Author Archives: Rui Bebiano

Portugal de perfil

Ao contrário daquilo que determinados portugueses afirmam e muitos mais possam pensar, não é exclusivo seu o dizerem mal de si próprios. Mas está-lhes na massa do sangue, como de alguma forma o procura demonstrar Portugal Traduzido – Abecedário de Reflexões (Zaina Editores), de John Wolf, um americano (verdadeiro?) integrado na cultura local há cerca de vinte anos. Escrito de uma maneira singular – com o timbre de uma espécie de sotaque sintáctico -, e sempre com muita ironia à mistura, ele é identificado pelo autor como um «manual de observação da realidade organizado alfabeticamente», no qual se procurou mapear com leveza e humor «a condição portuguesa» e algumas das suas práticas mais peculiares. Ao mesmo tempo, Wolf procura oferecer algumas soluções que possibilitem a superação de alguns dos atavismos que foi anotando. Refere, por exemplo, que «a excessiva promiscuidade da sociedade das artes e letras conduz a quadros de chantagem intelectual», para logo adiante sugerir a disseminação da prática do brainstorming. Ou brada contra os tradicionais jantares de solidariedade, «imagem confessada das teias da dependência», para depois aconselhar a não-banalização da verdadeira amizade. A brincar ou com um pouco mais de circunspecção, Wolf vai dizendo algumas verdades que talvez valha a pena escutar e que nós próprios quase sempre esquecemos porque as naturalizámos.

Embora num outro formato, também na LER No. 74

    Olhares

    Anastasia

    Anastácia

    Tal como aconteceu com tantas outras pessoas do mundo inteiro, em criança fazia-me impressão a vida dramática da princesa Anastácia. Refiro-me a Anastasia Nikolaevna Romanova, a filha do czar Nicolau II que em 17 de Julho de 1918 teria supostamente sobrevivido ao massacre da família real russa levado a cabo pelos bolcheviques, seguindo depois uma vida errante e aventurosa, sempre à espera de um reconhecimento público que jamais chegou. A sua história foi desde cedo utilizada na propaganda anticomunista, tendo aparecido em livros, folhetos e histórias de banda desenhada, e servido também de argumento a canções. Uma delas, de Pat Boone, foi um êxito mundial nos idos de 50, e Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, faz-lhe referência («Anastasia screamed in vain»). Funcionou também como base do enredo de diversos filmes: o mais conhecido, com Ingrid Bergman, é de 1956, e o último, em técnica de desenho animado, foi estreado em 1997. Em Shadow Hearts: Covenant, um jogo para PlayStation 2, Anastácia aparece também como personagem. Pois bem, a Procuradoria-Geral da Federação Russa concluiu agora, após estudos especializados, poder «afirmar categoricamente» que os seus restos mortais estavam entre aqueles que, em 1991, foram recolhidos como sendo os dos abatidos em Iekaterinburgo. Mas como concluiu ao mesmo tempo que o Conselho dos Comissários do Povo e o Comité Executivo Central, na altura os principais organismos governamentais russos, não aprovaram a execução, fica sempre no ar uma suspeita de «limpeza da História» muito comum por aquelas paragens. Num certo imaginário romanesco, a imagem da princesa Anastásia continuará a pairar.

      Atualidade, História, Memória

      Mulher, muçulmana

      Mulher, muçulmana

      Como toda a gente, exceptuando uns quantos fanáticos, hipócritas ou ignorantes, senti-me chocado com as declarações públicas do Cardeal Patriarca a propósito da condição da mulher cristã dentro do casamento muçulmano. Mas mais chocado que indignado, pois não acredito que essas declarações tenham sido feitas, por muito que José Policarpo possa acreditar naquilo que disse, fora de um momento de fraqueza no qual se tenha deixado envolver pelo copito da hora do jantar ou o olhar de medusa da jornalista. O que não significa que não tenha sido grave aquilo que aconteceu: foi-o, e muito, e até talvez mais pelo tom sarcástico, no limiar do gozo e da grosseria, do qual o cardeal se serviu para falar dos «irmãos» que crêem «em Alá». Uma atitude que nem parece coisa de hierarca com lugar cativo em conclaves vaticanos. Aquilo que disse é  inadmissível e perigoso, e merecia, pelo menos, uma retractação igualmente pública. Não a conversa balofa e de sacristia com a qual alguns responsáveis católicos se apressaram a justificar o injustificável.

      A vaga de repulsa que se sucedeu às palavras do cardeal passou, no entanto, por cima da questão muito mais central que ela implica e que tem a ver com o lugar reservado à mulher – seja ela muçulmana, católica, budista ou adventista do Sétimo Dia – dentro do universo islâmico. Faranaz Keshavjee, a cronista ismaelita do Público, afirma o óbvio («é muito perigoso fazer uma leitura monolítica sobre 1,2 mil milhões de muçulmanos»), mas também o essencial («há problemas graves de violação dos direitos da mulher (…) fundamentados em leituras parciais do Corão»). Por acaso acabo de ler O Preço do Véu – A guerra do Islão contra as mulheres, de Giuliana Sgrena, a jornalista do Il Manifesto que em 2005 foi sequestrada por uma organização iraquiana. Explorando, através da reportagem no terreno e de algumas entrevistas, a situação das mulheres em países como a Arábia Saudita e o Afeganistão, mas também na Tunísia, na Sérvia, no Iraque, no Irão, na Bósnia-Herzgovina, na Palestina, na Somália ou a Argélia – e ainda em muitas comunidades de muçulmanos que vivem na Europa ocidental -, Sgrena mostra-nos de que forma o uso do véu representa, como símbolo e instrumento da negação objectiva do corpo, a efectiva opressão da mulher na maior parte do mundo islâmico e o reforço, que nele tem vindo recentemente a afirmar-se, de uma ordem masculina implacável e reaccionária. Revela a luta, de uma coragem extrema, de muitas mulheres muçulmanas que ousam revoltar-se contra esta situação. E critica com veemência o silêncio dos activistas ocidentais empenhados em não melindrar a incerta e complexa «identidade muçulmana». É esta luta que a crítica às palavras indecentes do cardeal não deveria esquecer. Como o fez também Policarpo ao omitir, de tão preocupado que estava com as suas tresmalhadas reses, os graves problemas que envolvem a mulher, seja qual for a religião que professe – e pior ainda se não professar alguma – nessa parte do mundo que tanta impressão lhe faz.

        Atualidade, Democracia, Olhares

        Glória vã

        Cristiano Ronaldo foi designado pela FIFA como o Jogador do Ano de 2008 e, de acordo com a lalistawip, é a 11ª pessoa mais citada na Internet. Numa lista comandada por Barack Obama, CR7 está apenas um pouco abaixo de Paris Hilton, imediatamente após Elvis Presley, e muito acima de José Mourinho (137º), Durão Barroso (240º), Fernando Pessoa (340º) ou José Sócrates (2265º, malgré Magalhães). Porém, se nos fiarmos nas notícias que chegam, em breve o português mais referido na rede poderá ser um cão.

        Adenda ainda sobre o moço Cristiano. Dizia hoje no Prós e Contras a Sra. Dra. D. Fátima Campos Ferreira (a fonte é o blogue Água Lisa) que «as mulheres são muito atraídas pelo Ronaldo pela maneira como ele mexe as pernas». Como uma conversa leva a outra – tal qual naquela lengalenga «Senhor dos Passos, Paços do Concelho, Conselho de Guerra, Guerra Junqueiro…» – acabei por deduzir que o futebolista madeirense possui uma costela de fandagueiro ribatejano.

          Atualidade, Etc.

          Dias aziagos

          Dias aziagos

          O 5 Dias é um blogue que acompanho desde a abertura, e que nas diversas fases pelas quais foi passando me habituei a seguir com atenção, mesmo quando (ou justamente quando) exibia posições das quais discordava. Todos os colaboradores escreviam muito bem, as opiniões eram diversas mas fundadas, a informação rápida mas criteriosa. Mentiras, calúnias, verborreia e embustes nunca por ali se viram, excepto quando a óbvia ironia ou a casual brincadeira o requeriam. E assim se mantiveram as coisas até há pouco tempo, quando o panorama começou a mudar rapidamente com a chegada de alguns colaboradores que, para além de fazerem baloiçar a base de apoio do português, se servem de algumas das técnicas habitualmente utilizadas por fascistas ou delinquentes. Pois de que outra forma posso compreender artigos como este (fazendo lembrar o chamado «paleio de retornado» do antigamente)? Ou a apresentação, sem qualquer identificação mas contendo uma insinuação grave, desta imagem (decalcada aliás de uma outra, essa assumidamente ficcionada, utilizada no filme de propaganda franquista Sin Novedad en el Alcazar)? Jamais abriria a boca se estes posts surgissem num blogue qualquer – que estivesse confinado, como A Terceira Noite, a umas centenas de seguidores fiéis que aguentam estoicamente a irregularidade dos registos e a ausência de comentários – mas já me parece perigoso quando este tipo de processos chegam a blogues reconhecidos por muitos como um espaço de referência. Nada tenho a ver (era o que faltava!) com o caminho pisado pelo 5 Dias, e não vou, garanto, entrar numa guerrinha de Alecrim, mas diz-me respeito a exibição pública da ética do vale-tudo para subir no Blogómetro (onde ATN estava ontem num discretíssimo 119º lugar). E apetece-me dizê-lo a quem me lê.

            Atualidade, Cibercultura, Opinião

            Eles

            Eles

            A tese não é nova, como se sabe: ela sugere uma leitura da política do governo americano para Portugal durante o biénio revolucionário de 1974-75, insistindo na divergência das interpretações mantidas pelo ex-Secretário de Estado, que chegou a considerar a inevitabilidade da tomada do poder pelos comunistas, e pelo antigo embaixador em Lisboa, que insistiu na necessidade de apoiar as forças moderadas. A substância de Carlucci vs. Kissinger. Os EUA e a Revolução Portuguesa, de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá (Dom Quixote), reside, pois, não tanto na «descoberta» de uma situação conhecida, mas antes na análise detalhada de fontes primárias que a comprovam e detalham. A partir de telegramas trocados entre a capital portuguesa e Washington, de memorandos de conversas mantidas entre altos dirigentes, e da transcrição de conversas telefónicas, revelam-se pormenores sobre a debilidade do sistema de informações americano na fase inicial do processo, sobre a tentativa de utilizar a União Soviética para moderar a atitude do PCP, sobre o apoio oferecido ao Grupo dos Nove, ou, talvez como testemunho mais sonoro, sobre a possibilidade real, declinada por Franco, de uma intervenção militar espanhola. A narrativa acompanha muito de perto os documentos, fugindo no entanto a um esforço interpretativo complexo ou a uma abordagem dos reflexos da intervenção americana fora dos círculos do poder, mas integra, sem qualquer dúvida, informações cruciais para a história do período.

            Embora num outro formato, também na LER No. 75

              Atualidade, História

              A voz do povo

              Tintim e Haddock

              Que me perdoem os companheiros bloggers que voltam à carga, perplexos ainda, ou confiantes na singularidade da descoberta, sobre se Tintim, um dos nossos heróis do século XX, era ou não era gay. Mas qual é a dúvida se, ao digitarmos «tintin gay», o Google resolve devolver-nos 455.000 links?

                Democracia, Devaneios, Etc.

                Proletas

                O Proletário

                N’A Bola de ontem: «[O goleador Liedson] atingiu a marca de Yazalde, homem que nasceu num bairro pobre da Argentina, vendeu jornais, depois bananas e mais tarde ganhava a vida a picar gelo. Até nisso há algo de semelhante entre ambos: não há muito era Liedson repositor de armazém…»

                  Devaneios, Etc., Recortes

                  Salónica: uma cidade e o seu labirinto

                  Salónica

                  Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

                  Até 1909, o ano da fundação de Tel Aviv, Salónica era a única cidade do mundo na qual a principal língua utilizada era de matriz judaica. Por essa altura, a maioria da população falava ainda o ladino, ali estabelecido nos inícios do século XVI com a diáspora sefardita, mas viviam-se os últimos tempos de um espaço policromo, no qual cristãos, muçulmanos e judeus tinham podido conviver na diferença, apesar dos conflitos pontuais e das situações de desigualdade perante a lei otomana. É verdade que ela se parecia mais com uma justaposição de pequenas aldeias, nas quais turcos, judeus, gregos, búlgaros, albaneses, ocidentais e ciganos preservavam os seus territórios, mas nada de semelhante podia ser observado em qualquer outra grande cidade. Mark Mazower, especialista em história da Grécia e dos Balcãs, traça em Salónica – Cidade de Fantasmas o seu percurso único e fascinante, prestando uma particular atenção ao longo lapso de tempo que começou em 1430, com a tomada da cidade ao poderio bizantino-veneziano pelo sultão Murad II, e encerrou já em pleno século XX com a reinstalação, em território turco, dos últimos membros da comunidade muçulmana que nela haviam permanecido após a sua conquista pelos gregos. Durante todos esses anos, foi traçado um percurso sinuoso e complexo que Mazower descreve com uma profusão de informações capazes de trazerem à vida um passado do qual já quase não restam hoje vestígios materiais.

                  O epíteto de «cidade dos fantasmas» diz essencialmente respeito ao total desaparecimento, ocorrido já no último século, de duas daquelas comunidades. O primeiro teve lugar imediatamente após o fim da dependência da cidade do estado turco, com a evacuação forçada da maior parte da população de origem muçulmana. O segundo, particularmente rápido e brutal, aconteceu em 1943, quando os ocupantes nazis enviaram para Auschwitz cerca de 50.000 salonicenses, dos quais apenas dez por cento viriam a sobreviver. Para além do enorme impacto humano no mapa da cidade, este facto ficou ainda associado à responsabilidade de numerosos cristãos gregos na repressão anti-semita que facilitou o trabalho dos ocupantes alemães. Alguns críticos consideram, aliás, que nesta obra o historiador menosprezou conscientemente a importância desse episódio vergonhoso da história contemporânea da Grécia.

                  Salónica oferece uma leitura apaixonante, por intermédio da qual a evocação do passado, ali extremamente bem documentada e apresentada de forma consistente, confirma o trajecto único de uma cidade que não possuindo hoje o fascínio e o património monumental da rival Istambul, nem por isso deixa de simbolizar um reencontro que a história recente dos Balcãs tornou particularmente exemplar e perturbante.

                  Mark Mazower, Salónica. Cidade de Fantasmas. Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950. Tradução de José Pinto Sá. Pedra da Lua, 576 págs. ISBN: 978-989-8142-10-8.

                    Cidades, História, Memória

                    Sud-Express

                    Hendaya

                    Fazer uma viagem, uma única viagem noctívaga e invernal, no Sud-Express, foi experiência rara, agarrada para sempre à pele e à memória. Esqueci os rostos, esqueci, mas rememoro os olhares dos velhos de trinta anos que olhavam tristes sob uma luz amarela e baça e fotografias coloridas à mão do Palace-Hotel do Buçaco. E, mais ainda que esses olhares, aquele cheiro doce e ácido, ao mofo profundo das cestas de vime, da cerveja choca derramada, das sandes de chouriço vermelho embrulhadas pelas mães, da roupa de domingo suja e amarfanhada, dos pés suados em peúgas tricolores. «Preconceito de classe», diria Victor. «Um quadro neo-realista» ensaiaria José. Com a marca profunda do que era, no pequeno país là-bas, a miséria mais indeclinável e verdadeira.

                      Memória, Olhares

                      Culpa e traição

                      Culpa

                      Em O Remorso do Homem Branco, de 1983, Pascal Bruckner combatia o masoquismo autoculpabilizador que após a Segunda Guerra Mundial tendeu a imputar à Europa e à América a responsabilidade por todos os males da História, opondo um Sul essencialmente radioso, habitado por belas pombas, a um Norte sempre agressivo, povoado de sanguinários chacais. Ali se propunha um encontro do Ocidente com o «Outro» que não dependesse da renegação da memória e dos seus valores. Em 2006, com O Complexo de Culpa no Ocidente, retomou o tema sob uma perspectiva um pouco diferente mas ainda mais controversa.

                      Agora a análise do sentimento de culpa é acompanhada pela prescrição de um tratamento. A tarefa proposta pelo autor francês consiste em «reconciliar a Europa com a História e os Estados Unidos com o mundo», ensinando à primeira «que não se ganham batalhas só com as armas do compromisso e do encantamento» e aos segundos «que não estão sozinhos na Terra». Tal implica a crítica de uma certa apatia política da Europa, sugerindo a possibilidade desta intervir sem complexos na transformação do mundo. Propõe-se assim «inverter a nossa relação com o passado», trocando o lamento pela convicção, a passividade pela força. Bruckner, um antigo «soixante-huitiard», apoiou em palavras e actos a eleição de Sarkozy: lendo este livro perigoso percebe-se melhor a sua traição.

                        Atualidade

                        Vozes do silêncio

                        Slavenka Drakulic

                        Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor foi escrito durante o ano de 1991, numa altura em que o volume de estudos, de memórias e de reportagens sobre a Europa de Leste crescia muito rapidamente, com um crescente público de leitores à procura de um universo que lhe era desconhecido ou que fantasiara. Resultado da experiência pessoal, familiar e profissional da autora – Slavenka Drakulic é uma jornalista croata que antes e após o início da fragmentação da Jugoslávia teve a oportunidade rara de visitar diferentes países de ambos os lados da «Cortina de Ferro» – nele se descrevem aspectos de um quotidiano com muitas características partilhadas na generalidade dos países que viveram a experiência do «socialismo real», questionando-se ao mesmo tempo, a partir do interior, a afirmação de um modelo que se autodefinia como triunfante. Ao mesmo tempo, nos 19 ensaios aqui reunidos, fá-lo a partir de uma perspectiva feminista, singular e relevante quando se sabe que o feminismo era praticamente inexistente naquele universo, e que as vozes femininas eram ali geralmente subordinadas a um discurso colectivista que excluía a sua representação autónoma.

                        Drakulic assevera, a dado passo, que quem tenha crescido na Europa de Leste aprendeu desde muito novo que a política não é um conceito abstracto, mas antes uma força poderosa e omnipresente, «que influencia as pessoas na sua vida de todos os dias». Tal significa que a sua leitura dos quotidianos que relata os insere na ordem política imperante, jamais atribuindo uma grande importância à sua articulação com particularismos históricos ou culturais. Deve reconhecer-se, porém, que a sua perspectiva crítica, por vezes arrasadora, é temperada pela nostalgia de um igualitarismo, entretanto perdido, que suavizava o baixíssimo nível de vida da generalidade das populações. Fá-lo em particular no ensaio que relata o seu confronto com a miséria e o abandono com o qual, quando ali chegou pela primeira vez, veio a deparar nas ruas de Nova Iorque. Mas por outro lado, por detrás da uniformidade de comportamentos percebe-se perfeitamente, na sucessão das informações e dos testemunhos apresentados, que ocorreram cambiantes e mesmo distinções entre os diversos países comunistas e no interior da própria Jugoslávia, o que tempera uma tipificação excessiva dos métodos utilizados pelas autoridades e dos processos utilizados pelas populações para se lhes adaptarem ou os contrariarem. Quando se afirma que «foi no plano da vida quotidiana, mais do que no plano ideológico, que o comunismo realmente fracassou», insinua-se como foi principalmente uma acentuada dificuldade de relacionamento entre governantes e governados que precipitou o seu fim. Assim se escreve a uma dada altura: «se os políticos tivessem olhado, uma vez que fosse, para dentro dos nossos guarda-fatos, caves, armários e gavetas – sem ser para confiscar livros proibidos ou propaganda subversiva –, teriam visto o futuro que estava reservado aos seus magníficos planos».

                        Notável também é a forma poética utilizada por Drakulic no processo da escrita, transformando cada um dos capítulos deste livro numa espécie de vinheta que ilustra a condição do cidadão comum e retrata o seu quotidiano sob a realidade do comunismo. O sentido de humor evocado no título, bastante menos presente afinal do que seria de supor, é assegurado pela maneira acentuadamente sarcástica de descrever o passado e, por parte daqueles que lhe sobreviveram, por um uso irónico da memória. Um livro datado, sem dúvida, mas muito útil.

                        Slavenka Drakulic, Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor. Tradução de Rui Pires Cabral. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-11-5. Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

                          Atualidade, História

                          I beg your pardon?

                          «Durante décadas, quando ser consumidor era praticamente o mesmo que ser comunista, guiávamos-nos todos por uma tabela que por cá nunca falhava: estrangeiro=melhor=mais caro. Quem fosse pobre ou tivesse um carinho fascista pela mediocridade, comprava nacional. Ou, pela calada, pedia a um fascista amigo para trazer do estrangeiro, onde era sempre mais barato.»

                          Entre escrever isto e estar sosssegado, dos já não muito verdes anos «colhendo doce fruito», eu optaria, sinceramente, pela segunda hipótese. De livre e espontânea vontade, of course. A prosa bizarra é de Miguel Esteves Cardoso – de quem apreciei, e ainda aprecio, muita da escrita – e não é um bom augúrio para aquilo que o Público nos promete para 363 dias de cada ano. Oxalá me engane, pois assim por assim prefiro ler blogues ao pequeno almoço.

                            Apontamentos, Recortes

                            Xeque ao Boris

                            Boris Pasternak

                            O rumor circulava há já algum tempo, mas agora, escreve o ABC e faz eco o Público, parece que se confirma. Boris Pasternak apenas terá ganho o Prémio Nobel da Literatura de 1958 porque, em cima da data-limite para a divulgação do vencedor, a CIA fez um esforço para que um original do Doutor Jivago impresso em russo – o livro tinha sido proibido na União Soviética e no ocidente apenas saíra em italiano numa edição de Gingiacomo Feltrinelli – pudesse chegar, por vias tortuosas, às mãos dos membros da Academia Sueca. O derrotado na corrida foi nada mais nada menos que Alberto Moravia. De Pasternak conheço apenas o livro citado, que li com algum esforço depois de tanto ouvir falar do filme de David Lean, e também alguns poemas dispersos, fosforecentes e rapidamente esquecidos, mas parece ser mais ou menos consensual que não existe paridade, em termos de valor absoluto ou comparado, entre a obra de um e de outro dos autores. A Guerra Fria estava no seu auge e tudo servia, de ambos os lados, para tirar o tapete ao adversário. É preciso sublinhar, para se medir a dimensão da cartada, que Pasternak, falecido dois anos depois da atribuição do prémio que não pôde receber, jamais terá tido conhecimento do que realmente se passou. Uma nova edição do best-seller do autor laureado, «pela primeira vez traduzido do russo» cinquenta anos depois do seu lançamento, acaba de sair em Portugal pelas mãos da Sextante.

                              Apontamentos, História

                              Delito no ar

                              Não sei qual a gavetinha na qual vai ser metido o novo blogue Delito de Opinião. Sei que integra algumas pessoas que me habituei a apreciar pelo rigor da escrita, a capacidade de afirmarem convicções e a frontalidade da opinião. Mesmo quando delas possa discordar um pouco ou algo mais. A seguir, sem qualquer dúvida.

                                Novidades, Oficina

                                Da guerra cega à paz possível

                                Na Palestina

                                A guerra não é um grande momento para subtilezas e elegâncias, salvo para quem, numa confortável posição de segurança, dela se queira servir como de um tabuleiro de xadrez. Quando a vida e a morte se confrontam, quando o medo e a impiedade se olham de frente, é impossível pensar com ponderação e falar serenamente. Qualquer pessoa sabe disso, mas sabe-o melhor quem já esteve sob fogo em teatro de guerra. Nesses momentos a linha que separa coragem e cobardia, o júbilo e o lamento, frieza e descontrolo, torna-se invisível, e qualquer um, em poucos segundos, pode passar de cordeiro a lobo. Ou o contrário. Na guerra que vivi, pude ver homens religiosos dispararem sobre crianças (e vi depois essas crianças mortas), seres que me habituei a reconhecer como pacíficos a perderem totalmente a compostura e a chorarem como bebés. E o contrário também: pessoas em quem nem tinha reparado que, num repente, foram buscar forças e coragem a um lugar desconhecido. Nestas alturas, todos dizem o que lhe vem à cabeça, gritam ou ficam imobilizados, disparam à toa ou foge, fazem juras de ódio que podem tornar-se letais quando transportam ao ombro uma espingarda-metralhadora.

                                Mesmo longe desses lugares terríveis, olhando-os nos monitores coloridos das nossas televisões e dos nossos computadores, esse envolvimento emotivo assalta-nos o raciocínio, torna-nos cegos e impulsivos, sendo preciso algum sangue-frio para conseguir discorrer sem levantar a voz sobre aquilo que vemos. Tarefa quase impossível, como se pode ver pelos posts que lemos sobre a guerra terrível que ocorre em Gaza, com quase todos a escreverem frases com pontos de exclamação, tomando um e outro dos lados em confronto, guardando para melhores dias a possibilidade de se questionarem sobre tudo aquilo que podem ver. Claro que os completos consensos jamais serão possíveis e que sempre existirão pessoas para quem o mundo é apenas branco-alvo e preto-carvão: essas só gritam contra a guerra porque um dos lados da brutalidade nela leva a melhor, mas anseiam pelo dia da vingança, no qual agredirão o agressor. Hoje, numa viagem matinal pela blogosfera lusitana, encontrei até um texto que compara aos nazis os responsáveis palestinianos da Fatah que se opõem ao Hamas. Outro identifica «inequivocamente» a causa da Palestina com um sinal do avanço do «fundamentalismo islâmico». Outro ainda diz da violência israelita ser esta «pior que o Holocausto». E a maioria dos comentadores, mesmo alguns dos mais clarividentes e respeitados, vê apenas a agressão israelita, não referindo que os responsáveis do Hamas possuem como meta declarada, para a qual apontam sem concessões, a «destruição de Israel», e que foram eles a quebrar o cessar-fogo, contra a posição negociadora da Fatah. Como ignoram a existência de um amplo movimento israelita a favor da paz e de um grande número de objectores de consciência que, contra o expansionismo sionista, propõem uma abordagem do conflito que passe pela aproximação entre vizinhos historicamente destinados a entenderem-se.

                                Observamos por todo o lado manifestações cegas, claras deturpações e mesmo mentiras (o «subcomandante Marcos» chegou ao ponto de inventar uma declaração inexistente de Barack Obama sobre o seu apoio à invasão de Gaza). E reconhecemos posições que, de tão marcadas pela «ira da guerra», se mostram inúteis, contraditórias e perigosas. Não parece que devamos ir para a rua gritar indiscriminadamente «a favor do Hamas» ou «contra Israel», sendo apenas «pelos palestinianos» e «contra os judeus». Nem escolher obrigatoriamente a posição contrária, de aplauso de tudo aquilo que o governo israelita resolva fazer, incluindo o bombardeamento metódico de populações civis com as quais os «heróicos combatentes» do Hamas resolveram misturar-se. No levantamento de uma forte corrente da opinião pública internacional, partilhando a convicção de que a paz é possível – a paz, não apenas mais um cessar-fogo – e pressionando os governos para que tomem iniciativas sérias nesse sentido, residirá mais tarde ou mais cedo uma boa parte da solução.

                                  Atualidade, Democracia, Opinião