Cura de modéstia

Albert Camus

Releio pedaços de Actuelles, a compilação de textos políticos quase todos eles escritos por Albert Camus para o jornal da Resistência Combat – que tenho numa reimpressão velhinha e amarelenta da Gallimard –, e dou de caras com um passo surgido numa crónica de Fevereiro de 1947: «A democracia não se separa da noção de partido, mas a noção de partido pode passar muito bem sem a democracia. Tal acontece quando um grupo de homens imagina deter a verdade absoluta. Eis a razão pela qual a Assembleia e os deputados têm hoje necessidade de uma cura de modéstia». Gosto da ideia – uma cura de modéstia – porque vejo esta qualidade, tomada no sentido de decência, de despretensão, de clareza, como esquecida, abandonada, sistematicamente trocada pela bazófia, pela arrogância, por uma guerra de absolutas certezas que tende a distanciar as democracias de quem as legitima e de quem elas devem servir.

    Atualidade, Olhares

    Problemática albanesa

    Hoxha

    Depois do post anterior sobre Ismail Kadaré e (um pouco) sobre o seu último livro, retorno à problemática albanesa, uma vez que esta não me sai da cabeça. Não por ser problemática, mas por ser albanesa. Acontece que sempre me pareceu profundamente injusta a menorização – por comparação com o impacto do exemplo chinês – da influência do «país das águias» na projecção, à gauche do PCP, de uma alternativa ao regime caduco do «Salazar que ri», como alcunhava o povo a Marcello Caetano. Mas a verdade é que para muitos marxistas-leninistas-maoístas, esvaziada por uma vez a Grande Revolução Cultural chinesa, Enver Hoxha é que estava a dar. E se ninguém se proclamava hoxhista era só porque a palavra soava mal e podia prestar-se a confusões pouco conciliáveis (ou talvez não) com a moral proletária. Muitas horas de nocturno descanso foram consumidas a ouvir a onda curta, vociferada em português do Brasil, que começava assim: «Aqui Rádio Tirana, voz do Partido do Trabalho da Albânia e do marxismo-leninismo, a sua doutrina sempre jovem e científica». Ao que se seguia invariavelmente uma versão bastante singular da Internacional, umas frases do camarada Hoxha «sobre a situação política mundial», as últimas novidades da guerrilha do Araguaia e 15 minutos de música folclórica do distrito de Gramsh, província de Elbasan.

    No que me toca, a problemática albanesa teve ainda um outro impacto, associado a um certo virar de página. Em Abril de 1977 veio a Portugal uma delegação do Partido do Trabalho da Albânia – episódio já mencionado pela Ana Cristina Leonardo na sua Pastelaria –, destinada a ornamentar o primeiro comício público do PCP(R). Num último assomo de convicção pessoal na força da tal «doutrina sempre jovem e científica», ainda fui de camioneta até ao comício no Campo Pequeno para saudar os camaradas albaneses. O momento parecia festivo: muitas bandeiras vermelhas, faixas com palavras de ordem como «os ricos que paguem a crise» e «abaixo a democracia burguesa», música do GAC, julgo que também alguns retratos de Estaline, de Mao e do camarada Hoxha. Mas a festa esmoreceu rapidamente com a entrada em cena da delegação albanesa: um pequeno grupo de idosos de rosto impassível, com chapéus à Al Capone, lenços de Cachemira impecavelmente dobrados no pescoço à maneira dos galãs dos anos 40, e enormes sobretudos cinzentos a contrastarem com o sol de Abril, que conservavam abotoados enquanto batiam palmas daquela forma compassada e aborrecida que podemos observar agora no You Tube. Uma viagem no tempo em forma de pesadelo. E nós que tanto desejáramos encontrar antigos guerrilheiros de porte enérgico e uniforme de partisan, se possível de cartucheira a tiracolo, prontos a esmagar «o imperialismo e o social-imperialismo», empenhados em dar-nos a força da qual tanto precisávamos para resistir à longa ressaca do 25 de Novembro! Creio que o meu entusiasmo esmoreceu logo ali um bom pedaço. E meses depois tinha-me convertido num «independente de esquerda» um tanto problemático. Graças, em parte, à falta de graça dos camaradas albaneses. A juventude não perdoa. Na época dir-me-iam que a «ideologia de classe» também não.

      Devaneios, Memória, Olhares

      O viajante albanês

      Ismail Kadaré

      Ler romancistas russos, ainda que estes tivessem escrito e publicado na era pré-soviética, já foi neste canto da Europa um acto de resistência. Não parece ter sido possível, mas a verdade é que aos catorze anos devorava Turgueniev, Gogol, Dostoievski ou Tolstoi no convencimento de ler autores proibidos. Ou pelo menos perigosos. Apesar do mais novo de todos eles, precisamente o autor de Guerra e Paz, ter morrido em 1910, quando Lenine ainda passava temporadas a transportar a bagagem e os apontamentos entre Paris e Praga. Algum tempo depois vivi algo parecido com Ismail Kadaré, o mais conhecido escritor albanês.

      Na minha ignorância, pelos meados dos anos setenta li o seu primeiro romance, O General do Exército Morto (de 1963; traduzido para o francês em 1970), convicto de estar a fazer um merecido favor aos interesses do país do camarada Enver Hoxha, que à época tomava por uma águia. Justamente, soube-o só bastantes anos depois, quando Kadaré tentava conciliar a sua obra, nada subversiva mas também nada conformada aos cânones do realismo socialista, com a capacidade que o regime tinha de a tolerar. O escritor recordava-o há meses ao Nouvel Observateur: «Se você fosse reconhecido, tornava-se uma figura hostil. Porque era senhor num reino, o da literatura, que não era aceitável por um regime autoritário. Você era como um contrapoder que era preciso destruir. Ou então perdia a sua autoridade tornando-se um escritor ridículo, servil, e nesse caso o poder aceitava-o». Aquilo que Kadaré a dado momento fez, como ele próprio reconhece, foi de certo modo degradar-se, tentando demonstrar ao Estado que dele nada tinha a temer. Em retribuição, o governo deixava-o levar uma vida dúplice, passeando pelo mundo a sua reputação de escritor de talento, mas regressando regularmente à sua «vida estalinista» decorrida entre Tirana e a Gjirokastër natal.

      Em 1990 fartou-se, refugiando-se em França antes ainda do socialismo albanês colapsar. Regressou apenas em 1999. Acusado algumas vezes de ter colaborado com as manobras dos seus compatriotas estalinistas, defendeu-se afirmando, noutra entrevista, que «a dissidência era uma atitude que ninguém podia tomar, ainda que por apenas alguns dias, sem correr o risco de enfrentar um pelotão de fuzilamento», mas considerando, apesar disso, que os seus livros tinham constituído «uma forma muito óbvia de resistência». Sem conhecer o suficiente da vida, da obra e sobretudo das atitudes cívicas de Kadaré para poder ter uma qualquer certeza a este respeito, uma coisa posso, todavia, garantir: que o seu último romance, Um Jantar a Mais, agora editado pela Quetzal, tem a forma de um claríssimo e tragicómico libelo contra o lado perverso do regime de «democracia popular» sob o qual teve de viver a maior parte da vida. Evocando o seu rosto intolerante, violento, persecutório, contra o qual, agora em liberdade, se afirma agora sem margem para dúvidas. Um belo pequeno romance, já agora. Como seria de esperar – embora estas coisas precisem sempre de confirmação – de alguém com o longo e reconhecido trajecto literário do autor. [Ismail Kadaré, Um Jantar a Mais. Quetzal. Trad. de Ana Cristina Leonardo. 176 págs.]

      «A entrada em cena de dois juízes incumbidos do inqué­rito cortou rente a vaga de especulações. Chamavam-se Shaqo Mezini e Arian Ciu, ambos naturais da cidade e regressados de fresco de Moscovo, onde tinham acabado de se diplomar pela Escola de Administração Interna Dzerjinski. Os seus ros­tos eram pálidos, o nó da gravata bem apertado, os sobretudos estranhamente compridos (dizia-se que o chefe da polícia secreta de quem a escola moscovita herdara o nome usava um capote do género, atribuindo-se-lhe também estas proverbiais palavras: o comprimento do vosso capote será inversamente proporcional à vossa piedade…).»

        História, Memória, Olhares

        Obscurantismo e pulhice humana

        Devil

        Raramente personalizo as críticas mais extremas. Interessa-me sempre contestar actos ou ideias dos quais divirjo, ou que me repugnam, não tanto agredir directamente as pessoas que lhe dão rosto. Salvo no caso destas, pela sua evidente dimensão pública, serem confundidas com as concepções ou princípios dos quais discordo. Mas nenhuma destas duas possibilidades ocorre no caso do padre Gonçalo Portocarrero de Almada, «licenciado em direito e doutorado em filosofia» e vice-presidente da Confederação Nacional das Associações de Família. Nos textos da sua autoria que regularmente saem no Público não há ideias das quais divirja, mas apenas enunciados recorrentes de ódio e de cegueira. Daí tornar-se impossível dialogar com as suas posições ou dar-lhes sequer uma dimensão que transcenda a esfera da atitude individual despropositada, difícil até de aproximar daquelas que, no interior das mesmas barricadas nas quais ele se entrincheira, pessoas mais ponderadas e argumentativas são capazes de expressar.

        Portocarrero é um ultramontano primário – neste caso o pleonasmo é justificável – que se crê predestinado a endireitar o mundo, nem que para tal seja necessário enfiar umas boas bordoadas verbais em que, na sua opinião, o faz torto. Não se limita a combater o uso de métodos contraceptivos, a interrupção voluntária da gravidez, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade, o ateísmo, o divórcio, o socialismo ou a esquerda. Todos identificados com o mal mais absoluto. Terá como guia, sem dúvida, o arcaico Syllabus da encíclica Quanta Cura, onde em 1864 o papa Pio IX enumerou os «80 principais erros do nosso tempo». Entre muitos outros, o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o indiferentismo, o liberalismo, o socialismo, o comunismo, a defesa da imperfectibilidade da Igreja, a separação desta em relação ao Estado, o laicismo, o questionamento do carácter sagrado do matrimónio ou «a civilização moderna». Segundo o padre Portocarrero, para os ímpios que persistem no erro ou no desvio, não há salvação possível e não há comunicação a estabelecer, considerando até condenável que os «verdadeiros cristãos» com eles aceitem dialogar sem a necessária firmeza.

        Na sua cólera insana e ininterrupta, atira-se agora à memória de José Saramago. Proclama de início um farisaico «paz à sua alma», admitido apesar das «reincidentes irreverências literárias» do escritor. Mas logo o surpreende que «em ocasiões desta natureza, entre as carpideiras habituais do regime laico, se oiçam também algumas lamentações cristãs», vindas dos «fiéis politicamente muito correctos fazem questão em homenagear a ‘coerência’ do defunto». Contra estes, afirma então que «a ‘coerência’ no mal não é virtuosa, mas defeituosa e, nesse caso, o único comportamento moral digno de louvor é, obviamente, a rejeição do mal e a opção pela verdade e pelo bem». Ajuntando que «se errar é humano, perseverar obstinadamente no mal é diabólico». No final do artigo, comete a suprema ignomínia de insinuar desejos para o que julga dever ser o futuro de Saramago perante o tribunal da eternidade: «Queira Deus que não tenha comparecido impenitente ante a Face que perdoa os contritos de coração». Nesse caso, esperá-lo-iam umas merecidas e convenientemente excitadas chamas do Inferno. Um triste espectáculo de obscurantismo e de pulhice humana em forma de letra. Em pleno ano de 2010 d.C.

          Atualidade, Olhares, Opinião

          A Biblioteca e a petição

          No dia 8 de Junho a direcção da Biblioteca Nacional de Portugal anunciou o encerramento, já a partir de Novembro e por quase um ano, dos serviços de Leitura Geral. Os Reservados fecharão por cerca de 5 meses. Anunciada desta forma, sem aviso prévio e por tanto tempo, a decisão traduzir-se-á em prejuízos incalculáveis para os investigadores e os estudantes, para quem aquele espaço é imprescindível uma vez que dele depende o andamento dos trabalhos com prazo-limite que têm em mãos. Uma petição a correr online pede que se reconsidere o plano de transferência, no sentido de se atrasar o encerramento da Biblioteca para depois de Junho de 2011 e de se fasearem os trabalhos de modo a reduzir o tempo de encerramento integral. Pode conhecê-la e assiná-la aqui.

            Atualidade, Etc.

            Cândido

            Soldado norte-coreano

            O comentador inocente parece francamente admirado durante o jogo de futebol Coreia do Norte – Costa do Marfim: «Mas os jogadores norte-coreanos jamais discutem um decisão do árbitro! Seja ela qual for!»

              Apontamentos, Etc.

              Waterloo II

              Napoleão
              Napoleão abdicando em Fontainebleau, óleo de Paul Delaroche (1841)

              A desastrada participação da França no campeonato mundial da África do Sul está a assumir proporções tão grotescas quanto preocupantes. Os jogadores têm dramatizado a situação servindo-se de palavras fortes como «catástrofe», «traição» ou «desespero». Atitude que só lhes fica bem, uma vez que ninguém espera de um soldado derrotado que regresse a casa trauteando o Juanita Banana. Os jornalistas franceses agem em conformidade, dando eco à vergonha que cobre les Bleus, falando em «fim do mundo» e acusando tudo e todos. É normal esta dramatização, pois quando falta o circo a nação treme, e na pátria das barricadas há sempre que temer o pior. Afinal, foi em França que nasceu Nicolas Chauvin, o soldado do exército napoleónico que nunca se conformou com a derrota de Waterloo e, apesar de considerado um tanto aparvoado pelos seus contemporâneos, se tornou o primeiro chauvinista. De acordo com o Dicionário da Academia das Ciências, este passou a ser considerado «um personagem belicoso, dotado de um nacionalismo exacerbado e irracional.»

              O problema é que esta espécie de doença atingiu agora quem tinha a obrigação de reduzir o futebol à sua dimensão de divertimento, mas prefere transformá-lo num problema de todos os franceses. Nicolas Sarkozy exigiu assim, nesta quarta-feira, que se apurem as «responsabilidades» pelo «desastre», anunciando um projecto de renovação do futebol no país que será da iniciativa do Estado. O presidente de todos os gauleses reuniu-se entretanto com o primeiro-ministro, François Fillon, com a ministra dos Desportos, Roselyne Bachelot, e com a secretária de Estado para o Desporto, Rama Yade, para «fazer um balanço da infeliz participação da selecção francesa» no Mundial. E pediu ainda, em comunicado oficial, «garantias aos ministros de que os responsáveis assumam rapidamente as consequências pelo desastre». Um precedente perigoso de transformação do futebol numa prioridade do Estado. Num assunto muito sério que deve ser sempre tratado de forma grave. Não vá o mundo pensar que a França é uma pátria de frouxos e que já não dispõe de um lugar central no concerto das nações.

              Adenda: o outro lado do desastre [em francês; merci, SN e CGS]

                Apontamentos, Atualidade

                Andam aí

                Panopticon

                Está em preparação legislação europeia destinada a vigiar e a combater os cidadãos suspeitos de manterem «opiniões radicais». Nesta intenção se englobam as pessoas organizadas em grupos de «extrema-esquerda ou extrema-direita, nacionalistas, religiosos o antiglobalização», em particular os «apoiados em ideologias fundadas no recurso à violência». A estratégia de prevenção do terrorismo na Europa, inicialmente concebida para fazer frente ao perigo real imposto pelas organizações islamitas mais intransigentes, é assim alargada de um modo discricionário, passando a aplicar-se a cidadãos e a sectores com posições políticas muito diferentes entre si, identificados na documentação preparatória de forma vaga e insuficiente. Ou mesmo a pessoas isoladas, uma vez que se recomenda a vigilância individual e a investigação dos sentimentos de pessoas «culpadas» de militarem em «grupos suspeitos» ou de, muito simplesmente, se darem com pessoas a eles ligadas. Isto significa que está em curso a oranização de processos repressivos destinados a espiar e a punir de uma forma sistemática todos os que defendam uma alternativa política não-reformista. Concebe-se um antídoto contra o radicalismo, justamente quando a crise geral do capitalismo e o crescimento das bolsas de pobreza alargam o número dos descontentes. Tomam-se medidas preventivas destinadas a matar à nascença, sem atender aos seus contornos, o combate por um outro mundo possível. A escola do barão de Haussmann, que depois dos acontecimentos revolucionários de 1848 procurou impedir através da reorganização urbanística da cidade a manutenção de uma Paris favorável à revolta, ao levantamento de barricadas e ao confronto das classes, conserva os seus discípulos.

                  Atualidade, Democracia, Olhares

                  Lembrar Terezín

                  Terezín

                  Em Terezín, uma localidade checa que cresceu à volta de uma fortaleza mandada construir a 60 quilómetros de Praga, em 1780, pelo imperador José II, Hitler fez erguer «uma cidade para judeus» que pretendia modelar. O seu objectivo continha uma dupla face: por um lado, a cidade servia para mostrar, às autoridades dos países neutrais ou a alguns aliados dos nazis que pudessem mostrar-se mais sensíveis às primeiras informações sobre a natureza da Solução Final, a forma como os judeus viviam bem sob a protecção de um «benevolente» Terceiro Reich; por outro, permitia a concentração de mão-de-obra particularmente qualificada, uma vez que os judeus destinados a habitar a cidade, agora baptizada Theresienstadt, eram em regra pessoas com uma formação superior. Muitos deles eram músicos, actores, artistas, escritores, jornalistas, ou membros destacados de organizações políticas entretanto ilegalizadas. Logo, pessoas perigosas mas «apresentáveis» e temporariamente úteis. ler mais deste artigo

                    Democracia, História, Memória

                    38 anos depois

                    As vítimas dos disparos dos soldados britânicos – causando 14 mortos e um número elevado de feridos – no incidente que ficou conhecido por Domingo Sangrento (Bloody Sunday), em Londonderry, na Irlanda do Norte, a 30 de Janeiro de 1972, foram agora consideradas inocentes de qualquer provocação por um inquérito oficial aberto há cerca de 12 anos. Este provou que as tropas britânicas de ocupação dispararam deliberadamente e sem qualquer aviso prévio sobre os participantes de uma marcha pelos direitos cívicos da minoria «católica» pobre e segregada. O acontecimento impôs uma escalda da violência no Ulster e transformou o «problema irlandês» numa das grandes preocupações internacionais da época. Um problema apenas parcialmente resolvido. Basta caminhar por certas áreas de Belfast ou de Londonderry para percebê-lo sem ser preciso perguntar a alguém.

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                      Apontamentos, Democracia, História

                      A vuvuzela e o «preto da corneta»

                      Armstrong

                      Num painel de comentadores que debatia ontem na Sport-TV o efeito da esmagadora presença da vuvuzela no Campeonato do Mundo de 2010, a posição partilhada por todos lembrava, por entre lamentos sinceros e declarações de desespero, que «temos de acatar a tradição», pois «os africanos são assim e há que respeitá-los como são». «Pedimos ao mundo inteiro que respeite a nossa cultura», dizia poucas horas antes, em conferência de imprensa, Rich Mkhondo, o porta-voz do comité organizador sul-africano. Não sei onde foi esta gente buscar tais razões, uma vez que o instrumento entrou nos estádios sul-africanos apenas pelos meados da década de 1990 e a empresa Masincedane Sport só começou a comercializá-lo em 2001. Além de que não é habitualmente utilizado nos outros países dessa África que os talibãs das identidades pretendem passar de múltipla a una. A não ser que remontemos ao preconceito muito divulgado no hemisfério norte de acordo com o qual os africanos – leia-se, os negros – são naturalmente barulhentos e, tal como as crianças, um pouco descontrolados. Era nesse sentido que, pelos anos trinta, um jornal português se referia ao trompetista Louis Armstrong como «o preto da corneta»: tocava daquela maneira, coitado, porque a sua natureza de «grunho» exigia isso dele. A ninguém parece ocorrer, para não ir mais longe, que uma pletora de instrumentos de percussão é utilizada em toda a África desde tempos imemoriais e que, convenientemente tocados, estes permitem timbres e ritmos únicos e muito diversos. Perturbantes sem serem ensurdecedores, estimulantes sem enlouquecerem. Por mim, admito que sinto já um efeito directo da zoada ensurdecedora das vuvuzelas: desejo do fundo do coração que os bafana bafana, os jogadores da selecção da África do Sul, sejam rapidamente eliminados. Para ver se, pelo menos, esmorece o fôlego e o efeito de sopro entre aquela multidão de alucinados. Podem chamar-me eurocêntrico.

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                        Fé e partilha

                        A tolerância, escreveu João Maria André em Pensamento e Afectividade, «é, evidentemente, o contrário da atitude fundamentalista e do seu projecto societal, mas pode ser, ao mesmo tempo, o espaço em que o fundamentalismo desabroche para aniquilar todas as formas de tolerância». Daqui se pode inferir que a aceitação, em nome de uma ideia de tolerância, de tudo, de todos os dogmas, de todas as fés, de todas as formas de legitimação da guerra ou da paz, apenas faz sentido se assentar em valores e experiências partilhados pelos partidários de todos esses dogmas, de todas essas fés, de todas essas formas de legitimação da guerra ou da paz. Isto é, só devemos aceitar a dissemelhança naquilo em que ela não colida com a própria noção de tolerância. Esta exprime uma firme disposição para admitir uma maneira de ser e de agir distinta da nossa, mas exclui a aceitação como única dessa maneira de ser e de agir que é distinta da nossa. É esta, em boa medida, a filosofia que preside à magnífica e corajosa intervenção de Barack Obama sobre religião e secularismo, pronunciada há perto de dois anos, que aqui se reproduz.

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                          Atualidade, Democracia, Olhares

                          Maalouf e o conflito dos mundos

                          Amin Maalouf

                          Foi um acto de justiça, e de uma justiça justa, a atribuição do prestigiado Prémio Príncipe das Astúrias em Letras – concedido nos últimos anos a Claudio Magris, Nélida Piñon, Paul Auster, Amos Oz, Margaret Atwood e Ismail Kadaré – ao romancista, ensaísta e antigo repórter Amin Maalouf. Todo o seu trabalho se confrontou sempre com a convergência e a complexidade dos mundos que pôde partilhar: libanês de família cristã, nascido em Beirute e criado no Egipto, viveu grande parte da vida entre muçulmanos, mas reside actualmente em Paris, tendo o árabe como língua nativa e escrevendo agora em francês. O reconhecimento internacional foi rapidamente obtido a partir de 1986 com a publicação dos seus primeiros romances históricos, de um género então considerado um tanto fora de moda. Leão, o Africano, Samarcanda, Os Jardins de Luz ou O Rochedo de Tanios, foram nessa altura, todos eles, muito elogiados e rapidamente traduzidos num grande número de línguas. Menos consensuais têm sido, porém, os ensaios de Maalouf. As Cruzadas Vistas pelos Árabes foi publicado muito cedo, em 1983, e propunha ao leitor ocidental uma representação «anti-épica» da iniciativa dos cruzados cristãos, descritos pelos muçulmanos que haviam recebido o seu agressivo impacto como invasores, cruéis e ignorantes. Como bárbaros, de facto. Uma perspectiva que agradou rapidamente a muitos leitores, críticos das leituras que permaneciam hegemónicas no Ocidente a propósito da relação entre este e um mundo islâmico observado como ninho de desprezáveis infiéis. Todavia, o consenso começou a ser rompido com a publicação de Identidades Assassinas (1998) e agora de Um Mundo Sem Regras (2009). Porquê? Os dois passos destes livros que se transcrevam definem com alguma clareza o sentido de uma possível resposta. Ao mesmo tempo que reforçam a justeza e o elevado valor simbólico do prémio agora conferido.

                          «Tudo o que diz respeito aos direitos fundamentais – o direito de viver como cidadão de pleno direito na terra dos seus antepassados sem sofrer perseguições ou discriminações; o direito de viver com dignidade, onde quer que alguém se encontre; o direito de escolher livremente a sua vida, os seus amores, as suas crenças, no respeito da liberdade dos outros; o direito de aceder sem entraves ao saber, à saúde, a uma vida decente e honrada – nada disto, e a lista não é restritiva, pode ser negado aos nossos semelhantes sob o pretexto de preservar uma crença, uma prática ancestral ou uma tradição. Neste domínio, será necessário inclinar-nos em direcção à universalidade, e mesmo, se necessário, em direcção à uniformidade, porque a humanidade, mesmo sendo múltipla, é, em última análise, uma só.» (As Identidades Assassinas)

                          «O que eu censuro hoje ao mundo árabe é a indigência da sua consciência moral; o que eu censuro ao Ocidente é a sua propensão para transformar a sua consciência moral num instrumento de dominação. Duas acusações pesadas e para mim duplamente dolorosas, mas que não posso deixar de fazer (…). No discurso de uns procurar-se-ia em vão os vestígios de uma preocupação ética ou a referência a valores universais; no discurso dos outros estas preocupações e estas referências estão omnipresentes, mas são utilizadas selectivamente e constantemente desviadas a favor de uma política. O resultado é que o Ocidente não cessa de perder a sua credibilidade moral, e os seus detractores não têm nenhuma.» (Um Mundo Sem Regras)

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                            Os pequenos lusitos e os seus netinhos

                            viarco

                            Ia falar a propósito disto. Eis senão quando isto me tirou as palavras da boca. Convém pois não confundir representação com apologia. E não podem existir passados-tabú. Devemos sempre, sem dúvida, permanecer atentos aos processos de branqueamento de Oliveira Salazar e do salazarismo, mas o Estado Novo aconteceu e a sua evocação não pode nem deve permanecer circunscrita aos estudos históricos, aos congressos académicos e à memória selectiva daqueles que perseguiu. Isso sim, pode fazer crer às gerações mais recentes que «o fascismo nunca existiu», que não passa de uma fábula às voltas nas cabeças de uns quantos. Digo-o eu, que já cantei diariamente o Hino dos Lusitos – «Somos pequenos lusitos / mas já firmes e leais / amamos e respeitamos / nossos chefes, nossos pais» – e desenhei casinhas modestas e lindos campos de flores com lápis Viarco. Sem grandes danos colaterais, julgo.

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                              O nosso Kim Philby

                              Miguel de Vasconcelos

                              Falo um pouco de futebol, que é de momento aquilo que nos vale para não entrarmos todos em depressão profunda. O senhor António José Conceição Oliveira, mais conhecido por Toni, antigo jogador e treinador de futebol e figura pela qual até mantinha uma certa simpatia, foi contratado pela selecção da Costa do Marfim para informar o seu Mister – Sven-Goran Eriksson, o conhecido cidadão sueco que foi em tempos anunciante da aguardente Macieira – dos prós e dos contras da equipa portuguesa. Não se trata de uma ligação profissional prévia, que imporia naturalmente deveres de lealdade, mas sim de um contrato recente, feito de propósito para quem o assinou vender informações ao inimigo e trair a sua pátria. Temos pois, finalmente, o nosso Kim Philby. Ou um novo Miguel de Vasconcelos. A escolha é vossa.

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                                A caminho de Soccer City

                                matraquilhos

                                Bem sei que pode parecer um pouco cruel escrever isto, mas dói ver a forma como muitos dos emigrantes portugueses na África do Sul – a maioria originária do norte empobrecido da ilha da Madeira, onde pais, avós e bisavós penaram sob o regime de colonia – se comportam quando saem dos bairros onde moram e trabalham e são colocados à frente de uma câmara de televisão para falarem da «nossa selecção» e de «nós, portugueses». Um país antigo e desigual ressurge então das sombras, mesmo quando são jovens a darem a cara. Na maior parte dos outros destinos da nossa diáspora já não é vulgar depararmos com um número tão elevado de pessoas assim, parecendo arrancadas a uma canção de Max ou de Marante. Adivinham-se então as sucessivas gerações de exclusão e de trabalho, em fábricas ou pequenos bisenesses, que estão por detrás daquela felicidade efémera. Os bem-sucedidos, claro, não se vêem nas imagens dos engarrafamentos, da poeira nos sapatos e das vuvuzelas verde-rubras. Quanto aos repórteres no terreno, esses continuam mais preocupados em saber do interlocutor o que sente ele «ao ver Cristiano Ronaldo», se está ali para «apoiar os nossos jogadores», se acha que Portugal «vai ganhar». Tudo normal na aparência, embora um tanto tristonho. Mas nada que um final de tarde em glória no estádio de Soccer City, Joanesburgo, a 11 de Julho, não possa tornar irrelevante.

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