Arquivo de Categorias: Leituras

O fim de um tabu

Apesar de conservar um rastro visível e constante na vida pública nacional das últimas quatro décadas, parte significativa do processo de descolonização de Angola tem permanecido em boa medida calada. As causas deste silenciamento são diversas. Há desde logo a influência da narrativa oficial, produzida pelas autoridades portuguesas em circunstâncias históricas complexas e dramáticas logo nos anos de 1974-1975, a qual foi ocasionalmente contrariada mas jamais revista. Outra causa tem a ver com o uso recorrente de relatos – geralmente impostos por setores politicamente conservadores ou emocionalmente envolvidos nos acontecimentos – mais pontuados pela nostalgia, pelo rancor ou pela incompreensão que por uma tentativa de perceber realmente aquilo que aconteceu. Além disso, o que se passou em Angola naquele período foi de certa forma empurrado para segundo plano pelos terríveis caminhos da violência ali percorridos após a independência do país. (mais…)

    História, Leituras, Memória, Olhares

    Humor e resistência

    Conta o ator e apresentador australiano Ben Lewis que uma das fontes das quais se serviu para escrever «Foice e Martelo», um divertidíssimo livro sobre o manancial de piadas que circularam à socapa por todo o leste europeu antes da queda do Muro de Berlim (edição portuguesa da Guerra & Paz), foi «1001 Anedotas», volume da autoria do professor eslovaco Jan Kalina publicado em 1969 na cidade de Bratislava. Nele se compilavam pequenas histórias que corriam nos países do «socialismo realmente existente» satirizando os vícios dos regimes de partido único e dos seus burocratas. Vale a pena retomar a pequena história desta obra e dos efeitos que ela teve na vida do seu autor. (mais…)

      Apontamentos, Democracia, Devaneios, História, Leituras

      Mitos do senso comum

      Um dos resultados da crise financeira iniciada em 2008 foi a propagação de um conjunto de fábulas que, sob a forma de inquestionáveis «verdades», aparentemente tendem a determinar a inevitabilidade do «modelo neoliberal», apesar do seu estado comatoso. Dito de outra forma: a gravidade dos problemas surgidos em catadupa provocou em boa parte da opinião pública, não a rejeição mais ou menos radical deste modelo, mas antes a afirmação, aparentemente consensual, do princípio segundo o qual tudo o que aconteceu de mau se ficou a dever a décadas de políticas que ampliaram o papel do Estado social, restringiram a liberdade dos mercados e impediram a hegemonia da iniciativa privada. É com este pano de fundo, e com uma intenção assumidamente militante determinada pela necessidade de dissolver tais fábulas e de desconstruir falsos consensos, que um sociólogo, um historiador e um geógrafo compilaram testemunhos de especialistas capazes de os contestarem de forma documentada, consistente e ao mesmo tempo pedagógica. Na introdução, declaram a necessidade de se oporem a essa «fabricação do consentimento» que tem nas ideias do senso comum uma das mais poderosas forças motrizes. «Repetidas pelo discurso político, reproduzidas nas conversas de autocarro, reforçadas pelas histórias de alguma comunicação social», estas ideias são, na sua opinião, «essenciais no jogo de representações» que tem transformado o evitável em inevitável e tendido a qualificar como luxos um conjunto de direitos sociais e de fatores de qualidade de vida conquistados ao longo de décadas. (mais…)

        Atualidade, Ensaio, Leituras, Opinião

        História a debate

        diogorc

        Nos últimos vinte anos teve lugar em Portugal uma nítida ampliação do conhecimento histórico, tanto ao nível do volume, da qualidade e da diversidade temática dos trabalhos académicos, quanto nos domínios da atividade editorial, da repercussão pública de determinados temas e da produção jornalística a eles associada. No entanto, tal alargamento não tem sido acompanhado por uma reflexão sistemática e convenientemente aprofundada sobre os sentidos da história como saber e sobre a dimensão do historiador como agente produtor e reprodutor de cultura. Investiga-se e escreve-se mais, sem dúvida, mas não se pensa de forma sistemática aquilo que vai sendo produzido. Existem todavia exceções e uma delas está associada à intervenção de Diogo Ramada Curto. Este Para que serve a história?, composto por vinte e quatro reflexões da sua autoria, editadas maioritariamente no diário Público, parte justamente da constatação dessa ausência. Não é por acaso que, no sentido de a contrariar, toma Marc Bloch – o pioneiro da renovação historiográfica dos Annales e o defensor do compromisso do historiador com a cidadania que os nazis assassinaram – como uma referência primordial. (mais…)

          Ensaio, História, Leituras

          O Holocausto e os portugueses

          Após décadas de silenciamento ou desinteresse, os últimos anos têm conhecido o gradual desvendamento da história das relações do Estado português com a política de antissemitismo militante da Alemanha nazi e a perceção, finda a guerra, do reconhecimento público dos processos de barbárie do Holocausto. Neste livro, Irene Flunser Pimentel e Cláudia Ninhos, duas historiadoras de gerações diferentes, oferecem um contributo valioso para superar essa falha, fazendo-o através de um trabalho que integra o reconhecimento do pouco e disperso que sobre o assunto foi publicado associado a um enorme manancial de informação nova e relevante, impondo-o como de leitura obrigatória para quem estude ou pretenda conhecer melhor a evolução da política externa e da sociedade portuguesa durante a Segunda Grande Guerra. Divide-se em duas partes separadas pelos assuntos abordados e pela cronologia: uma sobre o «problema judeu» em Portugal e na Alemanha nas vésperas do conflito; a outra ocupando-se da forma como este foi vivido na Europa e em particular no nosso país, enfatizando o papel do Holocausto e os processos que aqui levaram ao seu reconhecimento público. (mais…)

            História, Leituras, Memória

            Lincolnmania

            Ao mesmo tempo que a vida de Abraham Lincoln tem sido objeto de um interesse frequentemente imerso em estranhas lendas e narrativas muito diversas, o seu assassínio tem-se debatido, como parte da mitografia americana, com um sem-fim de teorias da conspiração. Talvez por isso, no recente Lincoln, filmado por Steven Spielberg e protagonizado por Daniel Day-Lewis, o episódio tenha sido omitido, dele aparecendo apenas, e mesmo no final, uma mera referência. E no entanto, se fosse intenção do realizador atribuir ao crime consumado no Teatro Ford, em Washington, um lugar central, bem mais intrincada seria a trama e a complexidade dos personagens envolvidos. O Assassínio de Lincoln, um livro que anda por aí nas livrarias, escrito como um policial mas recheado de informação fidedigna, cumpre pois o papel de catalisador de informação, não tendo sido por um acaso que durante mais de um ano ocupou o primeiro lugar da tabela de vendas do New York Times na área da não-ficção. (mais…)

              Biografias, História, Leituras

              O rapaz que olhava os navios

              Memória, ensaio e elegia, eis um livro escrito como história afetiva da cidade que o autor crê habitada «de ruínas e de melancolia». Escolheu observá-la a partir dos sinais de um passado que é o da sua infância e primeira juventude, fazendo-o acompanhar de recordações familiares, fotografias a preto e branco, livros e jornais envelhecidos. Por todo o lado o hüzün, uma variedade de melancolia, de tristeza, aplicada aos istambuleses que padecem de um sentimento de perda por viverem num lugar cujos dias de glória acabaram. Não se trata, porém, de um exercício meramente nostálgico, pois Istambul não foi apenas o território físico de Pamuk: foi também a casa-mãe da sua imaginação, um espaço com o qual manteve sempre uma identificação poética, o observatório privilegiado para a sua percepção das mudanças do mundo. (mais…)

                Cidades, Leituras, Memória, Olhares

                Uma Europa pisada e exangue

                Bloodlands, Terra Sangrenta na tradução portuguesa, inscreve-se numa região delimitada da Europa Oriental na qual se fixou, desde os finais do século XVIII até à Segunda Guerra Mundial, com proibição de habitar noutras paragens, um conjunto importante de comunidades judaicas, até aí errantes, com as quais só uma pequena parte da primitiva população se fundiu. Servindo-nos de um mapa atual, podemos dizer que ela se estendia entre o Báltico e o Mar Negro, desde o leste da Polónia até à parte mais ocidental da Rússia europeia, integrando a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia. Ali foi sendo levantado um microcosmos cultural muito próprio, fundado numa sociedade particularmente dinâmica em volta da qual cedo confluíram, todavia, os fantasmas mais negros e letais do antissemitismo. Foi sobre este território que o historiador americano Timothy Snyder desenvolveu o extenso trabalho de investigação do qual resultou uma obra que nos desperta para uma realidade nem sempre olhada de frente e com rigor. (mais…)

                  Democracia, História, Leituras

                  Wstawać

                  Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto. Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, depois de descoberta a sua ascendência judia, ser enviado para o campo de extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de memória», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem, com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza – se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento. (mais…)

                    Direitos Humanos, História, Leituras, Memória

                    Sete dias como «autor publicado»

                    Não acredito na absolutização da ideia mil vezes proclamada como grandiosa de «escrever para a gaveta». Mesmo o escritor não publicado – ou aquele que sabe ter escassas ou nulas hipóteses de vir a sê-lo – escreve sempre para outro alguém. Será, se para mais ninguém for, para a/o amante, para um amigo cúmplice ou para o leitor ideal que um dia cairá do céu. Em contrapartida, não têm conta os escritores condicionados pela censura ou pelo medo do julgamento público impiedoso que escreveram a maior parte da obra, se não toda ela, sem a perspectiva de que esta pudesse vir a ser editada. Em «Amar Dostoievski», um artigo de Susan Sontag integrado na compilação póstuma Ao Mesmo Tempo, evoca-se o caso peculiar de Leonid Tsípkin (1926-1982).

                    Este médico russo de origem judaica viu a família ser repetidamente atingida pela repressão estalinista, e a ele próprio debaixo de constante suspeita, tendo por isso resolvido escrever apenas para os mais chegados. Recusando-se até, com medo de problemas insolúveis com o KGB, a deixar que os seus originais circulassem clandestinamente. Da sua perseverança contida diz a dado passo Sontag: «Escrever sem esperança ou perspectiva de ser publicado – que reserva de fé na literatura isso não implica?». Acabaria no entanto por aceder a publicar no estrangeiro Verão em Baden-Baden, romance construído em volta de um episódio da vida de Fiódor Dostoievski. A 13 de Março de 1982, um semanário nova-iorquino começou a publicá-lo sob a forma de folhetim. A 15 de Março, uma segunda-feira, Tsípkin foi despedido do instituto médico moscovita onde trabalhara a maior parte da vida. A 20 de Março sentiu-se mal quando estava em casa a traduzir um artigo; deitou-se, chamou pela mulher e morreu. Mas durante sete dias foi «autor publicado».

                      História, Leituras, Memória, Olhares

                      E não se deitaram no chão

                      Anatomia de um instante, de Javier Cercas, é uma narrativa pormenorizada das circunstâncias que envolveram o 23 de Fevereiro de 1981, quando as Cortes espanholas foram assaltadas por duzentos membros da Guardia Civil comandados pelo tenente-coronel Tejero Molina. A operação foi parte de uma tentativa de golpe lançada pelos militares franquistas contra um regime democrático que dava ainda os primeiros passos. A momentânea vitória dos sublevados acabaria por ser contrariada em boa parte pela intervenção do rei, mas durante longas horas, uma noite inteira e ainda parte da manhã seguinte, governo, deputados e jornalistas presentes à hora do assalto foram conservados como reféns pelos assaltantes. A parte mais dramática e imprevisível foi a inicial, quando os militares irromperam pela sala e foi dada uma ordem no sentido de todos se deitarem de imediato no chão. A ordem foi acompanhada por um tiroteio desgovernado que não feriu ninguém mas bastou para atemorizar os presentes e dar ao país e ao mundo – a televisão transmitiu as imagens em directo – a ideia de que não se tratava propriamente de uma brincadeira.

                      No livro de Cercas, como no momento do golpe, destacam-se três homens cuja bravura se explica em poucas palavras. Foram os únicos dos presentes que não se atiraram para o chão e encararam os golpistas, sabendo qualquer deles, naquele preciso momento, que se apenas três dos que se encontravam dentro da sala fossem fuzilados seriam precisamente eles. Relembro os nomes: Adolfo Suárez, primeiro-ministro demissionário, um antigo franquista bon-vivant que atraiçoara os seus tornando-se figura-chave da transição para a democracia; o general Manuel Gutiérrez Mellado, que durante a Guerra Civil se batera contra os republicanos mas agora apoiava Suárez na qualidade de ministro da Defesa, transformando-se para a extrema-direita no exemplo máximo de traição; e Santiago Carrillo, o então secretário-geral dos comunistas, que pelo simples facto de personificar a principal e «demoníaca»  força de oposição a Franco era o deputado mais odiado pelos amotinados de arma engatilhada. Suárez deixou-se ficar sentado, como que impassível e, sugere Cercas, a «posar para a História»; Gutierrez Mellado, de setenta anos e o mais velho dos três, resistiu fisicamente e de pé à ordem dos assaltantes, só se sentando quando lhe apeteceu; Santiago Carrillo, o velho e experimentado combatente antifranquista, manteve-se sentado a saborear calmamente o seu cigarro.

                      Claro que este post é só um engodo para a leitura deste livro intenso, encaixado num género híbrido, entre a história, o jornalismo e o romance.

                      Rui Bebiano

                      Javier Cercas, Anatomia de um instante. Trad. de João Pedro George. Dom Quixote. 458 págs.
                        História, Leituras, Memória

                        Vavilov em Leninegrado

                        Vavilov Vavilov

                        Fome, o pequeno mas precioso romance de Elise Blackwell (ed. Livros de Areia, trad. de Safaa Dib, 102 págs.), arranca com um lembrete, imprescindível para aproximar o leitor da paisagem a um tempo luminosa e invernal sobre a qual a autora ficcionou a sua história de amor, morte e coragem.

                        «O célebre biólogo Nikolai Vavilov reuniu centenas de milhares de sementes e espécies de plantas do mundo inteiro, albergando-os no Instituto de Pesquisa da Indústria de Plantas em Leninegrado. Vavilov tornou-se uma vítima da campanha antigenética levada a cabo por Trofim Lysenko, que gradual mente tomou controlo da agricultura soviética no tempo de Estaline. Vavilov morreu na prisão em 1942 ou 1943 de uma combinação de maus tratos e fome. Muitos dos seus associados e funcionários foram presos, exilados, enviados para campos de trabalho correctivo, ou dispensados. Durante o cerco de Le­ninegrado, aqueles que permaneceram protegeram as colecções de Vavilov dos ratos, de intrusos humanos e deles próprios.»

                        A vida aventurosa, o triunfo e a queda de Nikolai Vavilov (1887-1943), as provações de quem o seguiu de perto ou nele acreditou, o imenso logro pseudo-científico que acompanhou a sua desgraça, mais se parecem, no entanto, com uma fábula negra, de tão delirantes e improváveis que agora se nos afiguram.

                        «A 9 de Julho de 1941, o colégio militar do Tribunal Supremo declarou o grande director culpado de pertencer a uma conspiração da direita, de espiar para Inglaterra, de sabotagem agrícola, e, como prova de que os juízes têm sentido de humor, de ser o líder do Partido Trabalhista Camponês. Foi condenado à morte. A reunião durou vários minutos.»

                        E mais adiante:

                        «Entre os evacuados de 1942, encontravam-se a mulher do grande director e o filho, que se estabeleceram em Saratov. Foram informados de que ele fora preso em Mos covo, quando na verdade dormia, subalimentado, a pou­cos quilómetros do local onde se encontravam. Sentiriam eles a sua proximidade ou serão tais coisas impossíveis, pensei eu mais tarde, quando soube.

                        Com a sentença de morte comutada mas a morte iminente, foi transferido da prisão de Saratov para Magadan, onde a sua cela era arrefecida pelo frio mas invisível Mar de Okhotsk. Os detalhes nunca seriam revelados, mas certamente morreu de maus tratos e subnutrição, talvez mais de um do que outro, em finais de Janeiro de 1943.»

                        Fome pode, portanto, ser lido como estranha homenagem de uma americana nascida em 1964 em Austin, Texas, a um punhado de autênticos heróis soviéticos dos tempos de resistência ao nazismo e ao estalinismo. E evoca, assumindo-se embora como «relato ficcional desse tempo e lugar», um triste e extremo exemplo da perversão sempre inerente ao casamento da «ciência certa» com o poder absoluto.

                          História, Leituras, Recortes

                          A fome

                          Atemschaukel

                          Toda a ficção é memória. E o contrário é também verdadeiro, como se sabe. Mas alguma ficção contém mais memória do que outra. É este o caso de Tudo o que eu tenho trago comigo (Atemschaukel no original), de Herta Müller. O romance, publicado em 2009 e agora traduzido, que assoma como relato diferido das perseguições suportadas pela população romena de origem alemã logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Culpada toda ela, fosse qual fosse a idade, profissão ou atitude dos seus, apenas de o ser. Muitos foram sumariamente executados, alguns, poucos, conseguiram escapar, mas quase todos os que tinham entre 17 e 45 anos foram deportados para o Gulag, onde os que conseguiram sobreviver às privações, às cadências e aos castigos passaram anos. Müller conta aqui a história de Leo Auberg, um jovem de 17 anos, natural de Siebenbürg, na Transilvânia, que foi enviado para o campo de trabalho de Nowo-Gorlowka, na Ucrânia. A personagem foi inventada e os atalhos da sua vida também, mas mesmo uma leitura desatenta mostrará sem dificuldade que o romance não poderia ter sido escrito sem fontes testemunhais muito próximas do trabalho de criação. Elas existiram, de facto: Oskar Pastior, um poeta judeu-alemão, antigo prisioneiro, com quem Hertha de início contava partilhar a autoria do livro – tal não aconteceu apenas porque Pastior morreu em 2006 –, e diversos sobreviventes, entre eles a sua própria mãe. Os dois fragmentos que se transcrevem, ambos sobre o trabalho terrível, diário, obsidente, da fome, comprovam a marca indispensável de proximidade entre depoimento e criação neste caso de Lager-Buch, «livro de campo de concentração». Escusado será dizer que vivamente recomendado.

                          A primeira decisão do dia era: Tenho suficiente firmeza hoje ao pequeno-almoço, para não comer toda a ração com a sopa de ervas? Consigo, no meio da fome, guardar um pedacinho para comer à noite? Almoço não havia, estávamos a trabalhar e não havia nada para decidir. À noitinha, depois do trabalho, se tínha mos mantido a firmeza ao pequeno-almoço, vinha a segunda de­cisão: Tenho suficiente firmeza para meter a mão debaixo da almofada e ver se o pão que poupei está lá? Consigo esperar até passar a chamada e comê-lo só na cantina? Poderia ainda demorar duas horas. Se a chamada não terminasse logo, mais tempo ainda.

                          Se não me tinha mantido firme de manhã, à noite não tinha nenhum resto de pão, nem sequer uma decisão para tomar. Enchia a colher só pela metade, sorvia profundamente. Tinha aprendido a comer devagar, a engolir saliva depois de cada colher de sopa. O anjo da fome dizia: A saliva prolonga a sopa, e ir dormir cedo encurta a fome.

                          […]

                          O meu companheiro de cave Albert Gion dissera a caminho de casa, depois do turno da noite: Agora que está quente, quando não se tem nada para comer, pode-se pelo menos aquecer a fome ao sol. Eu não tinha nada para comer e fui para o pátio do campo aquecer ao sol a minha fome. A erva ainda estava castanha, pisada e ardida do regelo. O sol de Março tinha as franjas pálidas. O céu era de água ondulada por cima da aldeia dos russos e o sol deixava-se levar impelido pela ondulação. A mim impelia-me o anjo da fome na direcção do lixo por trás da cantina. Haveria ali porventura cascas de batata, se ninguém ainda lá esteve antes de mim. A maioria ainda estava a trabalhar. Quando vi a Fenja à conversa com a Bea Zakel perto da cantina, tirei as mãos dos bolsos e abrandei para velocidade de passeio. Não podia ir agora ao lixo. A Fenja vestia desta vez o casaco de croché lilás e eu lembrei-me do meu lenço de seda cor de vinho. Depois do fiasco com as polainas, não queria voltar ao bazar. Quem era tão boa a falar como a Bea Zakel também podia ser boa a negociar o meu cachecol por sal e açúcar. A Fenja foi atormentada a coxear para a cantina, a tratar do seu pão.

                          Herta Müller, Tudo o que eu tenho trago comigo, Dom Quixote. Trad. de Aires Graça. 296 págs.

                            História, Leituras, Memória

                            «Mau vento» de Espanha

                            Franco ponderou e preparou uma participação espanhola na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha e da Itália. O historiador Manuel Ros Agudo interessou-se há alguns anos pelo tema, tendo chegado a algumas conclusões originais, com impacto no conhecimento renovado da nossa história recente. Desde logo porque as provas que reuniu deitam completamente por terra o mito franquista de uma neutralidade não-beligerante que supostamente teria salvo o país de se ver envolvido numa nova guerra.

                            A verdade, como documenta A Grande Tentação de maneira exaustiva e com recurso a informação inédita, é no entanto completamente diversa, pois Franco procurou entrar no grupo de potências agressoras do Eixo determinando, com esse objectivo em mente, a minuciosa planificação de quatro operações militares que levariam Madrid a ter um papel activo no conflito. Estas visariam um ataque, praticamente simultâneo e de surpresa, a lançar sobre Gibraltar, o Marrocos Francês, o Sudeste da França e Portugal. Os objectivos políticos da aventura parecem claros ao historiador: ela destinava-se a transformar a Espanha no terceiro parceiro dos alemães e dos italianos, conferindo-lhe «um peso e uma capacidade de decisão sem precedentes na Nova Ordem euro-africana que se preparava», para além de uma dimensão territorial consideravelmente alargada.

                            Esta tradução comporta um subtítulo – «Os Planos de Franco para Invadir Portugal» – que não consta do original castelhano mas realça o vector desse projecto belicista que nos dizia mais directamente respeito e que também mais nos pode perturbar, habituados de longa data a dar um grande crédito ao «Pacto de Amizade e Não-Agressão» luso-espanhol assinado em Março de 1939 e reforçado no ano seguinte com um protocolo adicional. Mas a verdade é que, por essa mesma altura, corria já a preparação da operação militar-relâmpago que deveria ter lugar nos primeiros meses de 1941 e envolveria só na fase inicial cerca de 250.000 homens.

                            A sua justificação formal integrava a invasão de Portugal num conjunto de movimentações de natureza táctica destinadas a isolar e a enfraquecer o poderio militar britânico, mas assentava num profundo menosprezo pela capacidade militar dos portugueses, passando uma esponja sobre o apoio de Salazar aos insurrectos franquistas durante a Guerra Civil e visando uma mais do que provável reunificação ibérica. Em conversa com Ribbentrop, o ministro alemão das Relações Exteriores, o ministro franquista Serrano Suñer terá mesmo afirmado que «geograficamente falando, Portugal na realidade não tinha o direito de existir.»

                            Conta-se afinal uma história do que não aconteceu. Sem as contrapartidas diplomáticas e territoriais que esperava dos alemães, o Caudilho viria a desistir dos seus desígnios hostis, convertendo essa «grande tentação» expansionista, que durante alguns anos o animou, numa «grande frustração», praticamente limitada ao controlo político de Tânger. O conhecimento destes planos permite-nos entretanto aferir melhor da verdadeira natureza do regime franquista e das intenções do seu mentor. Num exercício de história virtual, podemos também conjecturar sobre o que seríamos hoje se as coisas tivessem seguido o caminho previsto.

                            Manuel Ros Agudo, A Grande Tentação. Os planos de Franco para invadir Portugal. Tradução de Jorge Fallorca. Casa das Letras, 372 págs. [Publicado na revista LER de Dezembro de 2009]

                              História, Leituras, Olhares

                              Uma tradução drôle

                              Li Drôle de Jeu há muito tempo. Numa edição francesa que um amigo me emprestou, convencido que a leitura do romance de Roger Vailland faria de mim – como o fez de muitas pessoas mais ou menos da minha geração – um verdadeiro militante das causas da esquerda e do antifascismo. Não foi o romance que formou as minhas convicções da época, mas li-o muito emotivamente, quase febril. Mais tarde tentei, sem o conseguir, comprar a edição portuguesa da Ulisseia, que saira em 1959 com um prefácio de José Cardoso Pires e que Hélder Macedo havia vertido para o português sob o título Cabra Cega. Já no final da década de 1980, a Europa-América lançaria uma outra tradução, que nunca vi mas sei ter mantido o mesmo título. E assim permaneceu identificado o romance de Vailland nos inventários de muitos milhares de leitores. Até que, neste Julho de 2007, os Livros de Brasil editaram Drôle de Jeu – com uma bela capa, aliás – intitulando-o… Jogo Curioso (!!!). Comprei o livro porque queria muito ter uma edição em português, mas ainda não comecei a releitura, pelo que não posso falar desta nova versão. A tradução do título, porém, não promete nada de bom. Ela é só por si qualquer coisa de lamentável e uma prova de ignorância do trabalho anteriormente feito. E se o tradutor pretendia reinventar o título – uma opção desde logo muito discutível e potencialmente enganadora – deveria ter em linha de conta que «drôle», significa estranho, bizarro, esquisito, singular. Jamais curioso.

                              [8/9/2007] Escrevo após a leitura desta nova edição (infelizmente, sem a possibilidade de a cotejar com o original). Não seria justo se não dissesse que os meus receios se mostraram menos fundados do que supunha. Esta versão lê-se com agrado, com raros momentos nos quais se nota que «alguma coisa» não está bem. Erro sistemático, que me é particularmente desagradável, é o uso – aliás, cada vez mais comum na linguagem coloquial – da palavra «encarregue» como particípio passado do verbo «encarregar». E permanece a questão do título: agora ainda me parece mais absurda a escolha do tradutor.

                                Etc., Leituras