Arquivos Mensais: Junho 2011

O PCP entre Abril e Novembro

PCP

Simplificando propositadamente, pode dizer-se que o biénio revolucionário português de 1974-1975 representou um Fevereiro de 1917 sem o subsequente Outubro. A tese central deste livro de Raquel Varela – na origem a sua dissertação de doutoramento – sublinha que, se este esteve perto de chegar, tal não aconteceu, ao contrário do que é frequentemente propagado, em larga medida devido às escolhas e aos métodos adoptados na altura pelo Partido Comunista Português. Deixa ainda claro que o fim daquele período de rápida mudança e de grandes expectativas, e a subsequente passagem a um regime democrático-liberal, foram pacíficos e ocorreram com escassa resistência devido à posição e às acções do mesmo partido. Em consonância com esta ideia, procura mostrar, uma vez mais ao contrário das interpretações dominantes, que bem ao invés das intenções revolucionárias e golpistas que lhes têm sido atribuídas nos momentos decisivos os comunistas escolheram governar com o Partido Socialista, procurando contornar as clivagens e as circunstâncias que pudessem pôr em causa essa linha estratégica.

A História do PCP na Revolução dos Cravos inscreve-se no campo de investigação próprio da história do presente, o qual oferece inúmeras possibilidades de pesquisa mas escapa aos domínios relativamente assépticos e mais facilmente consensualizáveis no qual trabalham os historiadores que se dedicam a épocas mais recuadas. Relaciona-se com interesses e preocupações ainda próximos, cuja energia se não diluiu, e incorre por isso em análises inevitavelmente controversas, sujeitas a confrontações, o que acontece neste caso. A abordagem documental da política do PCP face ao desenvolvimento do processo revolucionário e às posições dos socialistas e do MFA é exaustiva e permite contornar muitas das eventuais objecções, mas os limites colocados à investigação das fontes, em particular os erguidos pelo próprio PCP, não sendo da responsabilidade da historiadora deixam sempre em aberto a possibilidade do enredo escolhido vir a precisar de alguma afinação. Poderá, por exemplo, revelar-se útil uma inquirição das iniciativas e das pulsões revolucionárias experimentadas pelos sectores do partido mais directamente envolvidos nos movimentos de massas. Não é este no entanto o ângulo de análise deste trabalho, assumidamente centrado na intervenção do núcleo dirigente reunido em volta de Álvaro Cunhal. Neste sentido, nenhum estudo futuro poderá contornar a investigação exaustiva que lhe serviu de fundamento e o valor da dose de informação que oferece.

Raquel Varela, A História do PCP na Revolução dos Cravos. Bertrand Editora. 400 págs. Publicado na LER de Junho de 2011.

    História, Memória

    Guevara e Theroux

    Che

    Conta Pierre Kalfon, um dos seus mais isentos biógrafos (poucos entre muitos), que numa tarde de Abril de 1964, durante uma breve passagem por Paris – a caminho da União Soviética em missão diplomática da então jovem revolução cubana – Ernesto Guevara almoçou numa pizzaria da Boulevard Saint-Michel. Passeou depois por meia hora pelas imediações do Collège de France e da Sorbonne, que muito antes conhecera de leituras e de filmes. Relatará o próprio «Che» que de repente, na Rue des Écoles, um sujeito reparou no seu inconfundível aspeto – barba rala e desalinhada, a boina preta estrelada e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que o acompanhava: «Vê bem a lata daquele tipo ali, a imitar o Che Guevara!» Desde muito cedo a figura do argentino viu-se de facto colada ao ícone que excedia já o seu corpo físico, definindo-se muito para além do lugar datado e material que a História lhe reservou.

    De início, e durante bastantes anos, ela ganhou vida no espectro das crenças insurretas que interpretavam as possibilidades de erguer um mundo melhor, mais igualitário e mais justo. Conquistado no entanto, se preciso fosse, a tiro de bazuca e de metralhadora. Esse é o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com sentido de missão ou necessidade de ratificação tribal, ainda transportam consigo, como vestígio de uma real ou imaginada insolência, em medalhas, autocolantes e t-shirts. Quase sem de tal se aperceberem, rompem porém as configurações da rebeldia e do desespero, associando-as a algo de mais amplo que integra o conjunto de sinais dos quais se servem habitualmente os imaginários de fuga. Aproximando-se do logótipo dos velhos cigarros Camel, do mapa irregular de uma ilha das Caraíbas gravado na publicidade colorida de uma marca de rum, das capas tentadoras dos livros de Bruce Chatwin ou de Paul Theroux. Para os quais olhamos sem grandes conjeturas, projetando a ideia da viagem, da partida, associada a uma vaga e errática noção de liberdade.

      História, Memória, Olhares

      O país sem luz

      Coreia do Norte

      Em 2010 a jornalista Barbara Demick, que já havia sido premiada por Logavina Street (1996), uma corajosa e emocionante cobertura do cerco de Sarajevo (1992-1996), ganhou o Prémio Samuel Johnson de não-ficção com o livro Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea. Demick segue aí o percurso de seis cidadãos norte-coreanos: dois namorados que durante mais de uma década tiveram medo de contar um ao outro a sua recusa do regime; um jovem sem-abrigo; uma médica um tanto idealista; uma operária que ama Kim Il Sung mais do que a sua própria família; e a sua filha rebelde. Apesar das enormes limitações que precisou enfrentar para fazer o seu trabalho, procurou compreender os mecanismos de sobrevivência, de aceitação ou de resistência, de pessoas comuns vivendo sob um regime totalitário que proíbe Gone with the Wind por considerar o enredo subversivo, que controla a informação e as comunicações de maneira absolutamente férrea mantendo-se o único país do mundo sem Internet, e que durante as manifestações de apoio ao regime fotografa as expressões dos cidadãos para aferir da sua fidelidade. O livro acaba de sair em edição portuguesa com o título A Longa Noite de um Povo. A vida na Coreia do Norte (Temas e Debates/Círculo de Leitores), e começa assim: «Se olharmos para uma fotografia de satélite do Extremo Oriente, à noite, vemos uma grande mancha a que, curiosamente, falta luz. Essa área de escuridão é a República Popular Democrática da Coreia.» Quanto às pessoas que habitam esse mundo com a iluminação pública em ruínas regido por um governo despótico e brutal, delas diz a jornalista que «talvez não estejam à espera de nada em particular, apenas à espera de que algo mude.»

        Atualidade, Democracia

        Do sentido do transitório

        poeta

        Percorrendo os arquivos de um dos meus primeiros blogues, dou de caras com este post-proposta datado de Dezembro de 2003. Pura arqueologia, pois.

        O poeta, porque transporta consigo a liberdade, é um viajante. Longe de se perder nas esferas menores do reino do efémero,  cruza a mais antiga memória com impaciência juvenil diante do não visto e do que está por cumprir. Crivado de passados, organiza emoções e renova desejos. Combina experiência e invenção. É moderno na medida do seu arcaísmo. É o próprio tempo. Por isso todos os ministérios, direcções-gerais, gabinetes jurídicos, administrações, conselhos directivos, estados-maiores, deverão no futuro integrar um núcleo avançado de poetas. Para que jamais percam o sentido do importante, do realmente importante, que é o transitório.

        Uma possibilidade maiakovskiana que não pesaria muito no Orçamento Geral do Estado.

          Devaneios, Olhares, Poesia

          Vanitas vanitatum, et omnia vanitas*

          o académico

          Eleito por 17 votos contra outros 7 dos auto-proclamados «imortais», o escritor franco-libanês Amin Maalouf acaba de ocupar na Académie Française, fundada em 1635 por Luís XIII, o cadeirão deixado vago em Outubro de 2009 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Dois homens com obra extensa e admirável que não havia necessidade de colocar precocemente num expositor de museu. Ao qual jamais pertenceram, por vontade da vetusta Academia ou dos próprios, figuras como Sartre, Beauvoir, Camus, De Maistre, Balzac, Descartes, Diderot, Flaubert, Molière, Rousseau, Proust, Verne, Gautier ou Zola. Mas se Maalouf se sente bem na sua fauteil, quem somos nós, seus atentos e carinhosos leitores, para lhe criticar o pequeno prazer?
          ___
          * Não, não é esta a divisa da Académie Française.

            Etc.

            Wstawać

            Primo Levi é figura nuclear da literatura testemunhal do Holocausto. Nasceu em 1919 em Turim e parece ter-se suicidado em 1987 na mesma cidade. Participou na resistência contra a ocupação nazi e a República de Saló, acabando por ser preso por milícias fascistas e, depois de descoberta a sua ascendência judia, ser enviado para o campo de extermínio de Auschwitz. Sobreviveu apenas por uma conjugação de acasos, um deles a condição de engenheiro químico que o tornou momentaneamente útil para os seus carcereiros. Foi com base nessa experiência-limite pessoal, e como expressão de um sentido «dever de memória», que Levi escreveu o primeiro livro, Se Isto é um Homem, com uma edição inicial de 1947 da qual – numa época em que grande parte dos potenciais leitores preferia não encarar relatos desta natureza – se venderam apenas 1.500 exemplares. Só em 1958 a editora Einaudi publicaria uma edição revista e com tiragem condigna. É desta obra – uma discrição objetiva, serena, contida, estranhamente desprovida de amargura, do brutal dia-a-dia de um prisioneiro de Auschwitz que se esforça a cada minuto por não esquecer a sua humanidade – que se transcreve um fragmento. (mais…)

              Direitos Humanos, História, Leituras, Memória

              Já vi este filme (o caso Rui Tavares)

              Rui Tavares

              Aquilo que mais me preocupa no caso da demissão de Rui Tavares do lugar de deputado europeu independente pelo Bloco de Esquerda não é saber quem «tem razão». Ou quem cometeu mais ou menos erros. Ou se as coisas poderiam, por cada uma das partes, ter sido conduzidas de outra forma. Provavelmente poderiam. Como provavelmente todos deram passos em falso, embora aceitando que alguns desses passos em falso foram mais passos em falso do que outros.

              Também não é coisa que me perturbe a evidente divergência das posições públicas do Rui Tavares em relação ao que parecia ser a linha oficial do partido. Aliás, foi justamente a sua condição de independente, foi o trabalho dele, e, em regra, foram as suas posições públicas muitas vezes autónomas, que aproximaram muitos eleitores do Bloco ou impediram outros de dele se afastarem. No que me diz respeito, foram pessoas como o Rui, o José Manuel, o Miguel, a Marisa, e tantas outras em quem confio, ou cujo trabalho aprecio mesmo quando não penso exactamente como elas, que, contra ventos e marés – para não atribuir nomes próprios a esses ventos e a tais marés – me fizeram votar uma outra vez, apesar de certas perplexidades, no BE.

              O que de facto alarma, e muito, é ver a divergência política tratada com recurso ao processo – historicamente ancorado na tradição da esquerda velha, autoritária e rezingona – da calúnia, da insinuação, da ideia de «traição», da deturpação, avançados com uma violência desproporcionada em relação à que se utiliza para atacar os verdadeiros adversários políticos. E numa altura e que essa divergência deveria servir, justamente, para estimular o debate, que se torna imperativo travar, em torno das escolhas, dos métodos, e sobretudo da orientação política e dos objectivos, complementarmente dos rostos, de um Bloco de Esquerda capaz de recuperar do recente e significativo desaire.

              Para quem já passou por isto noutros carnavais – pelo que ouviu, pelo que leu, e sobretudo pelo que viveu – há aqui uma sensação pesada de déjà vu. De voltar atrás no tempo, na história, regressando às mesmas injustiças personalizadas, aos mesmos exageros pautados por uma rígida agressividade, à mesma sensação de tempo perdido. Aquilo de que a esquerda, esta esquerda, precisa, não é de acusar, de diabolizar, de apontar hipotéticos traidores, de empurrar figurantes para fora do tablado, de alimentar uma qualquer caça às bruxas. É, justamente ao contrário, de ouvir, de confrontar, de discutir e de traçar caminhos partilhados, abertos, com base numa pluralidade que se faz das ideias e das escolhas mas também das pessoas.

                Apontamentos, Atualidade, Opinião

                Luta pelo socialismo ou combate pela democracia?

                BSS

                Durante um entrevista concedida neste sábado, dia 18 de Junho, à Antena 1, Boaventura de Sousa Santos fez algumas considerações de um enorme interesse sobre os objectivos e reorganização da esquerda, justificando a maior atenção de quem, dentro deste campo, procure verdadeiramente uma maneira de sair do actual impasse que não seja a da habitual e suicidária fuga para a frente. Depois de afirmar que agora «a esquerda tem que se repensar muito», ou mesmo «completamente», Boaventura recorda que a «esquerda à esquerda», na qual engloba o Bloco e o PCP, foram construídos e conservam-se dentro de um imaginário fundado no princípio de acordo com o qual «a luta é uma luta anticapitalista», tendo o socialismo como horizonte único. Aceita, evidentemente, que este horizonte existe e continuará a existir durante muito tempo, «enquanto houver capitalismo», mas enfatiza que «neste momento a questão fundamental não é o capitalismo, é a democracia». Insistindo em que «o que está em causa é a sobrevivência da democracia». Daí que «das duas uma: ou esta esquerda quer participar na defesa desta democracia, ou não quer participar.». Precisa escolher. Boaventura entende também que o carácter imperativo de tal escolha se aplica a ambos os partidos, mas considera que aquele que está em condições de defrontar mais rapidamente este problema é o BE, uma vez que o Partido Comunista existe ainda, fundamentalmente, como força de protesto, enquanto o Bloco pode desenvolver-se na perspectiva de vir a participar «num arco de governabilidade» – obviamente assente em princípios – destinado em primeiro lugar a defender os valores essenciais, que são também sociais, do Estado democrático. A entrevista encontra-se aqui.

                  Atualidade, Democracia, Opinião

                  Elena Bonner

                  Andrei e Elena

                  Desapareceu este sábado em Boston, aos 88, a antiga dissidente soviética Elena Bonner (1923-2011), viúva do físico nuclear e dissidente soviético Andrei Sakharov. Durante os anos cinzentos de Brejnev, muitos se habituaram a vê-la sempre ao lado de Andrei na denúncia comum da corrida ao armamento, da manutenção dos campos do Gulag, da perseguição dos dissidentes. Dado o prestígio internacional do marido, que o protegia um pouco dos excessos da repressão, foi muitas vezes Elena quem mais directamente sofreu com os ataques do KGB motivados pela atitude partilhada de enfrentamento do regime. As autoridades, a sua polícia e os seus porta-vozes gostavam de destacar as suas origens judaicas para acusá-la de estar a serviço de potências estrangeiras e de ter desviado Shakarov – Prémio Estaline de 1954, Prémio Lenine de 1956 e antigo membro da Academia das Ciências da União Soviética – «do bom caminho».

                  Em 1938, na época da mais intensa repressão, Elena vira o pai ser fuzilado e a mãe condenada a oito anos de trabalhos forçados. Ainda assim aderiu ao Partido Comunista, abandonando-o apenas em 1968, quando da invasão soviética da Checoslováquia. Durante a década de 1970 participou em protestos contra as detenções em massa de outros dissidentes, tornando-se numa fonte vital de informações sobre o destino dos detidos e exilados. Viria a receber em Oslo o Nobel da Paz de 1975 concedido ao marido, após Sakharov ter sido proibido de viajar para o estrangeiro. Confinado este, em 1980, à cidade Gorki, a actual Nizhny Novgorod, por protestar contra a invasão soviética ao Afeganistão, Elena tornou-se então no seu único vínculo com o exterior, até que em 1984 foi também ela condenada a cinco anos de exílio interno em Gorki por ter «divulgado sistematicamente informações caluniosas sobre a União Soviética». Depois do fim da URSS, Bonner participou de importantes organizações de defesa dos direitos humanos, tornando-se numa ardente opositora de Vladimir Putin. Até ontem de manhã.

                    Democracia, História, Memória

                    Aeroplano

                    aeroplano

                    É quinta à tarde e leio pontos dos meus alunos que falam de Goebbels, dos Beatles e do Super-Homem. Mantenho um Mahler vibrante nos headphones. Fumo cigarros fortes e baratos, de patente cubana, enrolados sabe deus onde, chegados de Bruges. Bebo um licor bielorusso muito doce, de nome impronunciável. O sol roça as copas das árvores e um pequeno aeroplano passa no horizonte.

                      Devaneios, Etc.

                      O Bloco no seu labirinto (4)

                      Último post da série, um pouco mais comprido que os anteriores. Aspectos avulsos poderão ser desenvolvidos mais tarde. Recordo que escrevo estas notas a partir de fora, como simpatizante crítico, eleitor e «compagnon de route» do BE, do qual não sou militante. O meu objectivo é apenas estimular inquietações.

                      Anoto quatro possíveis áreas de intervenção no debate sobre a reorganização do Bloco e o seu papel na construção de uma alternativa à esquerda. Com a solidariedade social, o desenvolvimento económico e da qualidade de vida e a defesa da liberdade como elementos incontornáveis e comuns de um cenário com futuro.

                      1. No centro da necessária renovação encontra-se uma definição tão clara quanto possível do paradigma político a adoptar e uma identificação da base social que o pode apoiar. É preciso escolher de forma segura e consistente entre a construção de uma alternativa socialista e democrática, voltada para a produção de convergências no campo da governabilidade – uma «social-democracia de esquerda», sem dúvida, e não há que ter medo das palavras quando se nomeia esta tendência fundadora do movimento operário e popular –, ou a insistência num «comunismo modernizado», aparentemente arejado mas ao mesmo tempo nostálgico da intervenção redentora de uma vanguarda omnisciente e do papel de um Estado despótico. Escolher entre o protesto como uma necessidade, destinada a defender direitos e a melhorar a vida dos cidadãos, e o protesto como parte da «luta final», enquanto instrumento de uma transformação violenta da sociedade. É também preciso esclarecer o espectro sociológico que o Bloco está em condições de reunir. Com toda a probabilidade, a crescente mas empobrecida classe média urbana, os intelectuais e profissionais liberais desprezados pelo «desenvolvimentismo» capitalista, os estudantes e as mais novas e melhor formadas gerações de trabalhadores efectivos ou precários. Aceitando que outros partidos à esquerda, a começar pelo PCP, agregarão diferentes sectores. O «povo do Bloco» terá um rosto fundado nos interesses e expectativas sociais que podem convergir, mas sem a fantasia de um dia englobar toda a gente que confia na esquerda como território de um projecto solidário. (mais…)

                        Atualidade, Opinião

                        A quimera do ouro

                        Chaplin em A Quimera do Ouro

                        Enquanto bebia um café na esplanada interior de um centro comercial, reparei num daqueles quiosques dedicados à compra instantânea de ouro usado que se têm multiplicado às centenas por cidades e vilas. Ainda há poucos anos, quando alguém procurava negociar uma peça no circuito das ourivesarias, era habitual levantarem-lhe uma série de obstáculos, na presunção de que quem vendia poderia ser um viciado no jogo entretido a dissipar o património familiar, ou mesmo um vulgar ladrão à procura de receptador. Agora vemos homens e mulheres com um ar desgostoso e invariavelmente envergonhado mas com aquele aspecto limpo e cuidado de quem ainda há pouco tinha dinheiro suficiente, esperando a sua vez junto a pequenos balcões públicos, expostos sem piedade aos olhares dos outros, para se desfazerem do fio, do medalhão, das libras «da rainha Vitória», do pesado relógio de bolso, que ao longo de gerações os seus antepassados compraram com esforço, exibiram com orgulho e guardaram para os que haviam de vir. «Vão-se os anéis, fiquem os dedos», pensarão como autoconsolo no meio da aflição e do pessimismo. O corte profundo com o passado e com aquilo que em tempos se presumia serem os «valores seguros» da prosperidade é também uma consequência desta espiral do empobrecimento que já não se observa apenas nos bairros periféricos e nos concelhos decadentes do interior.

                          Apontamentos, Olhares

                          O Bloco no seu labirinto (3)

                          Terceiro texto da série sobre o presente e o futuro do Bloco de Esquerda. Depois do anterior, um tanto ácido no diagnóstico da situação, segue-se uma curta reflexão sobre a necessidade do debate. No quarto post identificar-se-ão alguns dos dilemas por onde este poderá passar.

                          Estando do lado de fora, só me chegam alguns ecos. Por isso não sei se a observação interna dos problemas com os quais se defronta agora o Bloco tem sido feita da melhor maneira. Mas existem sinais evidentes de crispação, traduzidos na rejeição liminar, por vezes pública, da posição de militantes e de simpatizantes que não se limitam a observar a espuma, a apontar pequenos erros de natureza táctica, pretendendo que se vá mais ao fundo dos problemas e que se debatam as escolhas centrais que parecem bloquear o partido. Não que estes sectores tenham necessariamente razão, ou razão em tudo, ou razão até ao fim, mas nem é isto que de momento está em causa. Preocupante, sim, é observar alguma resistência a um debate radical, isto é, que vá à raiz dos problemas e das escolhas, obviamente necessário e que nesta altura do calendário político se pode fazer sem riscos inultrapassáveis. Contrapondo-se uma reflexão que aparenta ser epidérmica, destinada a retocar a maquilhagem sem mexer nas rugas.

                          A verdade é que na esquerda, e na esquerda do Bloco também, parece permanecer ainda em algumas consciências um atávico «síndroma da linha justa», que insiste na dificuldade em questionar de cima a baixo as escolhas políticas fundamentais, aceitando que elas resultaram de logros ou de erros. Apesar dos múltiplos e dramáticos exemplos históricos dos desastres causados à mesma esquerda pela confusão entre certeza e convicção, continua a ocorrer, por vezes, uma dificuldade em rever posições, confundindo questionamento com maledicência ou traição, que deve bastante à escola de dogmatismo imposta pela matriz orgânica e moral leninista. Mesmo quando esta é formalmente renegada. Ao mesmo tempo, porém, são muitos os militantes insatisfeitos ou descontentes, e principalmente os simpatizantes e eleitores desconfiados, que conservam a esperança de – a partir de um debate aberto e sem complexos, pontualmente alargado até a não-militantes – ser possível diagnosticar os males, se necessário reformulando e reorganizando caminhos, e abrindo um futuro de esperança e de confiança para a imprescindível intervenção do Bloco nos tempos bem críticos em que vivemos. Mesmo que tal exija um ou outro safanão em algumas consciências e hábitos. [continua]

                            Atualidade, Opinião

                            Árabes e helicópteros

                            Síria

                            Não sei se é por agora estarmos tão preocupados connosco, com o nosso emprego e com o vazio do nosso porta-moedas, que os árabes voltam a parecer-nos mais estranhos, mais distantes. Ou então se será por causa de vermos os helicópteros de Sarkozy e de Cameron a lançarem rockets sobre as posições de Khadaffi. Pode ser também porque o Avante! não se esqueceu de «informar» que por trás dos levantamentos populares na Síria está tão-somente a CIA em todo o seu esplendor. Ou então porque Bashar al-Assad ainda há pouco mimava com desembaraço o papel sinistro, mas popular na imprensa cor-de-rosa ocidental, de príncipe encantado. A verdade é que os acontecimentos libertadores de Tunes e do Cairo já vão longe e aquilo que está agora mesmo a acontecer na Líbia ou na Síria, com o exército a lançar os tanques contra cidades inteiras ou sobre caravanas erráticas de refugiados, quase não tem lugar nos nossos jornais e televisões, para não falar no discurso autocentrado de uma classe política sem rasgo e uma perspectiva do mundo para além dos arrabaldes de Badajoz. No Facebook, entretanto, até os profissionais das causas parecem acreditar que por ali no pasa nada. Ou de que, se algo está a acontecer, esse algo não terá seguramente muito a ver connosco. Envolve-nos um silêncio comprometedor a propósito dos sinais bem visíveis e muito preocupantes de esmagamento da revolta árabe.

                              Apontamentos, Atualidade, Democracia

                              Mudança

                              No ar uma nova disposição gráfica. Como acontece sempre, haverá quem goste, quem não goste muito e quem lhe seja indiferente. Procurou-se sobretudo encontrar uma forma de privilegiar o texto e a imagem, reduzindo o ruído suscitado até agora pelas limitações do espaço útil, pelo impacto visual da tonalidade sombria e por problemas na gestão dos arquivos do blogue. Ainda existem aspectos gráficos e de funcionalidade a afinar, o que será feito ao longo dos próximos dias. Se algum(a) leitor(a) deparar com alguma falha grave e quiser comunicá-la, encontra na base desta página o endereço para o qual pode escrever. Um obrigado desde já pela ajuda. E outro para os companheiros e as companheiras, cada vez em maior número, que por uma qualquer razão para mim completamente obscura insistem em voltar a este espaço.

                                Novidades, Oficina

                                O Bloco no seu labirinto (2)

                                A caminho

                                Prossigo com a série de posts sobre os dilemas que enfrenta o Bloco de Esquerda. Se o primeiro, sobre a demissão da liderança, terá sido quase consensual, este sê-lo-á bastante menos. Contém um esboço de diagnóstico ao qual se seguirão adiante algumas hipóteses de terapêutica. A parte mais difícil, onde se diz ao doente que está doente, segue aqui. Mas o que tem de ser…

                                Os resultados eleitorais não deixam margem para dúvidas: algo correu mal. Mas ao contrário do que têm deixado entender certos dirigentes e militantes, com a capacidade crítica um pouco esmaecida pela decepção e a ressaca do day after, esse algo não foi com toda a certeza a ingratidão do eleitorado. Incluindo-se neste aquela parte da «geração à rasca» que com todas as probabilidades se absteve. É verdade que podemos, num ou noutro caso, falar com todo o sentido de um deslizamento dos números ditado pelo «voto útil» ou pelo medo. Mas a utilidade do voto não é um factor de importância menor e medo só pode ter quem enfrenta a escuridão sozinho e desarmado, não quem sabe para onde vai e avança acompanhado. A verdade é outra: o que aconteceu tem uma origem profunda, com toda a certeza bem menos conjuntural do que se está a tentar mostrar. Procurá-la e compreendê-la pode ser incómodo, obrigar a algumas mudanças, eventualmente a um ou outro abandono, mas não ao enfraquecimento do projecto político solidário e adaptado aos tempos difíceis em que vivemos que o Bloco de Esquerda tem materializado e pode manter.

                                O problema central parece-me relativamente fácil de identificar: existiram duas escolhas que era preciso fazer mas que foram na direcção errada. A primeira diz respeito à identificação do BE com o que podemos considerar um «socialismo verdadeiro», assumindo uma componente democrática e intensamente solidária, mas voltada para a afirmação de programas materializáveis, ou então, no sentido oposto, com um «comunismo moderno», próprio dessa esquerda caviar – um epíteto lançado pela direita e rapidamente adoptado pela ortodoxia – que habita o sistema e dele recolhe alguns benefícios mas tem dificuldade em renunciar à nostalgia maximalista e revolucionária. Aos olhos do eleitorado reformista da classe média urbana, que representa o grosso dos eleitores do Bloco, a segunda opção tem vindo a surgir como dominante. E isto foi fatal. A segunda escolha ocorreu numa área completamente diferente e que parece (mas não é) contraditória em relação à primeira: o partido tem-se concentrado em excesso, tem-se esgotado, em termos públicos e organizativos, no trabalho parlamentar e nas agendas eleitorais, subvalorizando outros campos da vida colectiva e do combate social. (mais…)

                                  Atualidade, Opinião

                                  O Bloco no seu labirinto (1)

                                  O Bloco no seu labirinto

                                  Este é o primeiro de um conjunto de curtos posts sobre o passado recente e o futuro do Bloco de Esquerda que publicarei ao longo dos próximos dias. Quero esclarecer que não sou seu militante, embora seja apoiante e votante, e seu crítico também, desde a primeira hora. E que estou suficientemente próximo para controlar a margem de erro do que escrevo.

                                  Quem veja a política, e em particular a política partidária, como uma experiência fundada no modelo unipessoal do líder que determina a linha, tem, visivelmente, uma grande dificuldade em dizer o quer que seja de razoável em relação à encruzilhada na qual se encontra neste momento o Bloco de Esquerda. O BE, convém lembrar, não funciona como o PS, o PSD ou o CDS, partidos nos quais a verdadeira força propulsora não é o programa ou a moção de orientação aprovada em congresso, mas sim a rédea e a retórica do líder e do seu pequeno grupo, que moldam a paisagem à sua volta para a adaptarem a uma intervenção carismática de tipo messiânico e a uma direcção centralizada. Foi este, aliás, um dos motivos que levou o Partido Socialista a um processo de descaracterização política que o fez perder a marca identitária de partido popular e de convicções. Mas o Bloco também não é o PCP, com uma direcção sedimentada, um corpo de funcionários profissionais e uma base social estável, que o autorizam a mudar alguns rostos e vozes sem com isso alterar significativamente a linha e o discurso. O Bloco é antes um partido de aproximações e de vontades, de convergências num ambiente de razoável liberdade, onde toda a gente fala com toda a gente, sem caciquismo instituído ou «centralismo democrático», que transforma cada militante, e mesmo cada dirigente, numa peça indispensável. Isto significa que pedir demissões a toque de caixa equivale a quebrar este clima razoavelmente aberto e democrático. E equivale também, dada a real escassez dos quadros, a propor a sua liquidação a médio prazo, eventualmente antecedida da tomada do poder por uma qualquer facção ultra-militante que o radicalize e faça sangrar até que retorne ao estado grupuscular de onde há mais de uma década partiu. [continua]

                                    Atualidade, Opinião