Author Archives: Rui Bebiano

Um mau sinal

Infelizmente, é já absolutamente normal, e até expressão de uma certa forma de coerência, que, em nome dos «sagrados princípios do internacionalismo», o PCP convide os bandidos armados e narcotraficantes das FARC ou os oligarcas, delatores e torcionários do partido único da Coreia do Norte – para além dos representantes dos regimes totalitários cubano ou bielorusso e de outras forças consabidamente antidemocráticas – para a sua Festa do Avante!. O que me parece mais preocupante é que a opinião pública de esquerda considere o facto de somenos importância e abandone a denúncia deste tipo de situação nas mãos dos sectores conservadores ou mesmo dos descendentes da velha direita. As preocupações a propósito das liberdades fundamentais e a decência política mais elementar parecem, uma vez mais, submergir por estes lados diante de pequenas prioridades tácticas. Um mau, ou um péssimo, sinal.

Vejam-se as posições – muitas delas no sentido que refiro acima – que são inventariadas pelo Tiago Barbosa Ribeiro num dos seus posts sobre este assunto.

    Atualidade, Opinião

    EPC

    A minha atitude diante da presença pública e do trabalho de Eduardo Prado Coelho (nascido em 1944 e morto hoje de forma súbita) foi oscilando sempre entre a admiração, pela constância da sua atitude pedagógica de polemista e intelectual empenhado (dos últimos, talvez), pela sensibilidade de muitos dos seus textos também, e a impaciência, motivada por atitudes aparentemente inexplicáveis de parcialidade, rejeição ou mesmo jactância que certas vezes exibia. Seja como for, e isso é o mais importante, e isso é aquilo que fica, EPC – como era, tantas vezes, impessoalmente chamado – manteve ao longo de vida uma atitude, de certa forma exemplar mas infelizmente rara, de intervenção crítica e de independência no campo largo da atitude cultural, do combate de ideias e da vivência da cidadania. Por isso, pelo que disse, escreveu ou deu a conhecer, foi sem dúvida, como escreveu Eduardo Pitta, o intelectual português mais influente dos últimos 25 anos. Vai fazer-nos bastante falta.

      Etc., Olhares

      Aquela vontade de ir

      Image Hosted by ImageShack.us

      A poucos dias de se perfazerem cinquenta anos sobre a sua saída em 5 de Setembro de 1957 para as livrarias americanas, um pequeno dossiê do suplemento Ípsilon rememora o impacto da primeira edição portuguesa de On the Road, de Jack Kerouac, lançada em 1960 pela Ulisseia com o título Pela Estrada Fora (numa tradução de Hélder dos Santos Carvalho, morto novo quando vivia em França a sua própria experiência «na estrada»). Num volume da colecção Découvertes Gallimard, Alain Dister sublinha o desconforto da viagem à boleia – ou em auto-stop, como se lhe referiam os jovens portugueses «francófilos» da década de 1950 –, relembrando a fadiga, o desconforto, o aborrecimento, o frio, a chuva, o perigo, mas recorda também como, para a geração que tomou On the Road como bíblia da perpétua deslocação, tudo isso era facilmente trocado pela sensação de liberdade, de procura e de vertigem que esta sempre possibilitava. A estrada de Kerouac, na sua imensidão, na melancolia dos cenários imutáveis ao longo de centenas de quilómetros, mas também no inesperado que a qualquer instante a podia cruzar, transformava-se na grande metáfora para uma vida em movimento que uma parte da juventude americana e europeia das décadas de 1950-1960 antevia como cenário da descoberta da felicidade, mas que fechará simbolicamente em 1969, com Easy Rider, o road movie de Dennis Hopper marcado já pela visão desencantada, pós-hippie, do fim da utopia.

      O destaque dado neste conjunto de artigos a alguns portugueses que, por aquela época, perseguiram essa bela quimera, faz todo o sentido. Mas o que não é referido, e que por isso valerá a pena lembrar, é que num país periférico, silenciado e fechado ao exterior como o era Portugal na altura, esse desejo de evasão pela viagem se processou principalmente por vias bem diversas da procura individual e descomprometida dos membros da beat generation e dos seus discípulos. Aqui, para a esmagadora maioria das pessoas, e principalmente para os jovens urbanos e com alguns estudos, quando até a própria boleia era olhada com desconfiança por boa parte da sociedade e pelas autoridades, a vontade de fuga materializava-se principalmente nos consumos culturais possíveis – em especial naqueles mais solitários, proporcionados pela leitura, pela música, ou, em menor escala, pelo cinema – ou, no limite, na experiência da fuga através da imaginação de locais idealizados a partir de referências físicas que iam de Nova Iorque e Paris a Moscovo e Pequim. Os nossos beatniks ter-se-ão contado pelos dedos e permaneciam invisíveis, por muito que hoje se possa fantasiar acerca do seu papel ao longo da década e meia que antecedeu a revolução de Abril.

        História, Olhares

        As guerras de Martha

        Marguerite Duras afirmou, em A Vida Material, que «o jornalismo só releva da literatura quando é exercido de forma passional». Acabei de ler A Face da Guerra (Dom Quixote), uma selecção de reportagens sobre diversos conflitos escritas no terreno por Martha Gellhorn (1908-1998) entre os anos 30 e 90 do século passado, começando com a Guerra Civil de Espanha (a primeira reportagem é de Julho de 1937), passando por Dachau, Saigão ou Jerusalém, e fechando com a invasão americana do Panamá. Ao percorrer aqueles textos, que quase não perecem datados, acabei por ficar ainda mais seguro da justeza da afirmação de Duras. Um jornalismo como o praticado por Gellhorn, que não receia a polémica, que informa mas também se emociona e toma partido – e não engana o leitor, pois assume que o faz – é o único que se distingue e permanece para além do instante. Separando-se daquele outro, supostamente «isento» e «objectivo», sem corpo, alma ou identidade. Que nos pode ser de alguma utilidade prática, revelando o onde, o quando ou o para quê, mas logo se torna irrelevante. E que acaba por morrer incógnito.

          Apontamentos, Olhares

          Plagiu

          A descoberta de sucessivas pistas de plágio no blogue pessoal de Luís Filipe Menezes não me espanta. Trata-se de uma prática muito comum no universo da política local (e não só, convenhamos), coincidente com a ausência de ideias ou a baixa densidade cultural de muitos dos seus protagonistas. Se percorrermos o país através das páginas pessoais (ou de textos reproduzidos) de algumas das suas figuras mais ou menos públicas, em inúmeros artigos de uma boa parte da imprensa regional, mesmo em intervenções públicas supostamente originais, encontraremos exemplos constantes de corta-cola-e-cala. Mas LFM não é apenas um político local, pois pretende presidir a um dos dois maiores partidos institucionais e ser primeiro-ministro de Portugal. E ou a coisa está pior do que eu pensava ou uma prática desta natureza é indesculpável, não valendo atirar agora com as culpas para as costas de um qualquer «assessor», supostamente responsável pelos sucessivos actos de cópia não declarada (assinados de facto por LFM, «autor» ou autor do blogue em causa). Numa prova académica, quando detectado, o plágio equivale imediatamente a uma reprovação (e na generalidade das escolas inglesas, por exemplo, corresponde até a uma expulsão): será que, por estes lados, as boas práticas destinadas a combater a fraude e a desonestidade intelectual não se aplicam também aos políticos profissionais? Suspeito que conheço a resposta.

          Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a gravidade deste tipo de acto, aqui se copia a entrada Plágio da Wikipédia em português (acedida em 22.08.2007, às 14h30, e, sendo de origem brasileira, adaptada aqui ao português europeu):

          O plágio é o acto de assinar ou apresentar uma obra intelectual de qualquer natureza (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, etc.) contendo partes de uma obra que pertença a outra pessoa sem colocar os créditos para o autor original. No acto de plágio, o plagiador apropria-se indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria da mesma.

          A origem etimológica da palavra demonstra a conotação de má intenção no acto de plagiar; o termo é originário do latim plagiu que significa oblíquo, indirecto, astucioso. O plágio é considerado antiético (ou mesmo imoral) em várias culturas, e é qualificado como crime de violação de direito autoral em vários países.

          Plágio não é a mesma coisa que paródia. Na paródia, há uma intenção clara de homenagem, crítica ou de sátira, não existindo a intenção de enganar o leitor ou o espectador quanto à identidade do autor da obra.

          Para evitar a acusação de plágio quando se utilizar parte de uma obra intelectual na criação de uma nova obra, recomenda-se colocar sempre créditos completos para o autor, seguindo as normas da ABNT, especialmente no caso de trabalhos académicos onde normalmente se utiliza a citação bibliográfica.

            Atualidade, Opinião, Recortes

            Gestualidades

            A codificação dos gestos é sempre mais lenta do que a realidade que a suporta. Hoje, num restaurante, alguém numa mesa em frente da minha pedia a conta – aberta por um PDA, processada por computador desktop, impressa a jacto de tinta – mimando para o empregado, de forma convencional, o gesto de escrever. Calculo a agitação que teria criado se lhe tivesse ocorrido levantar a mão direita (ou, pior, a esquerda; ou, pior ainda, ambas) simulando o acto de digitar.

              Devaneios, Etc.

              Autoridade e preconceito

              Image Hosted by ImageShack.us

              Neste ocidente que nos cabe, quanto mais se penetra em sociedades de matriz cultural católica mais se sente o peso longevo do eurocentrismo e da rigidez hierárquica herdada dos tempos que antecederam a afirmação «igualitária» da burguesia. Nelas continua a reproduzir-se essa forma superior de preconceito que associa o destino do indivíduo ao seu invólucro. À forma como este se mostra em público, ao peso da identificação estatutária materializada em gestos, na fala, na valorização simbólica do ter e do parecer. A aceitação do diferente define-se na razão directa da domesticação da sua diferença.

              Em Cancún, no México, Rigoberta Menchú, activista indígena, candidata à presidência da Guatemala e Prémio Nobel da Paz, foi há dias expulsa de um hotel de cinco estrelas por ter sido confundida com uma vendedora ambulante. Terá sido um caso de ignorância e discriminação que poderia ter ocorrido aqui, em Lima, Dublin ou mesmo em Viena. Poderia, e provavelmente foi-o. Mas muito mais dificilmente teria acontecido em cidades como Nova Iorque, Estocolmo ou Amesterdão. Afinal, foram séculos de pedagogia da resignação, ensinando que cada um tem o seu o lugar e a sua «cruz», mas que nem todas as «cruzes» possuem o mesmo valor. De vigilante inquisição da divergência, de consagração barroca da hierarquia (que a liturgia vaticana, aliás, tem preservado no essencial), de ensino sistemático da reverência diante do cesarismo, que o universo católico herdou. A relação preconceituosa com os sinais que espartilham a vida social, a relativização do valor da diversidade, o respeito pela ordem social e pelos seus símbolos, não são factores que se apaguem da memória e da experiência colectiva nos escassos cinquenta anos que se sucederam ao último acto conciliar. Aliás, sem eles, democratizada e desprovida de atitudes paternalistas, a própria Igreja católica terá dificuldade em preservar o poder, a autoridade e a noção de supremacia moral que ainda conserva. Coisa que o actual papa percebeu há já muito tempo.

                Apontamentos, Atualidade

                O atendedor

                De repente o telefone tocou. Passava uma meia hora das onze da noite, e do lado de lá uma voz feminina que era apenas um murmúrio. Palavras que eu não podia compreender, numa língua que não soube identificar. A voz falava baixinho e chorava, num lamento indecifrável. Disse-lhe, em inglês, que tinha muita muita pena mas que provavelmente deveria estar enganada, que eu não era com toda a certeza a pessoa que ela pensava que eu era, que não conseguia de todo entendê-la. Do outro lado, como se eu não tivesse falado, como se a minha voz pudesse ser apenas uma gravação, a mesma mulher prosseguiu no seu lamento incompreensível, chorando ao meu ouvido mecânico. Pedi desculpa e disse que precisava desligar, desejei-lhe uma boa noite, disse de novo que lamentava, desliguei. Sem a certeza de ter sido engano.

                  Devaneios

                  Israel como nunca

                  Editado este ano pela ASA, Uma História de Amor e Trevas, de Amoz Oz, é um livro de memórias, entre a autobiografia e o romance, sobre a infância do autor em Jerusalém. A partir de um curto tempo nuclear, cerca de 120 anos de história nacional e familiar passam por um texto «impregnado de ruído e fúria, nostalgia, perda e solidão».

                  Começa por revelar um espaço cultural que nos é em larga medida estranho. Sobre o qual, aqui a ocidente, quase nada sabemos. Este universo radica-se numa identidade judaica que, no imenso território de diáspora que ia da Europa Central à Rússia mais profunda, permitiu o estabelecimento de uma notável cultura intelectual capaz de admitir a coabitação de ortodoxos, sionistas e simpatizantes da esquerda e do comunismo. A integração não excluía, porém, a produção de clivagens, a mais visível das quais se mostrou durante o próprio Holocausto – basta lembrar as fortes divergências dentro do ghetto de Varsóvia, entre os partidários da colaboração como mal menor e da insurreição como necessidade – e foi depois vertida para o interior de Israel, sendo particularmente sentia na década de 1950, a época à qual Oz se reporta mais directamente. Refiro-me à clara separação entre aqueles que defendiam a secular atitude de aceitação, que permitira aos judeus sobreviveram durante séculos às inúmeras perseguições, e aqueles outros que, após Auschwitz, pensavam que apenas se poderia responder violência com a violência, de modo a evitar o regresso do horror. No mundo extremamente culto e politizado que o pequeno Amos frequentara, todas as sensibilidades e nuances culturais mantinham ainda este antagonismo essencial como cenário.

                  Este livro proporciona também um espaço de reflexão que se projecta sobre o mundo contemporâneo. Deve relembrar-se o papel de Amoz Oz no movimento Peace Now – que defende a inevitabilidade de um acordo justo e definitivo com os palestinianos, mas não a capitulação de Israel, que as ditaduras árabes, os radicais islâmicos e os seus aliados ocidentais tão ardentemente desejam – e as suas posições públicas neste domínio, parte das quais podem ser conhecidas no pequeno volume de ensaios Sobre o Fanatismo (que há poucos meses o Público ofereceu aos seus leitores). No melhor e mais belo desses ensaios, «Da natureza do fanatismo», o escritor, que fora em tempos «um rapaz que atirava pedras, um rapaz da Intifada judaica», salienta a antiguidade da experiência desse fanatismo «mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo», salientando porém que a sua própria infância em Jerusalém o havia convertido num «especialista em fanatismo comparado». É a experiência desta «especialização» que Oz nos vai revelando no seu livro de memórias, transportando-nos até um ponto no qual poderemos compreender melhor a legitimidade, e igualmente a inutilidade, do ódio instalado. Ao mesmo tempo, a extrema dureza do período de reinstalação dos judeus no território de Israel e depois da independência do Estado – bem, num movimento de fast forward, o processo de restabelecimento das fronteiras «bíblicas», ocorrido já em 1967, após a vitória «milagrosa» na guerra dos Seis Dias – permite-nos também entender as contradições, e igualmente as razões, de muitas das posições da opinião pública israelita e dos seus diferentes governos ao longo das últimas décadas. Dando-nos a ver, se não quisermos permanecer cegos, que estes jamais poderão aceitar um retorno à condição histórica de párias e errantes que, geração após geração, todos os seus antepassados viveram.

                  Uma História de Amor e Trevas é ainda, pela forma como revela os processos de apreensão do mundo e das suas mudanças pelo jovem Amos, um elogio da leitura e da imaginação. E também um livro de grande beleza e compaixão, que facilmente nos conduz por uma viagem de ida e volta entre o riso e as lágrimas. Afinal, aquilo que a maior parte de nós mais habitualmente procura nas leituras às quais se entrega por puro prazer. Um crítico do Guardian considerou-o «um dos mais divertidos, mais trágicos e tocantes livros» que pudera ler. Mesmo ressalvando o exagero de afirmações tão peremptórias, que mais poderemos querer?

                  Uma última chamada de atenção para dois aspectos. A capa da edição portuguesa – idêntica, aliás, à da edição da Vintage, mas que não pode comparar-se com a da Chatto & Windus – é muito má, mais parecendo um daqueles cartazes new age utilizados para vender iogurtes light. Já a tradução, da responsabilidade de Lúcia Liba Mucznik, me parece soberba, mesmo sem entender eu uma palavra de hebraico. Nem por um momento o prazer da leitura tropeçou numa palavra ou numa frase, sendo, ao contrário, constantemente excitado por elas. O que é, obviamente, um óptimo sinal.

                    Olhares

                    Lição de jornalismo

                    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=CB6A7W3QfM4[/youtube]

                    Não é hábito, aqui n’A Terceira Noite, a repetição de links e referências que já circulam por diversos blogues. Mas vale a pena ampliar a divulgação deste vídeo notável, no qual Rodrigo Amarante, da banda brasileira Los Hermanos, oferece uma boa lição de ética jornalística.

                      Atualidade, Cidades, Etc.

                      «Ite, missa est»

                      Compreendo as possibilidades dramáticas de acontecimentos que rejeito num plano mais ou menos racional. Uma tourada, por exemplo. Ou um combate de wrestling, uma sessão de flamenco, uma longa procissão de penitência. E não só admito como, em determinadas circunstâncias, consigo vivenciar os instantes de volúpia ou de exaltação que esses momentos produzem em alguns. Aceito, por isso, que em determinadas pessoas a missa em latim, o canto gregoriano, a sombra das vestes litúrgicas, o aroma do incenso ou a sonoridade de um órgão de tubos, produzam um efeito de comoção, delírio ou sublimação que lhes dará algum prazer.

                      Cedo automatizei as respostas dos fiéis no ofício celebrado em latim medieval. Sem entender a maior parte do que ouvia e das palavras que pronunciava, introduzia-me, através da solenidade mágica da língua litúrgica, no ritual colectivo que em breve iria ser abalado. As transformações democráticas introduzidas no cerimonial após o termo do Concílio Vaticano II produziram, sem dúvida, um efeito de aproximação entre o celebrante e os fiéis. Ao mesmo tempo, porém, diluíram a auréola de sagrado conferida pela missa como acto colectivo no qual a pompa e a incompreensão ampliavam a sensação de participação. Entendo, por isso, o texto de João Bénard da Costa saído no Público de domingo, no qual este desenvolveu uma certa defesa cultural de Summorum Pontificum, o recente documento papal através do qual Bento XVI aceitou a validade da reintrodução não-obrigatória do latim. No fundo, Bénard da Costa, em nome da sua própria vivência de uma religiosidade católica que viria a abandonar nos finais da década de 1960, reconhece que as mudanças alteraram a substância de uma forma milenar de viver a fé. E que tal terá contribuído para o questionamento da própria fé.

                      Percebo João Bénard, ainda que continue a ver como avanço no sentido de uma certa humanização as medidas conciliares e como sinal de retrocesso este tipo de iniciativa do Sumo Pontífice. Afinal, quando eu próprio ia à missa, sentia um grande alívio ao responder com um rápido «Deo gratias» ao conclusivo «Ite, missa est». E a seguir raspava-me.

                        Apontamentos

                        Torga e o PS

                        Nunca me agradou a poesia de Miguel Torga. E talvez devesse dizer o contrário, se bem que por razões extra-literárias: aos oito anos operou-me às amígdalas e foi muito paciente comigo (embora horrivelmente vestido de otorrinolaringologista do Largo da Portagem), tempos depois fui seu vizinho na Praceta Fernando Pessoa (onde mantive o meu último quarto de estudante), e vivo há décadas em Coimbra, em cujo panteão simbólico Torga apenas é batido por Isabel de Aragão, a beata e ilusionista Rainha Santa, e pelos infelizes Pedro e Inês. Para além disso, sempre simpatizei com a sua figura simples e solitária. Mas a poesia que publicou não me agrada. Tal como jamais gostei de ver o poeta servir de muleta a políticos à procura de um «toque de cultura» no seu seco discurso público, parecendo-me também bastante despropositado que alguém despojado de provincianismo – ou de uma certa dose de ignorância – o possa tomar por «um dos maiores poetas do século XX». Questões discutíveis de paladar e de idiossincrasia, sem dúvida.

                        O que já não me parece discutível é a desconsideração que foi a ausência de qualquer responsável nacional do PS, ou do seu governo (a Ministra da Cultura, por exemplo), nas comemorações do centenário do nascimento de Torga que hoje tiveram lugar em Coimbra e em S. Martinho da Anta. António Arnaut considerou a ausência «uma falta grave, uma omissão grave de cumprimento de um dever cívico.» Tanto mais grave quanto o poeta, apesar da sua conhecida aversão a participar em actos públicos, foi nas últimas décadas de vida um importante – e imprescindível – compagnon de route dos socialistas, servindo também a sua palavra, frequentemente, de muleta do discurso dos seus dirigentes (incluindo-se nestes o seu actual secretário-geral e primeiro-ministro). Mas talvez esta atitude até tenha sido coerente: poderá tratar-se apenas apenas de um passo mais no abandono das referências matriciais do Partido e na sua gradual conversão em organismo técnico e gestionário, para o qual as artes e as letras são apenas acessórios. Se, por um destes dias, em cerimónia do Dia de Portugal ou numa sessão solene da Assembleia da República, algum insigne governante ou deputado citar à propos uma frase de Joe Berardo, não ficarei pasmado.

                          Apontamentos, Atualidade

                          Ester e Ruzya

                          Masha Gessen é uma jornalista russa cuja família emigrou em 1981 para os Estados Unidos com o objectivo de escapar ao anti-semitismo latente que marcava o quotidiano da União Soviética na era de Brejnev. Dez anos depois regressou à Rússia como correspondente e aí acabou por se instalar, vivendo actualmente em Moscovo. Em 2004 publicou Ester and Ruzya: How My Grandmothers Survived Hitler’s War and Stalin’s Peace, editado há cerca de um ano pela Alêtheia com a primeira parte do título infelizmente alterada para As Duas Babushkas. Este é uma daquelas «sagas familiares» que lança um olhar sobre as vidas singulares e conturbadas das duas avós da autora. Mas não se trata propriamente de um romance «de época»: o trabalho de Masha Gessen consistiu essencialmente em transformar em relato escrito as recordações verbalizadas das suas familiares, em pesquisar pessoalmente elementos que elas deixavam em claro, em confirmar alguns dos factos aos quais elas se referiam, e, finalmente, em inserir toda a informação num discurso que deixa a obra a meio caminho entre o romance e o texto memorialista.

                          Ester e Ruzya são duas mulheres russo-judias cujos destinos se viriam a cruzar, acabando por se tornarem amigas e confidentes. Uma nasceu na Polónia e escapou dos campos de concentração de Hitler por ter partido para estudar numa universidade da União Soviética, mas acompanhando também a mãe, entretanto exilada com toda a sua comunidade de judeus polacos para a Sibéria. Teve a coragem de se recusar a servir de informadora do NKVD, demitindo-se do Komsomol (a organização estatal para a juventude comunista) e vivendo na pele a obsessão antijudaica do regime, agravada nos últimos anos de vida de Estaline. A outra nasceu na Rússia, foi uma militante entusiástica do mesmo Komsomol e chegou a ser uma importante funcionária da censura literária imposta pelo Estado soviético. É muito interessante o relato da experiência diária de leituras vedadas à generalidade dos seus concidadãos. Do cruzamento destas duas vidas singulares resulta, para nós, um conhecimento quase testemunhal do quotidiano de muitos «pequenos intelectuais» nos tempos difíceis do apogeu das grandes experiências totalitárias do século passado. Leitura apaixonante e de utilidade para o aprofundamento de uma memória colectiva que transcenda a dimensão da paróquia.

                            História, Olhares

                            Fátima revista

                            Image Hosted by ImageShack.us

                            Nestes dias de calor e praia, o Público tem vindo a divulgar uma selecção de textos retirados da Enciclopédia de Fátima, obra colectiva editada pela Principia e organizada por D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, e pelo cónego Luciano Cristino, ligado ao Santuário de Fátima. Numa sinopse da obra, pode ler-se que esta pretende ser um «estudo pioneiro e interdisciplinar que aborda de forma multifacetada, científica e rigorosa os acontecimentos de Fátima». Um dos organizadores afirmou ainda que se trata de «oferecer aos interessados uma interpretação aberta, serena, crítica, teologicamente fundada e historicamente objectiva». Não vi à venda este Dicionário de mais de 600 páginas e suspeito até que seja difícil encontrá-lo nas livrarias que frequento, mas depois de ler os passos seleccionados fiquei com alguma curiosidade. Não podendo fazer um comentário crítico detalhado sem o conhecer melhor, existe porém alguma coisa, nos fragmentos que tenho lido, que me deixa razoavelmente apreensivo.

                            É verdade que os colaboradores convocados para as 120 entradas serão «especialistas de diversas áreas – história, teologia, arte, sociologia, etnografia e urbanismo, entre outras». Alguns deles são pessoas cujo trabalho parcialmente conheço e que respeito. Mas, dada a origem da obra e os seus coordenadores, reservo alguma perplexidade a propósito do resultado prático dos critérios que terão determinado a escolha. De facto, a maioria dos fragmentos que pude ler evidencia essencialmente uma preocupação em «actualizar» a imagem de Fátima – que tratam, aliás, como «acontecimento», e não como fenómeno cultural – colocando-a numa perspectiva que exclui a dúvida em relação ao discurso oficial da Igreja católica a propósito da sua «mensagem». O que me pareceria absolutamente legítimo não fora este upgrade ser apresentado de uma forma que se pretende «científica». E aqui é que poderá entrar-se num terreno escorregadio e algo perigoso.

                            Dois exemplos apenas, entre outros possíveis, retirados dos passos que o Público reproduziu.

                            Na entrada «Imprensa e Fátima», assinada pelo sociólogo António Teixeira Fernandes, por exemplo, fala-se da «crítica verrinosa» da imprensa republicana, «do livre-pensamento e da Maçonaria», que «procurava a todo o custo ‘desmascarar’ o ‘embuste’ [as comas são do autor] de Fátima». Mas fala-se também da imprensa católica como «prudente nas suas posições e afirmações», precisamente numa altura em que esta, após uma fase defensiva na qual se colocara durante os anos iniciais da Primeira República, passara a um então já nítido contra-ataque. Colocada nestes termos – e será nestes termos que os leitores a tomarão – esta forma de abordagem induz, obviamente, uma tomada de posição que, apesar de diferente nos termos, retoma a leitura tradicional a propósito do carácter «perverso», «diabólico», do republicanismo.

                            Um fragmento da entrada «Guerra», da autoria do historiador José Manuel Sardica, é, para mim, ainda mais perturbante. Nele se afirma que, nos anos 60, «o problema da guerra colonial em Portugal relançava e reforçava o repúdio fatimista dos conflitos armados», e que, «para desespero do catolicismo mais integrista e politicamente alinhado com o regime», a Cova da Iria «assumiu os contornos de ‘instância de identificação nacional’ crítica do regime», como local de «esperança, prece, consolo ou agradecimento de soldados (…) e de estropiados», tendo-se «Nossa Senhora de Fátima» transformado «numa ‘protectora dos combatentes do Ultramar’». A memória pessoal que tenho, bem como a colectiva à qual tenho acesso, apontam em sentido contrário – relembro que o país dos «três-éfes» existiu – e textos entretanto publicados por ex-«católicos progressistas», como José Bénard da Costa ou Joana Lopes, não deixam dúvidas sobre a forma como, com a anuência da maioria esmagadora da hierarquia católica, o regime se apropriou simbolicamente de Fátima. Dizer o contrário será, no mínimo, uma forma de revisionismo histórico que me parece necessário moderar.

                            Estes são, entretanto, apontamentos muito parciais, que gostaria de poder emendar. Fico à espera de conhecer o volume no seu todo e de confirmar – ou de remover – as cautelas que os trechos divulgados pelo Público me impõem.

                            Nos comentários encontram-se algumas observações de utilidade para ampliar – ou redireccionar – o sentido crítico deste post.

                              História

                              João Vário

                              Tempo de partida, este meio-verão, para alguns dos melhores vivos da minha vida. Desta vez foi o cabo-verdiano João Vário (1937-2007), João Manuel Varela, o primeiro poeta «português» que li fora do livro único e obrigatório.

                              Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
                              Aquele blasfemíssimo comentário,
                              E então consta que amámos.

                              [De Exemplo Geral, 1966]

                              Mais poemas de João Vário aqui

                                Apontamentos

                                Ignomínia

                                Estava em férias quando ocorreu a demissão de Dalila Rodrigues, e por isso apenas agora dou sinal de vida sobre o assunto. Conheço a visada – creio que fui mesmo seu professor – embora, directamente, conheça muito pouco do trabalho por ela levado a cabo no Museu de Arte Antiga. Sei daquilo que me contam, do que dizem os jornais, das opiniões que foram sempre, globalmente, bastante positivas. Sei também que na área da gestão dos museus, tradicionalmente conservadora e conformista, a sua iniciativa se tem destacado. Uma coisa que, no país paralisado pela inveja do qual fala José Gil, não augura nada de bom para quem protagoniza o destaque. Por isso, não me surpreendeu a atitude vergonhosa – pior ainda que a da ministra da Cultura, «apenas» incapaz de dialogar com uma atitude crítica (mas, que eu saiba, não insubordinada) – dos dezasseis outros directores de museus, obviamente arregimentados por um qualquer comissário-político, que se solidarizaram, em nome da «classe museológica portuguesa» (sic), contra uma sua colega.

                                  Atualidade

                                  Michelangelo

                                  Agora a morte de Michelangelo Antonioni (1912-2007), o realizador que nos ajudou a ver, como afirmou certa vez, «a realidade em termos que não são inteiramente os do realismo». Jamais esquecerei o trabalhador abandonado, infeliz e errante, de O Grito. Ou a paisagem industrial opressiva, mas ao mesmo tempo tão desmedidamente bela, de O Deserto Vermelho. Ou o deslizar de Vanessa Regrave sob câmara fotográfica inquieta, obsessiva, de Blow-Up. O cinema serve também para nos avivar a memória. Antonioni sabia-o muitíssimo bem.

                                    Apontamentos, Cinema