficava junto aos lavabos, e não tive outro remédio senão dar meia volta e partir à procura de outro poiso. Trauteando mentalmente: «Worked hard all my lifetime, no help from my friends, / So Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz?». Não há nada como um domingo de chuva na estrada. E não há país como o meu.
Não sei como é possível falar-se tanto da Grécia e dos seus problemas contemporâneos sem evocar, ainda que en passant, a mensagem subliminar e eterna dos roqueiros progressivos filhos de Afrodite. Lançada em 1968, recapitule-se, nos tempos sombrios dos coronéis de Atenas.
[wpvideo 9k6iGrjr w=320] |
Pela forma como procuraram um mundo diferente, assente sobre os escombros daquele que conheciam, talvez os adeptos da Quinta Monarquia tenham sido antepassados remotos dos jacobinos e dos bolcheviques. Em Inglaterra, durante as grandes agitações dos meados do século XVII, irromperam como o primeiro movimento milenarista organizado e com um programa político, inaugurando a tradição revolucionária moderna dos apóstolos armados e inflexíveis, resolvidos a tudo para consumarem um destino do qual acreditavam ser os únicos intérpretes. Igualitaristas, foram buscar ao profeta Daniel e ao Livro da Revelação – como mais tarde, embora de um modo mais subtil, entre nós o fará o Padre António Vieira –, a previsão de uma inversão abrupta, apocalíptica, da ordem existente, substituída por uma outra, de origem divina e verdadeiramente preocupada com a equidade humana. Capaz, como tantas vezes se acreditou em outros momentos de emergência de crenças quiliásticas, de materializar «um reino de mil anos». A nova ordem instituída passaria então pela aplicação de reivindicações básicas, destinadas, num mundo feroz e ainda sem a intervenção mediadora do Estado-Providência, a promover a «justiça»: a protecção pública dos pobres, das viúvas e dos órfãos, a redução dos impostos e o desaparecimento das taxas de circulação, a libertação daqueles que haviam sido presos por dívidas, uma reforma do governo que promovesse a igualdade na riqueza, a única que então era possível conceber. A esta seria possível chegar recorrendo à acção purificadora dos deserdados, consumada através de uma violência sem quartel. Numa vertigem de sangue e destruição praticada sobre todos os que sustentavam a desigualdade ou que perante ela se resignavam. O movimento foi derrotado, mas o essencial da ideia regeneradora e radical que alimentou não se extinguiu inteiramente. Como se pode verificar pelas notícias que nos chegam.
O último número da Visão/História tem como tema «Cuba – 50 anos de Revolução». Trata-se de um conjunto de artigos, testemunhos e cronografias que conduzirá alguns leitores a uma revisitação da memória da tomada do poder pelos rebeldes da Sierra Maestra e dos anos inaugurais da sua experiência de poder. Para a maioria deles, porém, não produzirá esse efeito: servirá sobretudo de utensílio para se entender um pouco melhor uma das experiências colectivas mais importantes, controversas e perenes do último meio século.
A revista tem algumas falhas, evidentemente. Desde logo a inexistência de um texto apologético do regime. E não seria difícil encontrar quem o escrevesse de boa vontade. Dado o magnetismo que a experiência cubana ainda conserva, ele deixaria perceber/ler uma perspectiva mais fideísta. Já o artigo sobre o Che é um tanto insípido, quase omitindo o seu lado autoritário, a importante dimensão carismática e o ascetismo insubmisso dos últimos tempos. E ficam por tratar as suas crescentes divergências com Fidel, que o regime de Havana faz por apagar. No entanto, em parte foram elas que levaram Ernesto Guevara a deixar Cuba a caminho do seu mandato internacionalista. O testemunho do ex-embaixador Alfredo Duarte Costa – lamentável no modo como enfatiza o trato cortês de El Comandante, que conheceu em privado, como sinal de que as críticas de que este tem sido alvo «pouco ou nada têm a ver com a realidade» –, nega até essa incompatibilização, dando como prova a sua carta formal de despedida e o testemunho-mantra da «viúva oficial». Para se perceberem melhor os limites desta «argumentação», bastará a leitura da biografia do Che escrita por Pierre Kalfon. Negativo é ainda o facto da repressão sistemática sobre a dissidência interna ser mencionada de forma demasiado suave.
Estes reparos não são suficientes para anular o interesse da publicação. Para além de um reconhecimento útil de dilemas actuais, nela se ouve ainda, em diversos momentos, o eco da enorme e quase consensual simpatia com a qual, nos inícios da década de 1960, uma grande parte de elite intelectual e da juventude portuguesa da classe média olhava a revolução, empolgante e única, protagonizada pelos barbudos. No testemunho que prestou à revista, Nuno Teotónio Pereira evoca o modo como correram as coisas em 1963, no Congresso da União Internacional dos Arquitectos que teve lugar em Havana e ao qual assistiu. Não escondendo o entusiasmo que então se sentia no ar e que partilhou, recorda: «Regressei a Portugal sem fazer a barba. Até hoje.»
Entre nós corresponderia apenas ao exercício de um direito. Mas trata-se de uma petição lançada por mais de trezentos proeminentes cidadãos chineses, e na China – esse paraíso do capitalismo selvagem e da desigualdade que vive silenciado pelas estruturas repressivas do «socialismo de Estado» – é considerada pelas autoridades como criminosa. O que mais tarde ou mais cedo deixará de acontecer: assim a Carta 08 – que aqui se reproduz – encontre uma receptividade pública idêntica àquela que teve a Carta 77 na velha Checoslováquia.
A pergunta já circula por aí. E só os nomes e as funções vão variando consoante os lugares. Se «eles» podem picar o ponto e dar de frosques sem qualquer problema, porque não o podem fazer também o Sr. Cipriano da portaria e a D. Ermelinda das fotocópias?
Os obituários nem sempre lembram apenas pessoas que se foram embora sem avisar. Evocam também aquelas que foram partindo sem que o percebêssemos, vergadas e silenciadas, sempre demasiado cedo, ao peso dos anos, da saúde e do esquecimento. Até chegarem a uma ausência em vida que antecipou a anunciada morte. Então revemo-nos revendo-as, temendo e tremendo, e calando-o até para nós próprios, pelo nosso futuro.