Arquivo de Categorias: Apontamentos

Sobre a crise do Bloco

De modo algum posso ser indiferente à crise que o Bloco de Esquerda se encontra a viver. Não apenas porque fui «compagnon de route» e eleitor do partido, situação que de modo algum enjeito, entre a sua fundação em 1999 e 2011, quando me afastei após o terrível erro político, partilhado com o PCP, que abriu caminho ao governo de Passos Coelho. Também não só porque ali tenho bom número de amigos e amigas, pessoas de quem gosto e sei sinceramente dedicadas aos combates por um país e por um mundo melhores e mais solidários. Mais do que isso, acredito que o Bloco tem um lugar próprio e insubstituível no panorama político da esquerda plural e do socialismo, o qual merece ser preservado e ampliado, necessariamente em diálogo com outras forças progressistas. Não quero um Portugal sem o Bloco e isso não irá acontecer.
[sou membro «de base» do Livre, o que não me impede de escrever isto]

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    Presidenciais: os pés ao caminho

    É terrível que, perante a conjuntura de avanço brutal da direita e da extrema-direita, que pode até pôr em causa o nosso regime constitucional, a esquerda não tenha sido capaz de apresentar uma candidatura individual firme, agregadora, mobilizadora e em condições de vencer, ou pelo menos disputar com impacto, as eleições presidenciais. Não falo de cada partido parlamentar apoiar a sua candidatura presidencial, o que em diversos casos é mais uma consequência do que uma estratégia pensada, salvo em relação ao PCP, que como agora é hábito decidiu desde o início do processo falar apenas para o seu nicho. Do seu lado, o Livre será, aliás, o último a fazer tal escolha, após ter aguardado até ao limite por uma solução de consenso, mas percebe-se, pois ficaria fora do debate, com as inevitáveis consequências negativas para o seu projeto se o não fizesse. O que quero sublinhar é algo bem mais grave e desanimador: é o facto de, entre tantas figuras públicas com perfil e provas dadas ao longo de décadas no combate cívico, nenhuma ter decidido, agora que tudo é mais difícil, mas também mais urgente, sair do seu território protegido e meter os pés ao caminho.
    [Originalmente no Facebook]

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      A tristeza como bem-estar

      «Tristesse, beau visage», «Tristeza, belo rosto», é o derradeiro verso do poema «À peine défigurée», de Paul Éluard, que deu o mote para o título do romance Bonjour Tristesse, de Françoise Sagan, publicado em 1954 e adaptado ao cinema por Otto Preminger. Plasma-se nele um modo de estar hoje inexplicável para muitas pessoas, incluindo algumas que dela são devedoras, mas o foram esquecendo. No mundo das «selfies», para as quais se faz um esgar de efémera e simulada felicidade, não se compreende que para sucessivas gerações, pelo menos desde o Século das Luzes, a tristeza podia ser algo de belo e sedutor. Sobretudo quando não traduzia mágoa, mas o deleite e o empenho numa forma do viver construída contra os males do mundo e no combate pela felicidade possível. Essa espécie de tristeza podia conter seriedade, serenidade e bem-estar, sendo, lembro-me bem, julgada até particularmente «misteriosa» e atraente. Havendo sempre tempo para rir muito, é claro.
      [Na fotografia, Albert Camus pelo final dos anos 40]

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        Evidência muito preocupante

        Ignorância e estupidez, juntas ou em separado, são um mal transversal nos percursos da história e também da natureza humana. A tendência dominante foi, todavia, para se irem gradualmente distanciando do centro dos poderes e para irem recuando na paisagem mais visível e dinâmica do mundo. Contrariando este caminho, o tempo que estamos a atravessar inventou a sua afirmação vitoriosa, agora desavergonhada, como fonte de prestígio, instrumento de poder e alimento dos discursos que este propaga para se manter.
        [Originalmente no Facebook]

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          Livros: o deserto da imprensa

          Sabia que assim era, mas afinal ainda é pior. Ao preparar uma lista de jornalistas e de jornais ou revistas a quem enviar um exemplar do meu novo livro para eventual escrita de uma notícia ou nota crítica, tomei consciência «de facto» de como em muitos jornais a secção de livros e de cultura desapareceu, enquanto nos outros foi reduzida ao mínimo. Alguns ainda acabaram há pouco ou está em vias de lhes acontecer a mesma coisa. Pior: a escassa divulgação cinge-se agora quase apenas à ficção e, embora bem menos, a alguma poesia, como acontece com uma publicação onde até fiz crítica de livros por mais de uma década. A não-ficção – ensaio, biografia, crónica – confina-se agora a «estrelas» internacionais que vêm a Portugal promover a edição local dos seus livros, ou a obras sobre temas quentes e tantas vezes passageiros. Tudo isto enquanto, paradoxalmente, se publica como nunca. O lixo literário divulgado pela publicidade paga, esse abunda. Mas, como refere a conhecida consigna, «a luta continua», embora não se saiba se a vitória é certa.

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            Gaza e o outro Israel

            A inqualificável e inaceitável política genocida praticada sobre a população civil de Gaza pelo governo de Netanyahu e dos seus aliados da extrema-direita fundamentalista, é nefasta mesmo para uma boa parte da população de Israel. Tem como resultado prático, para além do sofrimento sem fim do povo palestiniano, o bloqueio absoluto de uma imprescindível solução de dois estados independentes e pacíficos, aquela que se funda verdadeiramente na história da região e dos seus povos – não é isto o que dizem as pessoas parciais ou desconhecedoras posicionadas de ambos os lados – e a única que pode pôr fim à instabilidade e ao contínuo tormento. Ela tem também como consequência uma generalização do combate contra todos os cidadãos israelitas, parte deles muito erradamente identificados como «judeus», bastantes até muçulmanos, que se opõem ao atual governo e às suas políticas. Infelizmente, estes constituem em Israel ainda uma minoria, embora ela seja uma grande minoria, ilustrada até pelos resultados eleitorais, que não pode ser olhada como mera cúmplice dos crimes em curso.

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              Conversa ou monólogo?

              As redes sociais são sempre, para o bem e para o mal, um espaço de interação com os demais humanos. Seja qual for o sentido ou a forma do que escrevemos ou mostramos, o resultado será sempre olhado e apreciado por pessoas que não apenas nós próprios ou escassos outros. É claro que podemos sempre criar e comunicar num registo de monólogo, mas ainda assim serão pessoas distintas a ler-nos, a ver-nos, eventualmente a julgar-nos, concordando ou discordado do que dizemos, ou seguindo em frente sem mostrar interesse.

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                Reconhecimento da Palestina por Portugal

                É um caso ao qual se aplica a expressão popular «mais vale tarde do que nunca». O governo português, apesar de visivelmente contrariado, cedeu à pressão e reconheceu o Estado palestiniano, sendo o 13º país da União Europeia a fazê-lo. Como aconteceu com outros países, este reconhecimento está vinculado à iniciativa da Autoridade Palestiniana e não do Hamas, o que me parece justo, em primeiro lugar para o próprio povo palestiniano. Todavia, e sendo absolutamente favorável à solução de dois Estados pacíficos para a região, e completamente avesso à ideia absurda e antissemita do apagamento de Israel do mapa, não me parece nada bom que, na declaração formal agora assinada, a condenação da política agressiva e genocida do atual governo israelita para Gaza não seja mais claramente vincada.
                [Originalmente no Facebook]

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                  Tudo ao contrário na educação

                  Começo com parte de um importante post de alerta publicado no seu mural do Facebook por Paulo Marques:

                  «Recentemente, o ministro da Educação, Fernando Alexandre, de visita a uma escola, numa aula, disse a alunos do 12.º ano que “quem anda em manifestações perde a aura”. Não se trata de uma frase inocente, nem de um simples deslize retórico. É uma mensagem política e, diria, perigosa.

                  “Aura” é uma palavra carregada de simbolismo. Sugere prestígio, distinção, brilho pessoal. O que o ministro transmitiu àqueles jovens foi claro: quem protesta, quem se envolve, quem ocupa o espaço público para reclamar justiça, perde reputação, mancha a sua imagem, arrisca o futuro.

                  Mas não é exatamente o contrário? Se hoje temos direitos fundamentais, do voto universal à liberdade sindical, da escola pública ao Serviço Nacional de Saúde, foi porque milhares de pessoas saíram à rua, arriscaram empregos, enfrentaram repressão, desafiaram a ordem estabelecida.»

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                    Um erro da PIDE (com um pouco de riso)

                    Deparei hoje com um relatório da PIDE datado do ano de 1972 no qual um panfleto contra o regresso da Queima das Fitas que circulou em Coimbra em maio desse ano vinha com a sua autoria completamente trocada. Sei-o melhor que ninguém, pois foi o último que escrevi para os chamados «Núcleos Sindicais de Base», antes de ser internamente impedido de continuar a fazê-lo por a minha escrita ser acusada de «demasiado literária». Tratava-se de um grupo de estudantes filo-maoistas, na altura ainda muito poucos, dos quais fazia parte e fora um dos fundadores em Coimbra.

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                      Apontamentos, Democracia, História, Memória

                      Xi, Kim, Vova e o Sonasol

                      Constato, por um rápido périplo online, que o encontro em Pequim dos ditadores da China, da Coreia do Norte e da Rússia, respetivamente Xi Jinping, Kim Jong-un e Vladimir Putin, em conjunto com alguns dos seus melhores apoiantes, como Aleksandr Lukashenko, da Bielorrússia, Miguel Díaz-Canel, de Cuba, Ukhnaa Khurelsukh, da Mongólia, Luong Chuong, do Vietname, ou Masoud Pezeshkian, do Irão, a pretexto da celebração com parada militar do 80º aniversário da rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial, está a deixar entusiasmadas por cá algumas pessoas que se imaginam e autoproclamam anti-imperialistas e «de esquerda». Como se afirmava num antigo anúncio do detergente Sonasol, «o algodão não engana». Ou engana apenas quem gosta de ser enganado e o assume.
                      [Originalmente no Facebook]

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                        A mentira não tem cor

                        Um dos fatores de destruição da democracia é hoje, como se sabe, a manipulação ou a invenção de notícias por parte da extrema-direita, ou mesmo do centro-direita, no sentido de gerar condições para a instalação do medo entre setores mais frágeis e menos informados do eleitorado. Ainda que a generalidade assente na pura mentira, isso em nada importa a quem as produz, pois o que para ela conta é o efeito produzido. Infelizmente, sobretudo nas redes sociais, estou a encontrar também, e cada vez mais, apontamentos e falsas informações, ou mesmo pura desinformação e imagens manipuladas, introduzidas por pessoas de esquerda em busca, no seu entendimento, de produzir o efeito contrário e de justificar os seus pontos de vista. O resultado é sempre igualmente péssimo, como o é combater a mentira com a mentira. Apenas se expandem os mal-entendidos e a dimensão da informação tóxica, ajudando a normalizar e a disseminar uma absurda «ética da falsidade».

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                          O prazer dos arquivos

                          Tendo muitas vezes a lembrar as centenas, provavelmente os milhares, de tardes de verão que passei dentro de arquivos históricos. É um prazer antigo, que me acompanhou desde cedo, muito antes ainda de ser parte ativa de um deles. Lidar horas ou dias a fio com «papéis velhos», vindos de outras vidas, de diferentes esperanças, de modos singulares e muito desiguais de estar no mundo e de o representar. Neles, jamais me senti sozinho, ou parte de uma exposição de velharias, mas como um explorador inquieto em viagem pelo tempo. Por estes dias de muito calor, e neste tempo de constante e crescente ruído, recordo mais ainda a sua temperatura amena e o seu silêncio reconfortante. Como os de um caravançarai ou de um oásis para quem atravessa o deserto. 

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                            Atacar o SNS é estupidez, ignorância e ingratidão

                            À exceção dos que tenho no meu mural do Facebook – e mesmo a estes só consigo seguir em parte – desde há muito que quase deixei de ler comentários em redes sociais e blogues. Tendo sido praticamente pioneiro da Internet em Portugal, mantive páginas que os permitiam entre 1995 e 2003, acabando com eles precisamente porque eram, em boa medida, cada vez mais tóxicos e ofensivos, para nada servindo. Nos jornais online faço a mesma coisa, até porque essa toxidade, como se sabe, tem vindo nos anos mais recentes a piorar exponencialmente.

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                              Psicopatas há muitos

                              Ignorante de tanta coisa que sou, tinha até há pouco uma perceção muitíssimo parcial da psicopatia e do psicopata. Julgava este, como creio que ocorre com a maioria das pessoas, apenas aquela figura antissocial, com formas muito graves de transtorno de personalidade, habitualmente associada à prática compulsiva e prolongada de crimes de sangue, em regra praticados de uma forma sistemática e tantas vezes particularmente horrível. Como o fizeram o londrino Jack, o Estripador, Harold Shipman, o «Dr. Morte», médico britânico que matava os pacientes, ou John Wayne Gacy, que se vestia de palhaço para assassinar ritualmente crianças e jovens.

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                                Verão Quente: não foi isto que vivemos

                                O Público começa um artigo sobre o Verão Quente de 1975 da seguinte forma: «Foram meses de instabilidade política, de anúncios de golpes e contragolpes de Estado, e também marcados por uma onda de violência ímpar. A História descreve uma realidade de trincheiras e os protagonistas reconhecem que Portugal esteve à beira de uma guerra civil. O país vivia, literalmente, a ferro e fogo. Foi o Verão quente.» Na verdade, a História (com o H maiúsculo que os autores do texto preferem usar) não descreve nada disto, ou apenas isto. O chamado Verão Quente foi um tempo de grande instabilidade política e social, sem dúvida alguma – aliás, revoluções tranquilas, sem instabilidade e hesitações, não existem -, mas também um período de conquistas, de experiências e de construção de utopias que durante décadas pautaram a vida dos portugueses e da democracia. Reduzir o Portugal da época a «um país a ferro e fogo» é um logro análogo àquele imposto pelo Estado Novo, ao longo da sua existência e a sucessivas gerações, para caraterizar a nossa Primeira República.

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                                  Ruído na praia

                                  Gosto de mar e da proximidade do mar, mas não de passar horas na praia, entre grãos de areia, golpes de sol e banhistas ruidosos. Da infância até aos quinze era forçado a viver cada agosto do ano na Figueira (da Foz), suportado por não ter direito de escolha. Salvaram-me os filmes bíblicos e os western spaghetti, os carrinhos de choques e os gelados de cone, as músicas da jukebox e a primeira namorada, mas a praia, a praia em si, esse era um lugar de tédio. Continuei depois a frequentá-la periodicamente, uma vez que o sol me ajuda a diluir alguns problemas de pele, mas o enfado permanece.

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