Arquivos Mensais: Maio 2011

queixa não censurada de um democrata do ano inteiro

campanha

sei que não são todos iguais, mas a excepção faz a regra. não gosto, não gosto mesmo, de políticos em campanha. por muito honestos que sejam ou aparentem ser, nas suas propostas como nas suas vidas, existe sempre um sorriso a mais, uma palmada nas costas que parece supérflua, um beijinho claramente excedentário, um panfleto que se impõe a contragosto, um cheiro, ainda que ténue, a axila e a demagogia do qual bem podemos prescindir. pior ainda é o espectáculo dado por muitos daqueles que os recebem lá na terra ou no bairro. com banda trajada a preceito, criteriosas palavras de circunstância e uma incontida alegria artificial, lá estão eles nas praças e nas ruas à espera do audi, vestidos de varinas, de bombeiros, de moços-forcados, de noivas minhotas, de judocas, de meio-maratonistas, de zés-pereiras, de  mulheres partidárias, de jovens jotas, de povo-povo, com lenço e boné a condizer com a cor da bandeira. e há depois os mega-almoços, com cantores entre o proto-pimba e a pós-intervenção, copos de plástico atestados de sumol de ananás, croquetes marados, feijoadas mete-nojo, azeitonas manhosas e pães com manteiga que todos enfiam na boca atulhada enquanto se tratam por companheiros, por camaradas, por ó pá, ó doutor, ó engenheiro, olhe qu’agora é que vai ser. as campanhas, digo-vos eu, deviam ser interditas a grandes grupos. afinal sempre há a televisão, a internet, os jornais, a caixa do correio, a sessão de esclarecimento, os outdoors identificados, ou o contacto porta-a-porta como o fazem os mórmones, as testemunhas de jeová, os angariadores da cabo-tv e os mordomos das festas da padroeira. deveria criar-se um serviço grátis de desintoxicação eleitoral. e uma ponte aérea para que todos nós, os democratas do ano inteiro, pudéssemos emigrar nestas alturas para uma estância termal nas ilhas faroë. retornando, claro está, a tempo de votar em quem merece. ou quase.

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    Contra e por

    Stéphane Hessel

    Indignai-vos!, o livro-libelo de Stéphane Hessel, tem servido para defender que a mudança de um real injusto, tantas vezes imposto como inevitável, começa pela capacidade de nos indignarmos perante os poderes que o determinam, rebelando-nos contra eles. E tem servido também para municiar uma insurreição pacífica contra as vozes «que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos». Hessel, hiperactivo aos 93, acaba entretanto de publicar um novo livro, Engagez-vous! (Comprometei-vos!), constituído por uma conversa com o diplomata Gilles Vanderpooten ao longo da qual menciona o beco sem saída no qual pode cair a indignação pela indignação. Defende que esta deve unir-se obrigatoriamente a uma noção de compromisso, de empenhamento para produzir algo de concreto, de objectivo, superando a pura negação através de propostas capazes de unirem e de estimularem uma mudança consistente. «Enfadar-se apenas», diz Hessel numa entrevista ao El País, «não tem sentido para mim», acrescentado que a pura ira «não conduz a parte alguma, deve ser seguida de compromisso.» Uma sugestão vinda de quem anda há quase oito décadas envolvido no combate político e social e claramente dirigida a quem se aplica, criando condições para o rápido retrocesso e a depressão pós-revolta, a indignar-se sem apresentar propostas consistentes e sem dialogar com quem é possível dialogar, de modo a gerar as empatias que autorizam a verdadeira mudança. Um aviso para quem se preocupa principalmente com o «contra», descurando o «por». A indignação pura que leva ao protesto – vemo-lo claramente por estes dias, como há muito não acontecia –  é por vezes urgente, dramática, imperativa, mas não pode ser um fim em si. Sob pena de se autodestruir e de levar consigo aqueles que lhe dão a voz.

    Bónus: 5 minutos de conversa com Stéphane Hessel

      Atualidade, Democracia, Opinião

      Na arqueologia do contemporâneo

      O cigarro

      Parece uma extravagância e provavelmente é-o, mas comecei há uns anos a coleccionar palavras a caírem em desuso. Não me refiro às de um arcaísmo patente, já só conservadas em livros, jornais e cartas antigas, mas sim àquelas que ainda são utilizadas e das quais se servem apenas algumas pessoas das gerações mais velhas, membros de determinados agrupamentos políticos ou cidadãos socialmente agregados por certas práticas e rituais. Apenas um exemplo: a palavra «larápio», à qual ninguém recorre agora quando quer nomear o ladrão, pouco me interessa, mas «gatuno», que já só aparece nas imprecações dos estádios de futebol – naturalmente dirigidas ao infeliz árbitro da partida e intercaladas com ofensas à sua progenitora – ou no discurso político da direita e da esquerda mais arcaicas, é um must. Talvez este seja um tique profissional, forçado que estou a seguir, se não se quiser tornar-me críptico para quem me ouve em aulas e seminários, a mudança cada vez mais veloz e ziguezagueante dos vocábulos e dos seus sentidos.

      Entretanto iniciei outra colecção. Desta vez a dos gestos que estão a evaporar-se ou deixámos de encontrar no dia-a-dia deste lado de cá do hemisfério norte. A primeira peça da colecção retirei-a de um filme dos anos 50, a preto e branco, visionado ao acaso no YouTube. Ela documenta o hábito cada vez mais proscrito de fumar fazendo desse acto uma parte importante do jogo social: aquele modo único, pouco higiénico mas que funcionava como marca de à-vontade, de estilo, por vezes de provocação, de apagar o cigarro, dentro de um café, no hall do cinema ou numa repartição pública, atirando-o ainda incandescente para o chão e esmagando-o sem piedade com o tacão ou a sola do sapato. Uma marca de macho ou de «mulher da vida» que, se repararem, quase desapareceu do nosso horizonte. Tal como engraxar os sapatos em público, cuspir para o lado sem qualquer aviso, usar um pente no bolso posterior das calças e servir-se dele com regularidade, limpar os ouvidos com o mindinho ou tamborilar com os dedos em cima do balcão do bar enquanto se espera pela cerveja gelada. Espera-me pois uma missão na arqueologia do contemporâneo. Pouco urgente, mas uma missão.

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        No cinema com Hector Barbossa

        Barbossa & Sparrow

        Como gosto de filmes de «entretenimento, acção, aventura» e tenho um especial carinho pela figura ficcional do pirata – bem mais pela ficcional do que pela histórica, embora também possamos reconhecer piratas dos verdadeiros com um trajecto assombroso – fui ver «Por Estranhas Marés», o quarto filme da série O Pirata das Caraíbas, desta vez dirigido por Bob Marshall. Resultado: uma desilusão profunda, uma irritante experiência de tédio e a sensação pós-visionamento de 10 euros e 137 minutos de vida esbanjados. A movimentação dos actores, puramente coreográfica, tem algo de jogo para PlayStation, e provavelmente será essa mesmo a ideia, já que deparei, por comparação com os anteriores episódios, com uma clara infantilização do argumento, dos personagens e dos diálogos. Estes são agora deploráveis, primários, com tudo «bem explicadinho», prontos para um público pouco exigente e não preparado para subtilezas e citações. As sequências amorosas – as do casto missionário com a sereia ingénua, ou as que envolvem Johnny «Sparrow» Depp, desta vez com os maneirismos do personagem exagerados até à caricatura, e uma Penélope Cruz que aqui mais parece uma esforçada actriz de teatro amador – são de um bocejo indescritível. E a piorar a experiência, um inquietante sinal dos tempos: como é possível fazer um filme de piratas sem tabaco e quase sem álcool? Salva-se a intervenção da única personagem que conserva uma certa dignidade «pirática» e que é desde o início da série a minha favorita. Sim, refiro-me ao imprevisível, bem-humorado, e tão canalha quanto generoso, Capitão Hector Barbossa, de novo interpretado por Geoffrey Rush, que é de longe o melhor actor de todo o casting. Se querem mesmo ver o filme, então abstraiam-se do omnipresente Jack Sparrow – agora tão enjoativo quanto as pipocas do espectador da fila da frente – e sigam as pisadas do «perna de pau».

          Cinema, Fotografia, Olhares

          Escadas pintadas

          As escadas

          Três curtos parágrafos sobre o «caso» da pintura das Escadas Monumentais da Universidade de Coimbra com propaganda eleitoral do PCP-CDU e da manifestação canalha e desproporcionada de uns quantos estudantes universitários, de negro trajados e com o estranho apoio da direcção da Associação Académica, que para a contestar se lhe seguiu.

          Qualquer pessoa com alguma sensibilidade estética e sem uma perspectiva politicamente utilitarista que realmente tenha visto a «obra» – já ali projectada, aliás, noutras ocasiões eleitorais – sabe que não é um primor visual. Apesar de ser absolutamente legal, tal como a CNE acaba de confirmar, seria no entanto escusada, uma vez que se trata de propaganda algo agressiva, que com aquelas proporções é ecologicamente desajustada ao local. Não importa quem a realizou: se fosse o Bloco de Esquerda ou o CDS, a situação seria rigorosamente a mesma. Falamos não de um mural mas de uma pintura sobre a via pública, num local de passagem inserido na malha urbana da Universidade, onde todos os dias circulam obrigatoriamente muitos milhares de pessoas de todas as tendências ou opiniões, que não deveria sofrer intervenções desta natureza. Aliás, também não me agradaram as criações pseudo-artísticas e de diferentes origens que ali foram realizadas noutras alturas. Em causa está sobretudo o facto de se tornarem por vezes tão fortes, tão impositivas, tão «gritadas», que impedem os cidadãos de cruzarem a área de forma clean, fazendo a sua vida normal na fruição de uma cidade já de si bastante martirizada no equilíbrio das formas e dos espaços.

          Todavia, a posição tomada pelo grupo de estudantes, que se serviu do facto para boicotar um comício do PCP-CDU, já me parece oportunista e absolutamente condenável. Foi, aliás, feita não em tom de crítica, mas sim sob a forma de gritos e de impropérios ofensivos, fazendo com que se perdesse a razão que poderia ser reconhecida a qualquer reparo. Já a posição da organização em causa, ou de alguns dos seus defensores, também foi exacerbada e num desajustado mas recorrente estilo «vitimizante». A mim, o que aconteceu parece antes uma mera expressão de parvoíce e de incultura democrática, vinda aliás de núcleos dessa estúrdia estudantil que nos anos oitenta os próprios estudantes da JCP, antecessores dos actuais, talvez sem o querer ajudaram a recriar. Mas essa é outra história, que fica para melhor altura.

            Atualidade, Cidades, Coimbra, Olhares

            Indiferença e indignação

            megafone

            Circulam ventos contraditórios. Em sociedades bloqueadas e em estado crítico como aquela em que vivemos, a indiferença e a indignação crescem de forma rápida e significativa. Nada garante no entanto que elas não possam encontrar-se. E que desse encontro não resulte, como já aconteceu no passado, algo que pouco ou nada tenha de bom.

            A multiplicação das manifestações, dos movimentos, dos blogues, das petições, dos acampamentos em praças, dos grupos activos nas redes sociais, engana um pouco. Ela congrega um grande número de pessoas, sem dúvida. E aquilo que estas fazem é importante, tem quase sempre motivos fortes e compreensíveis, mas nem por isso elas deixam de constituir uma imensa minoria. À lógica da indignação, ainda há pouco gritada pelo veterano Stéphane Hessel, sobrepõe-se então a dinâmica negativa da indiferença, associada ao desânimo e por vezes à depressão. Basta sair do círculo activista e falar com jovens universitários, para ver como a generalidade permanece desinteressada, se não ignorante, das dinâmicas da mudança e das possibilidades de redenção. A energia negra do neoliberalismo anestesiou as consciências, enquanto uma democracia pobre instalou a convicção de que cada um se deve procurar desembaraçar por si, de que as dinâmicas solidárias são um mal ou mesmo um perigo, de que a política é uma selva povoada de oportunistas e de que é impossível fazer alguma coisa contra isso. (mais…)

              Atualidade, Olhares, Opinião

              Tecnologia e conflito

              Em viagem

              Num artigo da Wired de Junho que saiu ontem, o autor, Brendan Koerner, dialoga com um leitor, real ou forjado, que lhe conta ter sido repreendido por um estranho pelo facto de usar o seu iPad num autocarro nova-iorquino, o que o transformaria, de acordo com as palavras um tanto irritadas desse estranho, em alvo potencial, e provavelmente justificado, de um assalto ou mesmo de uma tentativa de homicídio. Nem tanto pelo valor monetário do aparelho, que ainda assim seria fácil vender numa rua menos iluminada por quaisquer 500 dólares, mas antes pelo que representava para o potencial agressor a exibição de uma tecnologia que significa conhecimento, mobilidade e acesso a universos de comunicação infinitos e desejáveis. A repreensão parece fazer sentido, tal como o perigo invocado se afigura verdadeiro, remetendo-nos para um território de violência, urbana e selvagem, no qual pode tornar-se difícil gerir a própria integridade física.

              Utilizador regular e intensivo dos aparelhos de comunicação e lazer da tríade i da Apple, percebo o perigo e o mal-estar que esse uso pode causar aos outros. Apesar deles me servirem como instrumentos de trabalho, já me tenho inibido de usar em público o iPad ou o iPhone – o iTunes, o único exclusivamente voltado para o lazer, é o mais humilde de todos e passa facilmente por tecnologia barata – justamente por perceber o seu uso como uma potencial agressão aos cidadãos com quem partilho a sala de espera do centro de saúde ou a gare da estação de comboios. Aquilo que me preocupa, porém, não é ocorrência ocasional da situação, na expectativa desta poder ser alterada pela melhoria das condições de vida e de acesso à tecnologia por parte da maioria das pessoas. É antes a consciência de que, no tempo que agora passa, o fosso entre os que têm muito ou o suficiente (em dinheiro, informação, capacidade para comunicar, direito aos sonhos) e os que nada disso podem ter ou sequer desejar, tende a aumentar, produzindo situações de conflito. Criar-se-á então, numa situação extrema, a necessidade de, para usarmos um aparelho que serve para nos ligarmos aos outros, precisarmos de isolamento em ambientes reservados. Já é assim em Calcutá, no Rio ou em Lima. Provavelmente, em breve assim será aqui também.

                Atualidade, Cibercultura, Olhares

                70 (Don’t Look Back)

                Bob Dylan

                Vamos lá a uma cena um bocado retro. O ano era 1968, com toda a certeza. Do mês não me recordo bem, mas sei que tinha faltado às aulas para ir à matinée. Como já estava um bocado de calor, podemos supor que era Maio. Soa bem contar que isto aconteceu, e provavelmente aconteceu, no final de uma tarde de Maio. De 68. Um casal de namorados, que se tinha sentado umas filas à frente, não aguentara as desafinações de Bob Dylan em Don’t Look Back e fora-se embora a resmungar em surdina. O projeccionista escondia-se no seu cubículo, protegido pelo foco de luz. O arrumador desaparecera. E enquanto em Paris se erguiam barricadas e se marchava pelas ruas aos gritos – «Ce-n’est-q’un-début-continuons-le-combat!» –, fiquei absolutamente só, espectador único na sala escura de um cinema de província malcheiroso e desconfortável, a imaginar mundos possíveis. No Verão, estava decidido, iria estoirar as economias a comprar uma guitarra e uma harmónica. E mudaria de vida. Eu tinha quinze anos e Robert Allen Zimmerman, o rapaz do ecrã, raios o partam, deus o abençoe, faz hoje 70.

                [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=VY4HtQ-XJQE[/youtube]
                  Memória, Música, Olhares

                  Esboços da utopia

                  originalmente publicado em heterodoxias|21

                  O governo soviético da década de 1920 foi o primeiro da História a deter um poder de tal forma pleno e colossal que lhe permitiu conceber de raiz redes de grandes bairros e até cidades inteiras, determinando rigorosamente o número, a dimensão e o desenho dos edifícios e das ruas, bem como a taxa de ocupação em cada área ou estrutura. Podia também escolher sem constrangimentos onde construir, como projectar o crescimento, como articular os novos espaços dentro de um equilíbrio idealizado entre a cidade e o campo, chegando a conceber e tipificar o aspecto, a exacta localização e mesmo o pormenorizado funcionamento das fábricas, dos escritórios, das escolas, dos hospitais, dos armazéns e dos edifícios destinados à habitação. O planeamento urbano num Estado todo ele planificado – que foi aquilo em que a Rússia soviética se transformou a partir de 1928 com a entrada em funcionamento do 1º plano quinquenal – não era uma ocupação menor; tratava-se, de facto, de organizar em larga escala e a partir da base, num esforço de design macro-comunitário, todo um universo que se pretendia radicalmente novo e profundamente dinâmico. Diante de tal projecto, como não compreender o entusiasmo dos quadros políticos, engenheiros, arquitectos, economistas ou geógrafos a quem foi atribuída essa tarefa gigantesca? (mais…)

                    Artes, Cidades, História, Olhares

                    E foi assim que a Alemanha…

                    Merkl

                    Tomo conhecimento das novas exigências de Frau Merkl a propósito dos dias das férias e da idade da reforma dos portugueses, e ponho-me uma pergunta que não tenho visto suficientemente colocada. A negociação de uma dívida, seja ela de que natureza for, implica uma intromissão na vida familiar do devedor? Se eu pedir dinheiro emprestado para consertar a casa ir-me-á agora o banco forçar a provar que não gasto dinheiro em coisas supérfluas como jornais, espectáculos de teatro ou refrescos de groselha? E uma outra, ainda mais necessária e inquietante: não estamos a assistir a intromissões completamente abusivas em matérias que respeitam ao grau de independência próprio de um Estado soberano? Admito que quem empresta reivindique certas garantias – já os antigos usurários ou os donos dos estabelecimentos de «prego» o faziam, e além disso os bons samaritanos ficaram-se pelos tempos bíblicos – mas tal jamais implicou que a vida de quem se vê forçado a recorrer a esse expediente extremo passe a ser escrutinada, controlada, determinada pela vontade de quem mexe os cordéis da bolsa. Tudo isto começa a ficar parecido, demasiado parecido, com o caldo de cultura do qual saíram as regras autocráticas impostas pela diplomacia de Ribbentrop e a política de ocupação e rapina do Terceiro Reich. Mas foi também por causa delas que a Alemanha perdeu a guerra.

                      Atualidade, Memória, Olhares

                      Duzentos mil

                      Coreia do Norte

                      Como motivo de apreensão, sabemos que não é esta de momento a nossa prioridade. Mas se quisermos – como o provaram, no limite, as atitudes corajosas de tantas vítimas e sobreviventes dos campos de concentração ou extermínio – mesmo nas piores condições pode e deve criar-se um espaço destinado impedir que as desgraças dos outros sejam vividas num silêncio que só as agrava. Quando pouco ou nada podemos fazer para as minorar, podemos, pelo menos, tudo fazer para que esse sofrimento possa ter algum sentido. Por isso, e de acordo com um extenso relatório divulgado há dias pela Amnistia Internacional, não pode passar em claro que os campos de presos políticos da Coreia do Norte são afinal ainda maiores e piores do que até há pouco se pensava, contando nesta altura com cerca de 200 mil pessoas detidas.

                      Sucedem-se as execuções, o trabalho escravo tornou-se a regra, a tortura e a fome são uma constante. A Amnistia teve acesso a imagens de satélite que conseguem determinar a localização e o tamanho dos campos de prisioneiros políticos, tendo reunido também testemunhos de antigos detidos e de ex-guardas prisionais. Estes permitiram traçar um quadro negro e muito preocupante das condições de vida nesses campos. É possível que o aumento das prisões esteja relacionado com a tentativa de impedir perturbações numa altura em que aparentemente se assiste a uma transferência de poder em Pyongyang. Mas nada do que se passa é aceitável ou justifica, como tantas vezes se passa deste lado do planeta, que continue a praticar-se o crime de omissão.

                      Pode entretanto, assinar aqui, uma petição pedindo o encerramento do campo da Yodok, o maior e sem dúvida um dos piores.

                        Atualidade, Democracia, Olhares

                        Tranquilidade e resistência

                        M. Onfray

                        La Puissance d’exister, de 2006, é apresentada pelo filósofo francês Michel Onfray como um manifesto, retomando nessa qualidade alguns dos seus temas mais caros: um pensamento e uma intervenção abertamente libertários, a defesa do hedonismo enquanto «dispositivo de resistência», uma sexualidade liberta por uma vez da pesada ganga judaico-cristã e burguesa, um ateísmo pós-cristão, a valorização objectiva do lugar social do rebelde. Talvez esteja justamente nesta qualidade de síntese, de revisitação, de «ponto da situação» como o autor reconhece, o grande interesse que tem para o leitor a iniciar-se no reconhecimento do trabalho de Onfray, sempre proposto como uma ferramenta para «voltar a encantar o nosso tempo melancólico com a proposta de um pensamento a viver.» O autor fala do Maio de 68 principalmente como «um trabalho que não foi levado até ao fim», e logo como tarefa a completar. Define a revolução como um trabalho perseverante e ininterrupto, assente numa capacidade individual de superação que, evocando mais o conceito camuseano de revolta, se encontra inscrita «no progresso do espírito humano.» No final, formaliza uma declaração de princípios já intuídos ao longo do livro. «Uma sociedade anarquista» totalmente esvaziada da intervenção regular do Estado parece-lhe sempre associada, como hipotética solução, a «uma perspectiva sinistra e improvável». O objectivo que prescreve é por isso bem diverso: criar as condições para a afirmação, no interior das actuais sociedades democráticas existentes, de possibilidades individuais ou comunitárias de alcançar «uma ataraxia real», de espaços de tranquilidade, de serenidade, capazes de tornarem a vida menos carregada, menos penosa, com lugar para o treino e a afirmação de uma atitude hedonista. Uma configuração da acção que, à entrada deste segundo decénio do século, parece conter algo de escapista. É provável que assim seja, mas talvez venha justamente daí a capacidade de sedução que o pensamento de Onfray exerce sobre os seus fiéis leitores.

                        A tradução portuguesa, intitulada A potência de existir, foi editada em 2009 pela Campo da Comunicação.

                          Atualidade

                          Longe do Paraíso

                          Orwell

                          Publicado em 1933, Down and Out in Paris and London (Na Penúria em Paris e em Londres, em tradução frágil que se tornou «norma») é um pungente testemunho da experiência da pobreza, dos seus efeitos sobre os comportamentos e da própria consciência individual do ser-se pobre. A vivência do desamparo não resultou em Orwell, filho de um country gentleman de Dorset e de uma herdeira do Conde de Westmorland, da imposição das circunstâncias. Foi à sua procura porque queria conhecê-la, buscou-a pois «queria viver entre os oprimidos, estar no meio deles», porque pretendia partilhar, como escritor mas também como militante convicto da causa do socialismo, das condições de existência da maioria dos humanos. A sua percepção de determinados factores associados à condição do indigente – o tédio da existência degradante, a ausência intensamente depressiva de uma perspectiva de futuro, a despersonalização e o individualismo, a violência usada como instrumento de sobrevivência ou até como vestígio de dignidade – jamais deixou de ter a marca inerente à condição social e intelectual que o escritor detinha, mas nem por isso foi menos perturbante, funcionando, a par da experiência colonial na Birmânia, como factor determinante na construção da sua consciência política e do modo de viver que escolheu.

                          Neste relato circunstanciado e dorido sobressai então, por detrás da miséria humana mais extrema, a decisiva vertente solidária. Deixou gravado um momento de epifania, lembra o seu biógrafo John Newsinger, quando descreveu como em Paris, um certo dia, ajudou um vendedor ambulante a endireitar uma carroça que se havia virado em plena rua. «Obrigado, companheiro», agradeceu-lhe o vendedor com um sorriso. «Ninguém ainda me chamara assim “companheiro” em toda a minha vida – era o efeito das roupas a manifestar-se já», escreveria, falando dos efeitos sociais produzidos pelo seu próprio aspecto descomposto e exaurido. Por detrás do egoísmo imposto pela luta diária pela sobrevivência, encontrou assim um princípio de solidariedade que unia os excluídos, no qual jamais deixou de acreditar e pelo qual continuaria sempre a bater-se, mesmo quando, já perto do final de uma vida curta, se aproximou de um partido então já institucional como o Labour, ainda que o tenha feito junto da ala mais à esquerda. (mais…)

                            Heterodoxias

                            O almoço

                            O almoço

                            Não, não retirei isto de um romance com as folhas amareladas de Alves Redol ou de John Steinbeck. Quando tinha uns seis ou sete anos costumava acompanhar o meu pai, na altura representante de uma companhia de produtos químicos, em visitas periódicas às fábricas de lanifícios da minha região. Lembro-me muito bem, muito bem mesmo, de entrar em instalações antigas, algumas ainda com grandes máquinas a vapor, que alimentavam negócios aparentemente prósperos devido aos baixos salários e às péssimas condições de trabalho impostas aos operários. Não havia sequer «hora do almoço» tal como a concebemos hoje: bastavam uns minutos para eles comerem, controlados pelo encarregado, uma marmita de arroz acompanhada de pão e de uns goles de vinho. Tudo começava e acabava ao som de um apito – ainda o oiço perfeitamente –, ali, no soalho de pedra ou na relva, ao lado da máquina durante o inverno, ou do lado de fora, à sombra de um eucalipto, quando o tempo aquecia.

                            Hoje mesmo, num centro comercial amplo e moderno, paredes meias com a área da restauração onde fui comer com todo o conforto um almoço rápido, vi um grupo de mulheres idosas e vestidas de escuro, acompanhadas por algumas crianças, visivelmente chegadas de um Portugal que parecia de outras eras. Sentadas também no chão, com a complacência dos empregados da empresa de segurança, comiam calmamente, as sandes de broa de milho com chouriço e as laranjas que traziam consigo embrulhadas em lenço. O que mais me impressionou, aquilo que mais temo, é que esta cena não me pareceu configurar um vestígio raro e anacrónico de um passado em vias de desaparecer, mas sim desenhar, como num último ensaio, a antevisão daquilo que aí vem.

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                              Púbicos pêlos, públicas virtudes

                              keep brushing

                              Como a maioria dos portugueses atentos ao que acontece no mundo real – ou seja, no YouTube – franzi o sobrolho e sorri ligeiramente quando vi o putativo ministro das Finanças de um incerto governo PSD servir-se num programa televisivo da expressão «andam a discutir ‘pintelhos’». Assim mesmo, como diz o povo que não tem dicionários capazes de sabiamente converterem o «i» em «e». Mas o pasmo não ficou a dever-se à expressão em si. Todos a conhecemos, apesar da minha avó ter preferido «andam a falar de coisas que não valem dez réis de mel coado» e de muitos de nós, entre os quais me incluo, gostarem mais de recorrer aos moluscos gastrópodes terrestres de concha espiralada calcária vociferando «andam com um raio de uma conversa que não vale um caracol». A surpresa relacionou-se, isso sim, com o facto dela ter saído da boca de uma figura com a qual o PSD, partido que deseja vender uma imagem de circunspecção à medida do seu precocemente circunspecto presidente, pretende conquistar credibilidade pública. Mas terminou aqui a chalaça, pois já não me parece nada engraçado, ou sequer útil, usar a gafe para atacar o partido ou Catroga, seu – isto sim um fenómeno do domínio do paranormal – não-militante e porta-voz. Não vejo que interesse pode ter servirmo-nos de um deslize, que até humaniza o personagem, como arma de arremesso político. Aliás, já achei a mesmíssima coisa na altura do «porreiro, pá» de um conhecido político da Beira interior, ou dos chifres parlamentares ostentados por outro. É que o povo até gosta destas coisas, pá. Vão por mim e deixem-se de pentilhices.

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