Chabrol numa fotografia de Jeanloup Sieff, 1959
O Claude Chabrol (1930-2010) do qual mais gostei foi este. Por causa do humor mais rude e juvenil, acho eu. Porque parecia mais fácil também, talvez. Talvez também pela ausência de preconceitos.
Chabrol numa fotografia de Jeanloup Sieff, 1959
O Claude Chabrol (1930-2010) do qual mais gostei foi este. Por causa do humor mais rude e juvenil, acho eu. Porque parecia mais fácil também, talvez. Talvez também pela ausência de preconceitos.
Toda a ficção é memória. E o contrário é também verdadeiro, como se sabe. Mas alguma ficção contém mais memória do que outra. É este o caso de Tudo o que eu tenho trago comigo (Atemschaukel no original), de Herta Müller. O romance, publicado em 2009 e agora traduzido, que assoma como relato diferido das perseguições suportadas pela população romena de origem alemã logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Culpada toda ela, fosse qual fosse a idade, profissão ou atitude dos seus, apenas de o ser. Muitos foram sumariamente executados, alguns, poucos, conseguiram escapar, mas quase todos os que tinham entre 17 e 45 anos foram deportados para o Gulag, onde os que conseguiram sobreviver às privações, às cadências e aos castigos passaram anos. Müller conta aqui a história de Leo Auberg, um jovem de 17 anos, natural de Siebenbürg, na Transilvânia, que foi enviado para o campo de trabalho de Nowo-Gorlowka, na Ucrânia. A personagem foi inventada e os atalhos da sua vida também, mas mesmo uma leitura desatenta mostrará sem dificuldade que o romance não poderia ter sido escrito sem fontes testemunhais muito próximas do trabalho de criação. Elas existiram, de facto: Oskar Pastior, um poeta judeu-alemão, antigo prisioneiro, com quem Hertha de início contava partilhar a autoria do livro – tal não aconteceu apenas porque Pastior morreu em 2006 –, e diversos sobreviventes, entre eles a sua própria mãe. Os dois fragmentos que se transcrevem, ambos sobre o trabalho terrível, diário, obsidente, da fome, comprovam a marca indispensável de proximidade entre depoimento e criação neste caso de Lager-Buch, «livro de campo de concentração». Escusado será dizer que vivamente recomendado.
A primeira decisão do dia era: Tenho suficiente firmeza hoje ao pequeno-almoço, para não comer toda a ração com a sopa de ervas? Consigo, no meio da fome, guardar um pedacinho para comer à noite? Almoço não havia, estávamos a trabalhar e não havia nada para decidir. À noitinha, depois do trabalho, se tínha mos mantido a firmeza ao pequeno-almoço, vinha a segunda decisão: Tenho suficiente firmeza para meter a mão debaixo da almofada e ver se o pão que poupei está lá? Consigo esperar até passar a chamada e comê-lo só na cantina? Poderia ainda demorar duas horas. Se a chamada não terminasse logo, mais tempo ainda.
Se não me tinha mantido firme de manhã, à noite não tinha nenhum resto de pão, nem sequer uma decisão para tomar. Enchia a colher só pela metade, sorvia profundamente. Tinha aprendido a comer devagar, a engolir saliva depois de cada colher de sopa. O anjo da fome dizia: A saliva prolonga a sopa, e ir dormir cedo encurta a fome.
[…]
O meu companheiro de cave Albert Gion dissera a caminho de casa, depois do turno da noite: Agora que está quente, quando não se tem nada para comer, pode-se pelo menos aquecer a fome ao sol. Eu não tinha nada para comer e fui para o pátio do campo aquecer ao sol a minha fome. A erva ainda estava castanha, pisada e ardida do regelo. O sol de Março tinha as franjas pálidas. O céu era de água ondulada por cima da aldeia dos russos e o sol deixava-se levar impelido pela ondulação. A mim impelia-me o anjo da fome na direcção do lixo por trás da cantina. Haveria ali porventura cascas de batata, se ninguém ainda lá esteve antes de mim. A maioria ainda estava a trabalhar. Quando vi a Fenja à conversa com a Bea Zakel perto da cantina, tirei as mãos dos bolsos e abrandei para velocidade de passeio. Não podia ir agora ao lixo. A Fenja vestia desta vez o casaco de croché lilás e eu lembrei-me do meu lenço de seda cor de vinho. Depois do fiasco com as polainas, não queria voltar ao bazar. Quem era tão boa a falar como a Bea Zakel também podia ser boa a negociar o meu cachecol por sal e açúcar. A Fenja foi atormentada a coxear para a cantina, a tratar do seu pão.
Herta Müller, Tudo o que eu tenho trago comigo, Dom Quixote. Trad. de Aires Graça. 296 págs.
imagem ampliada e créditos aqui
Sou dos que já compraram livros só por causa das suas capas. Claro que isto representou repetidos arrependimentos, decepções escavadas e algum dinheiro mal gasto. Mas ainda nestes casos, pelo menos durante aquele tempo que transcorre entre o acto da compra e a leitura muitas delas me sopraram grandes esperanças ou fantásticos cenários. Não recrimino os editores, e muito menos os autores, que fizeram pela vida e me ofereceram durante umas horas, talvez por alguns dias, doses de gozo expectante e de faina da imaginação. E mesmo após a desilusão, volto muitas vezes a pegar nesses livros de alma frágil, não pelo que eles contêm – que vale pouco, ou quase nada, e que por isso rapidamente esqueci – mas pelo que ainda parecem encerrar. Ao contrário, romances magníficos, ensaios notáveis, textos que deveriam permanecer sagrados, são muitas vezes diminuídos por capas medíocres e enfadonhas, sem ponta de beleza ou de criatividade, que impedem o potencial leitor de ver para além do que o texto oferece. Como gosto de acariciar livros, prefiro-os por isso apetecíveis e provocantes, antes mesmo de gostar deles «pelo que são».
Tudo isto por causa de Montag: by their covers: resgate do fogo (Ray Bradbury presente, claro), um blogue que acabo de descobrir todo ele dedicado ao design gráfico das capas dos livros. Essa bela arte que tem a vantagem de não precisar de paredes nuas e brancas ou de uma luz favorável. Nos últimos dias tem reproduzido textos de Jorge Silva Melo que partem de capas portuguesas belas ou insinuantes para falar dos romances, dos editores e dos gráficos que tiveram a sorte de se envolver com elas.
Não me sinto radiante com as recentes atitudes e declarações de Fidel Castro, nem tenho expectativa alguma em relação ao seu reconhecimento de «erros» pelos quais ao longo de décadas foi o primeiro responsável. E muito menos por ter agora declarado não ser exemplo a seguir, «porque nem na ilha funciona», o modelo de revolução pela qual se bateu e que ao longo de mais de quarenta anos talhou à sua imagem. Na verdade, o regime cubano pouco liga a tais fabulações e não dá o menor sinal de alterar as suas políticas no campo dos princípios, das liberdades e das políticas. Aquilo a que estamos a assistir é apenas a um processo visível de «diminuição cognitiva», erradamente tomado como acto de contrição. Um Castro assim dá pena. Deveria ter sido poupado no seu outono a este espectáculo triste e degradante. Haja alguém, entre os seus muitos amigos, que faça alguma coisa.
De cada vez que os grupos que contestam a existência legal das touradas dão sinal de si, os seus opositores, de peito feito e jaqueta assertoada, ou unhas afiadas e mantilha a condizer, entram a matar. Está-lhes na índole e por isso se compreende o tique. Aquilo que já não se aceita é que a comunicação social que lhes dá eco não interpele essa evidência: contra um sector de opinião que não gosta de braveza e se limita a emitir um juízo, procurando apoios para os seus pontos de vista, saem para a rua aos berros, farpas na mão, acusando os outros, os anti-taurinos, de «talibãs», de «fundamentalistas», talvez mesmo de bolcheviques encapotados (que são de longe os piores, como todo o mundo sabe). E ameaçando, velada ou explicitamente, irem-lhes às ventas se a ocasião se proporcionar. Um caso óbvio de não ver o argueiro em olho próprio.
O último acto desta comédia foi da iniciativa do guionista e autarca ribatejano F. Moita Flores, que nos promete, contra a petição legislativa que vai propor à Assembleia da República medidas contra as corridas, e ao estilo a minha é maior do que a tua, «reunir 100.000 assinaturas em defesa da tourada». Na sua argumentação «progressista» – pois considera a tourada um factor castiço de «progresso» económico, societário, cultural e até gastronómico – refere a dado momento que os militantes anti-tourada, que tanto o estorvam e tanto o enervam, «fazem abaixo-assinados, procurando destruir sem compreender, protestar quando a verdadeira essência do seu protesto são as suas próprias consciências». Acaba no entanto por pôr o dedo na própria ferida, carregando até doer. De facto, trata-se aqui principalmente de uma questão de consciência. O resto, da tortura bárbara de animais à civilidade marialva, são efeitos desta, não causas.
Em Havana, Yoani Sánchez foi matricular o seu filho numa escola do ensino pré-universitário. Depois de ler um aviso ali afixado num quadro negro ficou na dúvida sobre se Teo iria entrar numa escola pública ou no serviço militar.
Acerca del uniforme: Las hembras no usarán más de un par de aretes. Las camisas y blusas se usarán por dentro. No se les harán pinzas, recortes para ajustar al cuerpo o que queden por encima de la saya o pantalón. No sustraer los bolsillos. Las sayas deberán tener un largo de 4 centímetros por encima de las rótulas de las rodillas. No se permitirán sayas pélvicas, decoloradas o con marcas de planchado. Los pantalones deberán ajustarse a la altura de los zapatos. No se permiten pantalones pélvicos. Las hembras no usarán maquillaje. No se permiten pulsos, collares, cadenas ni anillos. Los atributos religiosos no podrán estar visibles. Los zapatos serán cerrados y las medias blancas y largas. No se portarán MP3, MP4, celulares. Los varones no usarán aretes, presillas ni piercing. Los cintos deberán ser sencillos y sin hebillas excéntricas, grandes o a la moda, estos deberán ser de color negro o carmelita.
Acerca del cabello: Los pelados, peinados y afeitados deben ser los correctos, eliminando toda excentricidad y modismos ajenos al uso del uniforme. No se permite en los varones: el pelo largo, pintado, pinchos largos, ni figuras en el cabello. Las hembras no usarán aretes colgantes. Las prendas a usar en el cabello deben ser: azul, blancas o negras. Estas tendrán un tamaño acorde. El cabello de los varones no debe exceder los 4 centímetros.
Um obrigado pela dica à Joana Lopes.
Gosto da palavra camarada. Muito. E por isso me perturba vê-la abusada, banalizada. Como sílaba de um mantra. Como amparo desabrido de liturgias vãs. De futuros baços e autobloqueados. Já serviu a iniquidade, a opressão, a força bruta, a ordem exacta dos lugares sombrios. Já serviu o Mal. Mas também a solidariedade, a compaixão, a revolta e a esperança. Principalmente a esperança. Gosto de a ouvir na rua que é onde ela deve permanecer. Não em templates de comunicados de imprensa, orações de circunstância, missivas impessoais ou ordens de serviço. Gosto dela sem maiúscula. Rara e clandestina. Murmurada ou manifesta. Na rua, de onde jamais deveria ter saído.
Camarade [I]
TOCAR
Camarade [II]
TOCAR
Imprudentes, ou então demasiado confiantes na letargia do povo e na força da polícia, as autoridades moçambicanas subiram, de uma assentada, o preço da luz, da água, do arroz e dos produtos de padaria. Ignoraram a velha máxima de Juvenal, com quase dois mil anos, acerca do papel do pão – e, como é sabido, também do circo – na conservação do respeito e da acalmia das populações.
Recapitulando (e imaginando que os leitores e as leitoras deste blogue sabem forçosamente um pouco de latim…):
Uma das mais remotas recordações que tenho da morte como algo bem mais forte, bem mais presente, do que uma mera abstracção, foi-me interposta pelo monitor da televisão. Tratava-se de uma reportagem sobre o julgamento e a execução em Israel de Adolf Eichmann, que então, corria o Maio de 1962, acabavam de acontecer. O SS-Obersturmbannführer fora um dos arquitectos da «solução final» e dos principais administradores do Holocausto, classificado por Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, como humana expressão da «banalidade do mal». As imagens da câmara onde decorreu a sua execução, filmadas poucos minutos antes e após o enforcamento – a única execução civil da história penal de Israel, onde a pena de morte aplicada por tribunais não existe – impressionaram nessa altura muitas pessoas. E, tanto quanto consigo reconstituir uma experiência de criança, também me impressionaram bastante. Não apenas pela morte da pessoa em si, mas igualmente pelo cortejo de terror e de outras mortes, milhares, ou milhões, que simbolicamente ela transportava consigo. Nunca mais pude imaginar o trajecto final entre um qualquer «corredor da morte» e a execução definitiva do condenado sem rememorar aquelas imagens a preto e branco de um horror justiceiro.
Foi também aquela, creio, a primeira vez que ouvi falar de Simon Wiesenthal, o «caçador de nazis», judeu de origem ucraniana e antigo prisioneiro que sobreviveu a cinco campos de concentração e se tornou responsável, terminada a Guerra, pela localização e pela captura de Eichmann, tal como pela de muitos outros responsáveis pelos crimes gigantescos do nazismo. Deveu-se a ele, em grande parte, a primeira campanha sistemática de salvaguarda da memória da shoah através da identificação dos seus executantes, e um esforço tenaz, por ele também aplicado ao longo de décadas, para não a deixar cair no esquecimento e na irrelevância. Para muitas pessoas, a quem a justiça em relação à memória das vítimas do regime hitleriano e aos crimes dos seus carrascos ainda não tinha sido embotada por um anti-semitismo por vezes cego e acrítico, Wiesenthal tornou-se então uma espécie de super-herói vivo, incansável na sua «luta titânica», aparentemente solitária e mantida até à sua própria morte aos 97 anos, contra a omissão dos crimes dos nazis e pela averiguação do paradeiro dos seus mandatários ainda vivos.
Ora foi agora revelado, na biografia Wiesenthal – The Life and Legends, escrita pelo historiador e colunista israelita Tom Segev, com a aparente surpresa de alguns sectores, que a sua acção foi em larga medida financiada e protegida pela Mossad. Conhecendo-se o lugar histórico desta, na época da sua fundação, como agência de investigação aplicada na defesa do Estado de Israel, não vejo em que medida possa esta revelação aparecer, aos olhos de quem quer que seja, como estranha ou despropositada. A mim a ligação parece inevitável, quase natural, e, a bem dizer, na minha insciência de uma história detalhada da vida de Simon Wiesenthal, foi coisa que pensava já estar até reconhecida. Não percebo pois em que medida a revelação possa afectar o valor do seu importante trabalho justiceiro. Independentemente dos erros e atropelos que, como acontece com todos os trabalhos dessa natureza, possam ter ocorrido. Heróis perfeitos só na ficção, e mesmo aí convém não escavar muito fundo na caracterização dos personagens.
Operação de charme da República Democrática Popular da Coreia (do Norte) em canal próprio do You Tube. Um apreciável esforço para impressionar o mundo ao qual não falta uma banda sonora de invulgar qualidade.
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Fora do universo do «socialismo de Estado» e do marxismo mais imperativo, o perfil de Lev Davidovitch Bronstein, Trotsky, incluiu sempre os estigmas do herói e do mártir. A luta contra Estaline e o estalinismo concedeu-lhe desde cedo – e não apenas entre os seus seguidores – uma imagem pública de bolchevique «autêntico», que não traiu mas foi traído. Isaac Deutscher descreveu-o como o «rebelde par excellence», justamente para se referir às características que o transformaram, a partir de 1921, num crítico do regime que ajudara a estabelecer. Terá sido essa silhueta de «eterno revolucionário» a determinar o efeito internacional de sedução que projectou junto de sucessivas gerações de comunistas e outras pessoas da esquerda revolucionária desconformes em relação aos rostos do paradigma marxista-leninista. O papel decisivo na Revolução de Outubro e na criação do Exército Vermelho, a grande aptidão como orador, o valor literário dos seus escritos, associados a um estilo pessoal elaborado que o aproximava mais do intelectual do que do duro combatente maximalista, contribuíram também para fixar a representação encantadora do homem de letras dedicado a uma causa pela qual viria a dar a própria vida. Porém, nada disto seria suficiente para lhe assegurar a imortalidade. O passo definitivo foi dado pelo projecto político próprio, fundado na defesa de uma revolução permanente lançada à escala mundial contra a perspectiva do «socialismo num só país», e na percepção de uma «crise da direcção do proletariado» que tornava imprescindível um combate sem tréguas contra a degenerescência burocrática. A repressão brutal destas ideias e dos seus partidários, imposta por Estaline, acabaria por acentuar a noção de exemplaridade, de pureza revolucionária, mais tarde revigorada por biografias de pendor intensamente elogioso e hagiográfico como a de Deutscher, editada entre 1954 e 1963, e a de Pierre Broué, saída em 1988. ler mais deste artigo
Como aconteceu em outras 110 cidades do mundo inteiro – para ser mais exacto, em 111 cidades daquela parte do mundo na qual as pessoas comuns se podem auto-organizar e expressar publicamente os seus protestos, alegrias e opiniões – decorreu ontem em Lisboa a manifestação contra a morte por lapidação de Sakineh Ashtiani e a pena capital praticada no Irão por crimes de natureza moral e religiosa. O número de participantes presentes varia segundo as diferentes fontes, mas pessoas em quem confio coincidem ao apontar para cerca de meio milhar de pessoas. Não é um mau número para uma tarde tórrida de um sábado de Agosto. Sabendo-se além disso que as lutas pelos direitos humanos – especialmente os dos outros – raramente são muito participadas, independentemente da latitude na qual se travam. No entanto, no caso do protesto de Lisboa, é possível detectar algumas forças que por omissão ou esforço de contra-propaganda concorreram para que a mobilização não fosse um pouco maior. São particularmente visíveis na Internet, sobretudo nos blogues nacionais e no Facebook, não sendo despropositado o termo de comparação uma vez que foi aqui que a iniciativa arrancou e foi por estas duas vias que indignação das pessoas foi mobilizada.
Detectam-se razões que têm a sua origem no sectarismo mais ortorrômbico («ah, mas foram fulana e beltrano que são do partido xiz a organizar aquilo!»), numa confusão desajustada das prioridades («há lutas bem mais importantes, camaradas»), numa incurável cegueira política («trata-se de uma intromissão na autonomia de um Estado soberano») ou no desvairamento mais completo e a precisar de tratamento urgente («foram a CIA e a Mossad que financiaram e organizaram esta miserável campanha»). Para além, claro, do silêncio dos partidos políticos, para quem o conceito de solidariedade para com a injustiça, de denúncia da perseguição política e de defesa dos direitos humanos dependem dos programas e não das pessoas. De sublinhar, a este respeito, a ausência completa de uma palavra ou de um gesto de apoio, ainda que informal ou a título individual, por parte de responsáveis do PCP. Ou o «esquecimento» público do governo português perante este caso. São factos bem evidentes, que importa anotar para sabermos com quem podemos contar sempre quando se trata de situações que têm a ver com a defesa de vidas humanas sob pressão ou em risco imediato. Nesta situação concreta com a vida de uma mulher em vias de ser punida, – e em primeiro lugar justamente por ser mulher –, da forma mais bárbara e atroz que é possível conceber-se. Pode lá haver combate mais justo, valor mais importante, «opção táctica» mais legítima?
Adenda a 31/8: Entretanto o PS (não o governo da nação com voz perante as nações) lançou um apelo ao governo do Irão, e um bloguista militante e vigilante do PCP (não um seu actual responsável) chamou a atenção para este caso e recorda-o dramaticamente urbi et orbi. Fazem bem, uns e outro. Não fazem, organização e pessoa, senão o seu dever.
Fora dos territórios controlados por regimes ou movimentos de inspiração autoritária, o direito de cada um a dizer aquilo que entenda é, em princípio, total. Como total é o direito dos outros a contradizê-lo, mesmo da forma mais frontal. Ou a responsabilizá-lo, se for preciso. Em democracia, o direito à palavra é inalienável, seja ela a do electricista, a da varina ou a do operador de guindastes. Isto aplica-se também, naturalmente, à recente polémica em redor das afirmações de António Lobo Antunes sobre a sua experiência da Guerra Colonial. Nelas o escritor referiu «factos» que declarou ter presenciado e que se traduziram em generalizações abusivas sobre o comportamento dos militares portugueses durante a Guerra Colonial. Nada do que Lobo Antunes contou se encontra provado, e nenhum outro testemunho, entre centenas de milhares de pessoas envolvidas no conflito, aflora sequer situações como aquelas que mencionou. Por isso, é muito natural que quem possua diferente perspectiva presencial da experiência da guerra se sinta incomodado pelos ecos de uma memória inventada e reaja com veemência. Podem fazê-lo outros ex-militares, antigos guerrilheiros, colonos de torna-viagem, jornalistas, historiadores e cidadãos informados. No que me toca, posso dizer que jamais me constou que pudessem ter ocorrido, de forma sistemática, apelos institucionais declarados à prática da chacina ou da tortura pelos soldados portugueses, embora, evidentemente, estas tenham acontecido em alguns momentos. Por isso, não tenho dúvida alguma em afirmar que o que Lobo Antunes referiu como experiência corresponde, no máximo, a situações pontuais a partir das quais fez generalizações desajustadas.
Mas a reacção de uns quantos militares portugueses, com maiores ou menores responsabilidades na condução da Guerra em África, é completamente desproporcionada e absurda, digna apenas de quem desconhece a essência da diferença de perspectiva e do direito à livre expressão próprios das sociedades democráticas. Ameaçar dar «um par de murros em público» ou «ir ao focinho» do escritor – a quem chamam aliás «bandalho» e… «atrasado mental» –, é, para além da bravata recorrente nos códigos de conduta de muitas dessas pessoas, algo de inaceitável e que configura um apelo à violência e mesmo ao crime. Alguém deveria explicá-lo a estes cidadãos, que no passado se limitaram a acatar ordens e, em muitos casos, a pactuar, activamente ou pelo silêncio, com uma guerra injusta que insistem em conservar «limpa». O coronel Carlos Matos Gomes, que escreve romances sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz e não faz parte deste grupo, lembrou a propósito: «Há sempre uns patrioteiros que surgem assim no final destas coisas e penso que será também um sinónimo de senilidade. Penso que não faz sentido algum, nem da parte do Lobo Antunes, como ex-combatente, nem da parte destes militares». Juntando, com algum sentido crítico, que «na patetice estão bem uns para os outros». Realmente, a resposta de António Lobo Antunes, dizendo não ter «medo do confronto físico», e estar até em estado de prontidão para um eventual encontro cara a cara com os militares ressabiados, não ajuda muito e é desnecessária. A democracia não se funda na força dos punhos mas na energia das palavras que esclarecem. E isto aplica-se também a militares e a escritores.
Não começou ontem o hábito de usar o qualificativo de «pseudo-intelectual» como maneira de desconsiderar alguém. Mas o costume vulgarizou-se nos últimos tempos, associado à depreciação pública do próprio conceito de intelectual. Numa sociedade na qual o nível de escolarização média e superior cresceu consideravelmente, mas onde o saber técnico é continuamente privilegiado em relação à cultura de base humanística, detecta-se um conflito entre aquilo que resta do antigo prestígio dos intelectuais – combatentes com voz por um saber engagé – e a atitude de um grande número de pessoas que ainda recolhe um eco desse prestígio mas é incapaz de o compreender. Por este motivo, tem alastrado um enorme equívoco capaz de levar a que alguém que ainda transporte consigo algumas das marcas desse antigo intelectual se transforme facilmente num «pseudo-intelectual», num ser caprichoso, especialista em pomposas futilidades. Ou seja, por definição, quem esgrime publicamente por ideias, quem cria e se esforça por fazer ecoar aquilo que criou, passou a ser para muitas pessoas de cultura mediana e standard um «falso intelectual». Com manias de sê-lo sem a percepção de que o será apenas para si e para uns quantos próximos. Se tanto.
Sem entrar no debate, já com décadas, sobre o hipotético fim dos intelectuais ou a indesmentível reformulação do seu lugar social, interessa aqui rememorar algumas banalidades fundadoras da sua condição resvaladiça. O Dicionário Houaiss destrata a palavra reduzindo-a à condição precária do adjectivo, aplicando-a apenas àquele «que vive predominantemente do intelecto» – e se opõe, portanto, a quem viva da actividade manual – ou então ao que demonstra «gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes». Exclui pois, ou pelo menos ignora, o sentido histórico e substantivo, que contribuiu para reforçar o prestígio original do intelectual, associando-o à experiência da cidadania, atribuindo-lhe um lugar central na agitação das ideias ou na legitimação das causas, assegurando um papel fulcral na vida cultural, não como simples espaço de devaneio e divertimento mas como território para a afirmação de um dever e de uma necessidade, fundamentais para a existência e o progresso das sociedades complexas.
Deste ponto de vista, André Malraux terá sido um protótipo do intelectual em estado bruto: escritor, resistente, aventureiro, teórico da arte, iniciador das «maisons de la culture» e inventor do primeiro Ministério da Cultura. Sartre foi-o também, como modelo do intelectual empenhado, defendendo que o escritor não é neutro frente à realidade histórica e social: «O escritor empenhado sabe que palavra é acção, sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão fazendo por mudar». Para o filósofo existencialista, e durante algum tempo proto-marxista, no contexto da sociedade capitalista será aliás impossível manter o sonho da imparcialidade diante da condição humana. Na sua opinião, «a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele». O escritor pensa, fala, escreve então assumindo essa experiência como resultado de uma necessidade, de um impulso sem o qual não pode ser verdadeiramente escritor. E o intelectual é-o como expressão de um destino socialmente partilhado, indispensável para a mudança do mundo.
O uso indiscriminado da noção de «pseudo-intelectual» advém pois do recuo desta ideia. Não tanto de uma abordagem objectiva da relação justa ou injusta de alguém com uma criação projectada no social ou com o combate público por certas ideias. Nos últimos tempos, o abuso do qualificativo – e a blogosfera é particularmente rica neste particular – tem correspondido pois, quase sempre, mais a uma desvalorização do pensamento livre e livremente comunicado do que a uma crítica, que até poderia ser justa, aplicada directamente a quem, «pseudo», «falso», exponha ideias que são apenas um simulacro de reflexão, conhecimento, ousadia e convicção.
As medidas tomadas em França por Sarkozy para repatriar um grande número de ciganos, rapidamente aclamadas e consideradas até insuficientes pelo governo italiano de direita, colocam-nos perante um problema real, desde há muito à nossa frente mas que insistimos em empurrar para um lugar invisível. Para a maioria dos gadje, os não-ciganos para os roma, estes são figuras incómodas, arrumadas sempre em último lugar numa possível ordem da inclusão social. Por muitas razões, umas com fundamento histórico, outras circunstanciais, outras ainda resultado do mero preconceito de natureza racial: são nómadas numa sociedade estruturalmente sedentária, vivem em larga medida de uma economia paralela e à margem de qualquer planificação, resistem a aceitar formas de autoridade que não a familiar, não se conformam com direitos e deveres que lhes são impostos, têm muitas vezes atitudes problemáticas em relação aos direitos das mulheres, à civilidade do quotidiano, à propriedade, à educação e ao trabalho. São diferentes e não o são apenas por razões de natureza genética. Mas essa diferença paga-se e os roma têm-na pago de forma constante e muitíssimo pesada. Perseguidos, escorraçados, encarcerados, massacrados ou simplesmente ignorados, como cães, desde que há cerca de mil anos atravessaram o grande planalto iraniano e entraram na Europa.
No entanto estimam-se actualmente em perto de dez milhões apenas nos Estados da União Europeia – 40.000 em Portugal e cerca de vinte vezes mais em Espanha – e são cidadãos de pleno direito, pois código algum estipula que essa cidadania seja cerceada por motivos de natureza racial ou condicionada pela forma como cada um ocupa o seu tempo. Nasceram aqui, em solo europeu, como aqui nasceram também os seus pais, avós, bisavós, trisavós, até uma época para «eles» e para «nós» imemorial. Por isso não podem ser tratados como intrusos aos quais se recusa um visto e que se empurram para as margens da História, do desenvolvimento e mesmo da sobrevivência. Existem graves problemas de inclusão social dos ciganos, sem dúvida, e não vamos dizer que a culpa é toda e apenas dos gadje, pois muitos ciganos insistem ainda na auto-exclusão como forma de salvaguardar uma identidade que consideram ameaçada. Ou então por mera inércia. Mas a forma de resolver esses problemas será sempre pela via da comunicação intercultural, privilegiando a iniciativa de mediadores válidos e credíveis, que procurem encontrar soluções e não apenas resolver desagradáveis incómodos. Não é, jamais será, pela via de um paternalismo emanado de uma cultura sedentária que se crê superior e modelar. E muito menos pelo caminho da «guetização» repressiva, seja ela feita no recanto de um subúrbio, em bairros isolados ou em áreas remotas de países periféricos. Falar é, neste caso, quase sempre difícil. Leva o seu tempo e dá trabalho. Mas é o único percurso possível. O outro apenas conduz ao desentendimento e à opressão.
Não se tratou apenas uma intuição, suscitada por uma ou outra imagem de uma sensualidade menos óbvia e nitidamente mais despojada de Marilyn. Sempre me pareceu que o estereótipo foi exagerado e deformante – como todos os estereótipos –, além de francamente injusto. Indícios aqui e acolá. Em entrevistas que não eram de promoção, poses menos condicionadas pelo fotógrafo, informações a conta-gotas e transmitidas por portas travessas, vindas de pessoas que com ela um dia se cruzaram. Agora parece que se confirma: a menina Norma Jean não tinha apenas os diamantes como os seus melhores amigos. Gostava muito de ler e não correspondia bem ao protótipo da loura burra das piadas de subúrbio.
O movimento internacional contra a lapidação até à morte imposta em muitos Estados islâmicos para «crimes» de natureza ética e religiosa envolvendo principalmente mulheres tem vindo a aumentar e a mostrar-se cada vez mais activo. A campanha em curso contra a execução da iraniana Sakineh Ashtiani, condenada «por adultério» após confissão sob tortura, integra essa vaga, dando corpo a um combate humanitário particularmente dramático e urgente. A maior parte desta mobilização é feita, como seria de esperar, em países com regimes democráticos, pois só nestes a informação pode circular com razoável liberdade e só nestes também os cidadãos se podem bater por causas como esta sem se verem igualmente perseguidos. A movimentação tem agregado sempre pessoas de diferentes partidos, distintas convicções, cidadãos e cidadãs com ou sem bilhete de identidade política, com ou sem religião. Pessoas unidas apenas, e não é pouco, pela repulsa e a indignação contra uma punição injusta e monstruosa.
Em Portugal tem sido assim também. De assinalar, porém, o silêncio do jornal Avante!, que apenas surpreenderá quem ande um pouco distraído. Não se trata sequer de justificar a escusa em participar, ou o desinteresse por referir minimamente a situação, com o decrépito e repisado argumento de que existem causas mais próximas e mais urgentes. Ou de avançar, uma vez mais, o triste raciocínio de acordo com o qual erguer a voz em situações deste género só beneficia os mais inconfessáveis interesses americanos ou a vil propaganda sionista. Trata-se de ocultar, de evaporar, de riscar da agenda política uma causa como esta, mostrando um frouxo sentido de justiça e de solidariedade, espartilhado pelo sectarismo e pelo preconceito. Na prática – quem cala, consente –, enunciando antes um pacto com a injustiça. Nada que espante um grande número de cidadãos com memória das «causas selectivas» apropriadas ou ignoradas pelo PCP ao sabor da sua agenda imediata e da sua astigmática visão de um mundo mais justo e igualitário. Mas convém ir anotando estas situações.
[Mais informação e links relacionados com esta campanha no post «Não é possíveis calar».]