Et tu, Orlando?

O caso não é tão estranho quanto seria de supor. Conta-se que algo de parecido aconteceu com Walt Whitman, por exemplo. E dizem-me fontes seguras que até em solo pátrio houve já quem não resistisse à tentação. Mas não deixa de ser um pouco triste que o historiador e professor britânico Orlando Figes – de quem li um muito recomendável The Whisperers: Private Life in Stalin’s Russia – tenha cedido ao expediente fácil de assinar com outros nomes, no site da Amazon, recensões elogiosas dos seus próprios livros e críticas mortíferas de obras lançadas pela «concorrência». Quero crer que se tratou apenas do gesto irreflectido – ainda que tenazmente repetido – de alguém carente e desejoso de alcançar o afecto do público, se possível materializado no crescimento apreciável da conta bancária pessoal. Afinal um homem também não é de ferro.

    História

    Condenação à liberdade

    J.-P. Sartre

    Deparei num comentário do Facebook com uma das mais populares frases de Jean-Paul Sartre – «o homem está condenado a ser livre» – ali utilizada para validar a inevitabilidade histórica dessa liberdade política, supostamente absoluta, que o 25 de Abril de 1974 trouxe consigo. Não é, porém, a esta forma de liberdade que a frase do filósofo se refere: a liberdade em Sartre encontra-se associada a uma dimensão dramática de escolha pessoal, de livre-arbítrio, produzida dentro de um universo que ao mesmo tempo a condiciona. Essa liberdade não é, pois, plena e festiva, exprimindo antes a angustiante situação do indivíduo perante as condições que revelam os seus limites e em face das escolhas solitárias e desamparadas que deve fazer. Sempre e inapelavelmente como «um estranho num mundo absurdo». Em última instância, esta liberdade essencial dispensa o combate democrático – não escolher, calar-se, fugir, perverter-se, suicidar-se, será também um acto de livre escolha –, embora ela se possa afirmar de uma forma provavelmente mais completa em democracia. Convém não confundir, pois foi a partir da concepção sartriana da liberdade como uma condenação que, durante a noite salazarista, muitos portugueses projectaram, nos casulos da vida pessoal, os simulacros de uma liberdade possível e determinadas estratégias de sobrevivência.

      Apontamentos, História

      Uma escolha difícil

      Fahrenheit 451

      Um inquérito lançado pelo blogue madrileno Papeles Perdidos pretende que assumamos o lugar do redimido Guy Montag em Fahrenheit 451 e resolvamos rapidamente o seguinte dilema: «Que obra literária memorizaria para salvá-la do fogo?». Jamais se me poria o problema, uma vez que a minha capacidade mnenónica tem diminuído um tanto – longe vão os dias gloriosos nos quais encornei em 24 horas todo o Compêndio de Filosofia de J. Bonifácio Ribeiro e José da Silva «para 7º ano e aptidão a cursos superiores» – e, para além disso, a indecisão iria paralisar-me. Se quisesse armar-me em esperto poderia escolher Finnegans Wake, de Joyce, pois tal significaria que, ao ser capaz de memorizá-lo, demonstraria ter condições para memorizar muitos outros livros. Mas prefiro aplicar as energias a trabalhar nos subterrâneos para que jamais nos possamos aproximar do futuro aterrador projectado por Ray Bradbury.

        Democracia, Etc.

        Um livro a anotar

        Espanhóis no Gulag
        Agustín Llona, Francisco Llopis e Juan Bote. Um marinheiro, um piloto
        e um professor dos ‘niños de la guerra’.
        Os três acabaram na Sibéria.

        Comemorar a liberdade – não apenas a nossa, mas «a liberdade» como fundamento da existência colectiva e da igualdade – é também redimir o passado daqueles que a viram negada. É contornar a conspiração colectiva do silêncio. Um fragmento da crónica semanal de Antonio Muñoz Molina.

        Gracias a la mediación de William Chislett acabo de descubrir un yacimiento de memoria del que no tenía ninguna noticia, que se ha abierto delante de mí como un país entero hecho de negrura: sabemos bastante de las vidas de los republicanos españoles en los campos de concentración alemanes, pero yo no tenía ni idea sobre los que acabaron en los campos soviéticos. Chislett, buscador de libros sin sosiego, me ha dado noticia de un trabajo de investigación doctoral de Luiza Iordache, Republicanos españoles en el Gulag (1939-1956), publicado hace dos años por el Institut de Ciències Politiques i Socials de Barcelona. La historia despierta más angustia al comprender el poco caso que se les ha hecho a los testigos y la rapidez con la que uno por uno se estarán extinguiendo. Jóvenes aviadores republicanos que a principios de abril de 1939 estaban terminando sus cursos de pilotos en la URSS y ya no pudieron salir del país; marineros de buques mercantes que habían llevado armas y suministros a la España republicana y se quedaron atrapados en el puerto de Odessa al final de la guerra; niños en edad escolar enviados a la URSS, extraviados en la guerra y la miseria, condenados a trabajos forzados en los campos más crueles de más allá del Círculo Polar Ártico; militantes comunistas que al llegar a lo que habían imaginado como un gran paraíso se encontraron en el interior de una cárcel. Querer marcharse de la URSS ya era de antemano un delito: entre los documentos pavorosos que ha rescatado Luiza Iordache están las pruebas de la saña inquisitorial con que los dirigentes del Partido Comunista Español en Moscú persiguieron a los compatriotas o ex camaradas que se atrevieron a manifestar alguna forma de disidencia. El libro de Iordache está lleno de listas de nombres que yo no había escuchado nunca, de libros de memorias publicados o inéditos de los que yo no tenía noticia. Una vez que el hilo se corta ya no hay manera de repararlo. Algunas formas extremas de olvido no serían posibles sin una especie de conspiración colectiva.

        Luiza Iordache. Republicanos españoles en el Gulag (1939-1956). Institut de Ciències Politiques i Socials. Barcelona, 2007. 142 páginas.

          História, Memória

          A vida não faz pausa

          O cravo

          Relembro os «velhos republicanos» da época em que ainda havia «velhos republicanos». Apareciam frágeis mas aprumados, com os seus dignos cabelos brancos, as medalhas limpas a Solarine e as coroas de flores, e lá rumavam a cada 5 de Outubro até ao lugar onde descansavam os antigos companheiros. Sabíamos todos que eram os sobreviventes de um tempo que se esfumara no tempo. Evocavam um dia distante, perdido algures nas névoas de uma memória em declive, ao qual apenas nos ligavam os laços simbólicos oferecidos pelos manuais escolares ou as colunas de efemérides. Mas nada mais. O «herói da Rotunda» era já uma fotografia desbotada, José Relvas e os seus apenas um grupo de cavalheiros ligeiramente descompostos habitando um filme de cinema mudo.

          Os portugueses com menos de 50 anos olham agora da mesma forma quase sempre desatenta as imagens a preto e branco da multidão no Largo do Carmo, a tensão no rosto do capitão Maia, a tropa na rua com cravo vermelho na boca da G3. Não pode deixar de ser assim pois aquele foi um tempo, outro tempo, ao qual muitos dos portugueses de agora chegaram apenas pelas evocações televisivas, pelos insípidos livros escolares, os discursos hirtos num Parlamento florido, a narrativa nostálgica de aulas repetitivas. Algumas vezes pela inteligência, mas jamais pela experiência. É assim porque as Revoluções com maiúscula só são Revoluções com maiúscula por não poderem viver-se todos os dias. Para os filhos e os netos de Abril tudo começou a 26 com o conta-quilómetros a zeros, e por isso para poucos deles há um «Sempre!». É assim e não há que ter pena. Há que olhar para o que está para vir e o resto é memória a guardar. Quente para alguns – sou um deles, resistente e militar em Abril se querem saber –, mas para cada vez menos porque a vida não faz pausa.

          Publicado também no Vias de Facto

            Atualidade, História, Memória

            Da vida da luta de classes

            lutadeclasses

            Num inquérito sobre cunhas publicado hoje na revista Única do Expresso («Qual a cunha mais descarada que já lhe pediram?»), a socióloga Maria Filomena Mónica revela-nos que foi uma metida «por uma empregada doméstica» que lhe pediu ajuda para conseguir obter um alvará de taxista para o marido («pelos vistos uma preciosidade», desabafa un peu ennuyée). É nestas alturas, e perante impropérios desta magnitude, que torno a duvidar da morte anunciada da luta de classes.

              Apontamentos, Atualidade, Democracia

              A rezar, a cantar e a dançar

              Monsanto

              Entrei casualmente numa página do Observatório do Algarve, já com alguns meses, que contém uma notícia intitulada «Alte revê-se na “Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”». Não sei de que forma a pessoa que falou sobre o documentário ali anunciado abordou o concurso organizado em 1938 pelo Secretariado da Propaganda Nacional do Estado Novo. Admito que o possa ter feito de uma forma correcta e contextualizada. Mas sabendo como grande parte das autarquias trata o seu passado, desconfio sempre de certas evocações locais. Demasiadas vezes, a demanda identitária, a «procura das raízes» que os seus responsáveis tentam levar a cabo, traduz-se na recuperação acrítica e anacrónica de eventos, figuras ou práticas desse passado. Apresentados como fragmentos puros da tradição, ou vectores patrimoniais, mais não são muitas das vezes, embora sob nova roupagem, do que uma forma de revivalismo ou de recuperação de valores que seria suposto a mudança histórica ter deixado para trás.

              Não se trata aqui de negar uma parte da História – todo o passado merece ser olhado e compreendido – mas, no caso da «Aldeia Mais Portuguesa de Portugal», tem-se de facto assistido, tantos anos depois, ao branqueamento de um episódio marcante na reprodução dos ideais cívicos do Estado Novo. Foi António Ferro, o director do SPN, quem, referindo-se já em 1940 a Monsanto, a aldeia vencedora do concurso – e que por isso arrebatou um simbólico Galo de Prata –, falará da sua «imagem empolgante da nossa pobreza honrada e limpa, que não inveja nem quer a riqueza de ninguém, selo da pátria espiritual que fomos e queremos ser». Povoada por um conjunto de almas que «vive contente a rezar, a dançar e a cantar, dando lições de optimismo às cidades fatigadas». Melhor retrato da configuração salazarista do «verdadeiro Portugal» não há.

                Atualidade, História, Memória

                Vulcanolatria

                volcano

                Como não evocar por estes dias de lava, fumo e cinza o vulcão Sneffels, instalado na península de Snæfellsnes, a 120 quilómetros de Reiquejavique, cuja cratera, majestosa e temível, nos foi revelada por Júlio Verne como «boca do mundo», a única passagem possível para as profundezas abissais do planeta? Por ela desceram, na Viagem ao Centro da Terra, o jovem e ingénuo Axel, o geólogo Dr. Otto Lidenbrock, seu mentor, e Hans, o atlético caçador islandês, iniciando um périplo de cinco mil quilómetros de espantos, perigos e maravilhas, pela terra oca e o oceano interior, até retornaram à luz do Sol. Expelidos do outro lado do mundo, na companhia de gazes sulfurosos e magma, pela abertura incandescente do Stromboli.

                Nota – O bloguista é um fingidor. Não, este post não me foi ditado só por uma brusca evocação das leituras dos onze ou doze anos. Foi ainda Vila-Matas quem me fez voltar ao Sneffels e a duas grandes tardes de inverno passadas na companhia de Verne.

                  Devaneios, Ficção, Olhares

                  Bento XVI não será Gorbatchev

                  Gorby e João Paulo

                  Todas as Igrejas falam em nome da História, mas na maioria das vezes fundam a sua intervenção terrena na luta contra ela. Constituem-se a partir de um gesto de rebelião – combatendo determinadas formas de poder, outras modalidades de fé ou uma ordem moral e social que os seus adeptos rejeitam – mas rapidamente se institucionalizam, contrariando a insubordinação fundadora e reproduzindo novos modos de opressão. Assentes no rito e no dogma, preservam-se por isso das heresias ou das práticas que possam abrir o caminho a rupturas, dúvidas e sedições. Ao mesmo tempo, organizam sempre que podem sistemas teocráticos, com os seus rígidos estatutos, as suas castas dirigentes, os seus mecanismos disciplinares, que para cumprirem o seu papel devem fundar-se na lei e na obediência. Assim acontece desde há dois mil anos com a Igreja romana, e assim continuará a acontecer com ela, por muito que os fundamentos nos quais se apoia sejam contestados por aqueles que a combatem, ou, numa escala diferente, pelos que, a partir de dentro ou das suas margens, a desejam reformada.

                  No Público de hoje, Vasco Pulido Valente, numa daquelas diatribes quebradiças e caturras com as quais intervala análises brilhantes e preclaras, levanta a questão da forma errada. Afirma ali o óbvio, que é a impossibilidade absoluta da Igreja católica promover reformas profundas sem se descaracterizar e perder a identidade – deixando-se assim arrastar para o abismo da sua própria destruição –, mas olha de maneira superficial o que é verdadeiramente essencial, que é o facto de um certo combate anticlerical, que ele ali trata de forma trocista, não visar a destruição dessa mesma Igreja, mas apenas um seu upgrade. Este é, aliás, um dos paradoxos nos quais incorre desde há muito uma esquerda que se reconhece como parte da Igreja, ou que, proclamando-se ateia ou agnóstica, encara muitos dos fiéis católicos como presumíveis «companheiros de jornada»: esperam por uma renovação, sem cuidar que ela jamais surgirá espontaneamente e, a ocorrer, conduzirá de maneira inexorável ao fim daquilo que pretendem renovar.

                  Para não continuarem a cair no mesmo erro no qual laboram desde os tempos do «catolicismo social» de Lamennais, deviam estes «bem-intencionados» sectores reflectir sobre as implicações reais de textos como aquele que Hans Küng acaba de publicar no Irish Times, sob a forma de carta aberta aos bispos dessa mesma Igreja na qual, tantos anos depois do desassossego que protagonizou durante o Concílio Vaticano II, se continua a considerar como parte. Nela, considera o teólogo suíço que a Igreja católica vive actualmente a maior crise desde os tempos da Reforma protestante – e não por causa dos casos recentemente mediatizados, que não passam de epifenómenos –, entendendo que existe um dever, por parte dos próprios responsáveis católicos, de promoverem grandes e urgentes reformas. Mas reconhece implicitamente que estas terão de contornar o imobilismo atávico da hierarquia. Sugere, assim, não propriamente uma correcção ou um aggiornamento, mas antes um reequilíbrio, talvez uma refundação. O que significaria a criação, a partir de dentro e com a intervenção dos próprios hierarcas, de uma outra Igreja. A ideia será simpática, evidentemente, para quem todos os dias observa, a partir de fora, a inadequação de Roma aos tempos que correm e à revalorização de um humano cada vez mais livre e plural. Só que ela é impossível de praticar a partir de dentro, uma vez que – e isso papa e Santa Cúria Apostólica vêem com clareza – tal conduziria à implosão dessa instituição, com vinte séculos de prestação de serviços e património acumulado, da qual constituem, actualmente, os corpos gerentes em exercício. O Vaticano jamais verá uma glasnost e Bento XVI não será Gorbatchev.

                  Publicado também no Vias de Facto

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Goodbye Rimbaud

                    RimbaudRimbaud

                    Posso aceitar a observação do livreiro Jacques Desse quando nos diz, a propósito do encontro com um singular Rimbaud adulto que descobrira entre um conjunto de fotografias à venda numa feira de antiguidades, que o poeta de Une Saison en Enfer aparece ali com «um ar de extraterrestre no meio dos outros, um pouco como se estivesse naquele e ao mesmo tempo noutro lugar». Por mim vejo-o antes, entre aquele grupo de bons burgueses a posar para a posteridade à entrada do Hotel de l’Univers, em Aden, lá pelos meados da década de 1880, como um sujeito normal, sem nada do jovem dandy dissoluto, ícone gay e arquétipo do poeta maldito, habitualmente associado ao famoso retrato tirado aos 17 anos. Como um tipo banal, conformado, que já deixara de escrever e exercia o melhor que podia a profissão de negociante de armas e café. Talvez pareça mais humano, embora mais triste.

                      Fotografia, Olhares

                      A voz

                      A voz

                      No Diário Volúvel, Enrique Vila-Matas fala da voz de Van Morrison como voz que lhe pareceu sempre representar «a humanidade inteira». Cada um de nós, em certos dias, em determinados momentos, encontra de vez em quando uma voz assim. Que chega de parte incerta e nos segreda ao ouvido o momento límpido no qual todas as coisas, todos os tempos, todas as forças e vozes, parecem convergir. Só que apenas nós o percebemos, e, por isso, esse fragmento de humanidade fica por nossa conta, como um segredo impossível de transmitir. Como uma jóia rara, translúcida e sem peso, impossível de partilhar, que tocamos por cinco minutos e mais ninguém vê, mais ninguém ouve.

                        Apontamentos, Etc.

                        Conjurados

                        O cardeal Saraiva

                        Esta manhã, enquanto tentava fintar o trânsito a caminho do trabalho, ouvi na rádio as últimas declarações do prefeito emérito da inigualável Congregação para a Causa dos Santos. Em mais uma imitação bem conseguida do Diácono Remédios, o cardeal José Saraiva Martins falava, a propósito da vaga de denúncias de actos de pedofilia praticados por membros do clero católico, de uma «conjura contra a Igreja». Existe, sem dúvida, uma coincidência de provas e de acusações cujo eco nos média suscita um efeito de avalanche, mas quanto mais este estilo de reacção tem lugar, mais se percebe a necessidade de ir ainda mais fundo nas denúncias e nas investigações. Se preciso for, descendo ao universo sombrio de seminários diocesanos e colégios de meninas. Um trabalho por fazer que a hierarquia da Igreja, se não estivesse impedida de renegar o seu mundo de sombras e meias-palavras, deveria reconhecer como benéfico para um retomar da dignidade dos próprios católicos. Necessário também para atenuar, tanto quanto possível, as feridas abertas e jamais saradas no passado das vítimas. E para que, de uma vez por todas, a hipocrisia romana a em matéria de sexo e de moral possa ser colocada no seu devido lugar. Se para que tal aconteça for preciso organizar uma acção concertada – vulgo conjura – dos queixosos, dos tribunais e da opinião pública, pois que se organize.

                        Publicado também no Vias de Facto

                          Apontamentos, Atualidade

                          Timor plangente

                          Fado

                          Hoje, enquanto passava imagens de um espectáculo de Nuno da Câmara Pereira em Dili – para uma plateia visivelmente pouco motivada e com ar de frete – a RTP1 fazia correr em rodapé, com insistência, uma frase que continha um lamento: «ouvir o fado em Timor-Leste ainda é coisa rara». Presume-se pois que um dia, quando forem «desenvolvidos», os timorenses verdadeiramente castiços terão em sua casa, ao lado do aspirador eléctrico e de uma televisão com 183 canais, um pucarinho com tintol do bom, um miniatura da «águia» Vitória  e uma guitarra portuguesa. E Câmara Pereira ofuscará Cristiano Ronaldo no entusiasmo do povo.

                            Devaneios, Olhares

                            Terra prometida

                            Angola

                            Existe uma «falha de memória» no que respeita à vida dos portugueses que retornaram à «Metrópole» – muitos deles pisando pela primeira vez solo europeu – nos anos quentes da descolonização. Uma falha de memória processada em duas direcções: de um lado, esse passado foi praticamente apagado pela maioria dos «portugueses de Portugal», envolvidos na culpa e no remorso da dominação colonial e desejosos de se penitenciarem exorcizando-a; do outro, os próprios ex-colonos foram silenciando o que tinham vivido, esperando talvez, por essa forma, obter uma mais rápida adaptação à sua nova vida europeia. A própria historiografia participou deste processo, aplicando-se a partir de dada altura em conhecer a realidade da guerra ou a emergência das novas nações, mas omitindo uma parte importante da vida «branca» que ficara para trás. Quanto aos ex-colonos, o seu emudecimento contribuiu, imperceptivelmente, para a construção de mitos e fábulas a propósito da experiência passada, sublinhando as boas recordações de uma «vida maravilhosa» que se perdera, mas geralmente abafando as más.

                            Nos últimos tempos, porém, um certo revivalismo colonial apoderou-se da edição nacional. É verdade que a visibilidade pública dessa romagem de saudade permanece contida, mas o número de publicações – álbuns de imagens ou musicais, livros de memórias, romances de temática colonial – denuncia a existência de um público interessado e, pelo menos na aparência, ainda vasto. Imagino muitas dessas pessoas, no resguardo da sua sala de estar, folheando noite afora estes livros com emoção, algumas lágrimas ocasionais, e, não poucas vezes, também um pouco de azedume. Uma destas obras, que acabo de comprar já em 2ª edição, é Angola, Terra Prometida, subintitulada «A vida que os portugueses deixaram», da autoria da jornalista freelancer Ana Sofia Fonseca e publicada pela Esfera dos Livros.

                            Sirvo-me do texto da contracapa para um panorama que me parece correcto: «Através de testemunhos de uma pesquisa exaustiva [a autora] leva-nos aos bairros de Luanda, ao mato e às praias. Ao dia-a-dia dos portugueses, aos seus usos e costumes. Em suma redesenha os contornos de uma vida que já só existe nas recordações de quem a viveu.» Entrevistas, cartas, diários, fotografias, jornais, cartazes, postais, servem então para trazer à vida os banhos de mar quente, a Cuca gelada, as lagostas, o cinema ao ar livre, «o cheiro a terra encarnada, os bailes, as grandes festas». E também as caçadas, os amores, o sexo, as velhas amizades, «os melhores anos da vida de muitos portugueses». A realidade e a imaginação de um mundo-outro que de facto existiu, embora assente sobre um colchão de espuma ou rodeado por uma campânula de vidro que desvanecia ou distorcia a restante paisagem, cego para os fumos de guerra que lhe deveriam toldar o horizonte.

                            Ana Sofia Fonseca – que se serve aqui, por vezes, de uma linguagem pitoresca e aparentemente démodé, contaminada sem dúvida pela fala das pessoas com as quais dialogou e o vocabulário dos documentos dos quais se serviu – chama-lhe um livro «de memórias, histórias e emoções». É-o, sem sombra de dúvida, como é também um livro nostálgico. Mas a nostalgia não é um mal em si, e, como acontece neste caso, serve muitas vezes não só para ajudar a encontrar rincões de vida que de outra forma se perderiam para sempre, como para observar, a partir do presente e com diferentes olhos, aquilo que, na altura, a premência do quotidiano ou a magia da «vida boa» impediram de perceber ou remeteram para um plano distante. Falo, naturalmente, da guerra colonial e da experiência diária dos outros angolanos. Geralmente os de pele menos clara, sem tempo e dinheiro para habitarem esse «cenário perfeito para uma vida feita de pequenos e inesquecíveis prazeres». Um cenário no qual, sem dúvida pela interferência de um esforço de imparcialidade da autora, ainda assim vão de vez em quando assomando.

                            Ana Sofia Fonseca, Angola, Terra Prometida. A vida que os portugueses deixaram. A Esfera dos Livros, 2009. 328 págs.

                              História, Memória, Olhares

                              Beatlemania

                              The Beatles

                              «Attraverso la loro musica quei quattro ragazzi di Liverpool, splendidi e imperfetti, sono stati capaci di leggere e di esprimere i segni di un’epoca che a tratti hanno persino indirizzato, imprimendovi un marchio indelebile.»

                              Lembro-me bastante bem. Há quarenta e quatro anos, as minhas pré-borbulhas regurgitavam de emoção porque John Lennon proclamara serem os Beatles mais famosos do que Jesus Cristo. Não sabia para que servia uma afirmação daquelas, mas soava-me bem: queria dizer que «nós, os jovens» estávamos a caminho de tomar o mundo, e que o Nazareno escanzelado e barbudo, já na altura com uns provectos 1966 anos, estava decididamente «velho» e deveria aposentar-se. Claro que a Igreja Católica Apostólica Romana não reagiu de forma tão entusiástica e resolveu tratar mal as Quatro Cabeleiras do Após-Calipso. A partir dessa altura, quem assobiasse «Strawberry Fields Forever» candidatava-se a viver até à eternidade ao lado de Lúcifer, com os pés nus bem assentes num tapete de brasas.

                              Pois agora, tanto tempo depois, e com dois dos Beatles já arrumados e os outros de mala aviada, L’Osservatore Romano decide prestar tributo às suas «belas melodias», concedendo o seu perdão aos antigos guedelhudos. Procura mostrar-se convincente: «sim, eles drogavam-se […] e tiveram vidas dissolutas», mas agora «ao ouvir as suas músicas, tudo isso parece distante e sem importância». A Igreja católica passou assim a amar os Fab Four e as «jóias preciosas» que são as suas músicas. E já quase podemos imaginar o Papa, de iPod e earphones nas Santas Orelhas, a bater o pé com o seu sapatinho vermelho Prada enquanto cantarola «Yesterday». Não sei porquê, este aggiornamento 2.0 soa-me a farisaísmo. Sim, porque a melhor forma de Roma se penitenciar por mais esse «erro de percepção» não é, de novo, batendo no peito em acto de contrição. É, ou deveria ser, evitando repetir a falta de capacidade para perceber na devida altura, de forma aberta e tolerante, os anseios, as expectativas e os problemas do mundo actual. E desses continua a Igreja católica, frequentes vezes, a procurar esquivar-se. Como o Diabo da cruz.

                                Apontamentos, Devaneios, Memória, Música

                                Um bom exemplo?

                                Cidinha

                                Tal como tantas outras pessoas, aderi de imediato ao vídeo de Cidinha Campos que tem circulado por tudo quanto é Internet lusófona. Ao ponto de já ter chegado à televisão portuguesa, cada vez mais seguidista em relação ao que se passa na rede. Não é difícil explicar a adesão automática a esse vídeo. A minha e a da nova legião transatlântica de admiradores da deputada estadual do Rio de Janeiro. Habituados a receber as ondas de choque de uma certa classe política brasileira, tantas vezes capaz de contemporizar com comprovados actos de corrupção, a reacção perante um gesto de denúncia tão claro e veemente só poderia ser de simpatia. Em Portugal, acostumados a um parlamento maioritariamente desbotado, no qual mesmo os deputados menos comprometidos com o sistema de prebendas institucionalizado pelo «centrão» jamais excedem o domínio da razoabilidade, a atitude ainda parece mais admirável. E se alguém pisa o risco no quadro parlamentar, como o «ministro dos corninhos», é um ai-jesus, credo, que parece impossível. Que saudades de pessoas como Acácio Barreiros (dos tempos da UDP), Francisco Sousa Tavares, Natália Correia ou Odete Santos! Para não recuarmos até Afonso Costa ou José Estêvão…

                                Perante tanto cinzentismo (alguns chamar-lhe-ão ausência de pathos), como não gostar então da atitude sonora e desempoeirada da deputada Cidinha? Bem precisávamos, diremos muitos, de uma quantas pessoas assim, para ver se, pelo menos por algum tempo, cresciam as audiências do Canal Parlamento e aumentava o interesse dos portugueses pela política. Porém, convirá dizer que nem tudo aqui é luz. Se repararmos bem nos termos e nos argumentos da deputada (perceptíveis neste e noutros vídeos acessíveis no YouTube), observaremos um estilo e o recurso a meios que são inaceitáveis em muitos países democráticos, como o uso público de informação judicial que se deveria manter reservada, a referência por alcunhas ofensivas a pessoas ainda não julgadas e condenadas ou a parentes seus, a exibição livre de epítetos e de insultos, ao melhor estilo de um «tribunal popular», que não podem aceitar-se num parlamento por mais hediondos que possam ser os crimes cometidos pelos seus destinatários. Por isto, e passada a novidade, fui deixando de achar grande piada aos vídeos populares da corajosa Cidinha Campos. Eles são reveladores de um lado populista e demagógico da democracia que também nos deve preocupar. Venha ele da esquerda ou da direita.

                                Originalmente no Vias de Facto

                                  Atualidade, Olhares, Opinião