Pela terceira vez em apenas oito anos, o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento foi para alguém que nasceu em Cuba. Não vou fazer aqui de ingénuo e dizer que a atribuição do galardão não depende de uma agenda política. Claro que depende. Mas isso não será em si um mal, sobretudo quando as razões invocadas para as escolhas não se prendem com as convicções pessoais dos premiados mas sim com a sua luta pelo direito de todos a poderem proclamá-las, sejam elas quais forem. Como anuncia o site do Prémio, este recompensa, tão-somente, «personalidades excepcionais que lutam contra a intolerância, o fanatismo e a opressão».
Em 2002 foi Oswaldo Payá Sardiñas, fundador e organizador do Projecto Varela, destinado a reunir, baseado na própria constituição cubana, as assinaturas necessárias para sugerir ao governo algumas mudanças legislativas. Em 2005 foram as Damas de Blanco, o grupo de mulheres que luta diariamente pela libertação dos seus familiares presos por motivos estritamente políticos. Agora foi a vez de Guillermo Fariñas, o activista, psicólogo e jornalista independente que se tornou um dos mais conhecidos dissidentes cubanos, quando, com apenas 23 anos, iniciou greves de fome para protestar contra os excessos do sistema monopartidário. Aquilo que impressiona nestes casos é o facto de nenhuma das figuras premiadas se constituírem como opositores declarados do regime, nenhuma delas exigir o fim do «socialismo» cubano, limitando-se a pedir que ninguém seja punido por proclamar aquilo que pensa.
Tão simples quanto isto. E, no entanto, tão difícil de aceitar por um regime violento mas inseguro, que só pode ter medo do seu próprio povo para o manter assim amordaçado. Arruinando por isso os vestígios de prestígio e de simpatia – no passado recolhidos nos mais diversos quadrantes de opinião dispersos pelo planeta, e não associados apenas, como hoje, a grupos bem identificados de indefectíveis – vindos ainda daquele tempo em que representava um sinal de esperança na construção de uma ordem mais justa, mais solidária e mais democrática. Outro tempo.
Este é um post-catástrofe. Números divulgados apontam para que cerca de 20 por cento da população portuguesa sofra de uma doença «que se caracteriza por tristeza mais marcada ou prolongada, perda de interesse por actividades habitualmente sentidas como agradáveis e perda de energia ou cansaço fácil». Isto é, de depressão. Estes dados reportam-se a estimativas que por sua vez se fundam nos casos já diagnosticados. Na realidade, os números tenderão a subir quando puderem ser consideradas as situações de fronteira, que colocam quem com elas convive numa posição de grande vulnerabilidade, ou os casos não declarados, mascarados através de atitudes erráticas que resistem à melancolia recorrendo a uma «fuga para a frente». Mas trata-se aqui de um vigor à beira das lágrimas, perto de se transformar, ao primeiro pretexto, no seu contrário. Ou de testar os seus próprios limites.
Em Janeiro, o mais tardar em Fevereiro, quando o bolo-rei estiver comido e já não houver bacalhau para meter no microondas, quando os cintos começarem verdadeiramente a apertar, o panorama será agravado, concorrendo depressão e recessão na propagação da infelicidade. Desta nascerá o desespero e a prostração, mas também, acreditem, a ira. Diminuirá então a produtividade e crescerá o desprezo por uma ordem injusta, propagando o anseio de uma mudança radical. Cidadãos comuns transformar-se-ão em hooligans ou em maximalistas para poderem sobreviver. E não será apenas à noite, a coberto da escuridão. Se virem bem os diligentes responsáveis pelas agências de rating, bem como os agentes económicos e os dirigentes políticos que se lhes submetem sem resistência, despeito e desordem são factores pouco favoráveis ao crescimento económico e à paz social que supostamente o deverá sustentar, e dos quais tanto cuidam. Não é preciso ser-se adivinho ou profeta para perceber isto. Não sei se dentro deste caldo de cultura crescerá a semente da violência se o ovo da serpente, ou se ambos, mas nada de bom se anuncia. Pensem nisto por um minuto.
Quando tive a primeira gramática – se não me engano a de Pires de Castro, que já vinha do final dos anos trinta e herdei de um tio – fixei-me, como qualquer criança normal que prefere o misterioso e o inesperado, nas interjeições. Essas palavras-relâmpago, indeclináveis, que nunca mudam mas revelam sempre fortes estados emocionais e sensações súbitas. Que empurram sem nos deixarem pensar, que incentivam ou assustam dispensando frases que demoram demasiado tempo a pronunciar. Com algumas foram casos de amor à primeira vista: Apre! Irra! Arre! Ufa! Eia! Sus! Mesmo o Ai! e o Ui! pareciam bombons para quem achava ainda que a dor durava só um segundo. Existiam também aquelas que o padre confessor traduzia numa penitência infernal de dez salvé-rainhas, trinta pai-nossos e cinquenta avé-marias, como Porra! Merda! Chiça! e outras que os vocabulários impressos omitiam. A vida vivida foi trazendo mais, menos vulgares, imperativas, como Oxalá! Coragem! Força! Avante! Tchau! Uau! Já o assanhadiço Capitão Haddock ensinou-me as melhores: Raios! Coriscos! Ectoplasma! Equinoderme! Cercopiteco! Lembrei-me de todas elas por estes dias ao sentir na pele os pesados açoites do PECIII, ao ouvir as palavras dos economistas de uma nota só que pedem mais e mais sangue, ao ver os noticiários dos canais de televisão que se comprazem em deixar-nos mais deprimidos a cada minuto. Credo! Chega! Socorro! Rua! Ah! Aaaaaahhhhhh!
Bem pior do que o dualismo em filosofia, que apenas toca quem a ele mais ou menos racionalmente adere, é o dualismo em matéria de política, uma vez que afecta, ou pode vir a afectar, comunidades inteiras, países completos ou regiões tomadas de uma ponta até à outra. Traçar linhas rectas a meio do mapa da realidade é possível, ou pode ser útil, em situações extremas e num tempo curto – no momento da batalha, por exemplo, é muito difícil tentar convencer as partes de que o mundo é belo e não vale uma salva de morteiros –, mas jamais será, na maioria dos casos e no longo prazo, uma solução boa, justa ou inteligente.
Uma vez em Zolkiew
Clara Kramer era uma menina judia que vivia com a família na cidade polaca de Zolkiew, situada hoje no distrito ucraniano de Lviv, ou Lvov. Como milhões de polacos, ela e a família sentiram na pele o impacto do Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, do qual resultou, quase de imediato, a ocupação da cidade pelos soviéticos. No seu livro de memórias (*) recorda as humilhações impostas aos polacos e a rápida «sovietização» da região, logo acompanhada da prisão e da deportação daqueles considerados indesejáveis pelas novas autoridades. Desde as minorias étnicas e religiosas às pessoas com algum destaque social que não fossem declaradamente comunistas. Só que em 21 de Julho de 1942 os nazis conquistaram a cidade e desencadearam o massacre e a deportação sistemática dos milhares de judeus que tinham continuado, apesar de tudo, a habitar a cidade. Quase todos irão perecer mas a família de Clara conseguiu esconder-se num bunker que escavara à mão sob a casa do Senhor Beck, um alemão, declaradamente anti-semita, que afinal os irá proteger permitindo a sua sobrevivência. A partir do bunker seguirão o horror que se espalhou então pela cidade, lutando todos os dias para lhe escapar. Em 24 de Julho de 1944, a fuga das tropas de Hitler e a entrada na cidade dos soldados do Exército Vermelho, do qual existia antes uma tão má experiência, foi naquela situação olhada com imensa alegria e como uma libertação salvadora. Clara podia agora «olhar para as nuvens que flutuavam no céu azul, uma visão que julgara nunca mais voltar a ter». Afinal, existia um mal ainda maior, mais cruel e definitivo, do que aquele que, um dia, julgara ser o pior dos males.
Cabul now!
Podemos agora ensaiar uma comparação. A presença americana no Afeganistão contém em si um grande número de males para a esmagadora maioria da população do país. Não se trata apenas do uso regular da violência brutal sobre sectores da população ou da incompreensão das especificidades do país, traduzida, ela também, em atitudes típicas de um exército de ocupação. Trata-se igualmente do seu apoio a um regime intensamente corrupto, cujo objectivo mais claro é conservar o poder pelo poder, sem um programa de desenvolvimento real do país, desinteressado da vida real das populações, dos seus direitos mais elementares, e transigindo frequentemente com a repressão sistemática das pessoas comuns, sobretudo das mulheres. É natural, por isso, que exista descontentamento e, mais do que isso, que se desenvolva a ideia de mudança como um imperativo. Só que, neste preciso momento, a defesa pura e simples da retirada imediata das tropas americanas tem como corolário a automática tomada do poder pelos talibãs. Que já se encontram de novo, como é sabido, às portas das principais cidades. Será a opressão americana, associada ao poder discricionário, tantas vezes injusto, da Aliança do Norte, rigorosamente equivalente à tirania brutal e desapiedada do poder talibã? E será aceitável que o necessário fim da guerra tenha como moeda de troca a autoridade assassina dos papagueadores de versículos? Não é possível que para alguém com sentido da realidade e de justiça – e só por causa de um ódio visceral ao inimigo americano, ou só por causa dos direitos dos povos «a assumirem o seu próprio destino» – se torne aceitável o retorno imediato à mais profunda barbárie, a um poder instituído pela lei da chibata e da forca. Barak Obama não é o mullah Omar.
Nestes assuntos, manter uma visão estritamente dual, esquecendo que até na gestão do mal existe uma gradação, pode tornar-se uma forma de cegueira e de cumplicidade com o crime. Aliás, aplicando esta perspectiva a momentos decisivos da história contemporânea, episódios indispensáveis para a vida dos povos e o triunfo sobre a opressão teriam sido impossíveis. Como aconteceu, por exemplo, com o desembarque dos Aliados na Normandia e o bombardeamento sistemático das cidades alemãs controladas ainda pela Wehrmacht e pelos destacamentos das SS. Para não ir mais longe.
(*) Clara Kramer (2010). Clara. A menina que sobreviveu ao Holocausto. Alfragide: Asa. Trad. de Elsa T. S. Vieira. 336 págs.
Segundo uma notícia que saiu hoje no Público, em breve as agências funerárias poderão gerir «actividades conexas» àquelas que tradicionalmente exerciam, tais como a «gestão, exploração e conservação dos cemitérios». Uma actividade que até agora era entendida como um serviço eminentemente público, dirigida em regra pela administração local, passa a ter «permissão de gestão e de exploração privada». Sabendo nós que – tal como acontece com as casas de pasto, os bares de alterne e as farmácias – este é um ramo no qual não existe quebra de procura, e onde a política de preços é bastante livre e nada meiga, é fácil calcular o conjunto de interesses que a sua entrega à iniciativa privada irá despertar. Um passo mais no recuo do Estado social nas suas competências, mas agora numa original dimensão post-mortem. Podemos desde já antever planos de crédito que unirão gerações inteiras de profissionais da morte e de simples cidadãos endividados até à quinta geração de descendentes. Sempre com a negra possibilidade do despejo a pairar-lhes sobre a sepultura. Sem descanso até à eternidade.
O drama dos 33 trabalhadores da mina de ouro e cobre de San José, no deserto de Atacama, não pode esgotar-se no seu final feliz. Porque se encontra ligado às sempre difíceis condições de trabalho de uma das mais antigas ocupações operárias. Uma profissão cravada de enormes riscos, tremendamente insalubre, com duras cadências e geralmente muito mal paga, mas por isso mesmo marcada por um companheirismo profundo entre a generalidade dos que nela passam a maior parte da vida e dela fazem o seu ganha-pão. Aliás, o movimento operário sempre teve entre os mineiros uma das suas alas mais combativas, radicais e solidárias e não foi por acaso que uma das mais tocantes imagens que ontem passaram em algumas televisões foi a de dois mineiros australianos, homens maduros que já viveram um drama análogo ao dos chilenos e, durante um directo, foram incapazes de conter os soluços de comoção diante das experiências vividas pelos seus camaradas do outro lado do Pacífico.
Vale a pena, por isso, lembrar neste momento de alegria a situação catastrófica dos mineiros chineses, com índices de sinistralidade e de mortalidade – associados a condições de trabalho e salariais miseráveis – verdadeiramente inconcebíveis. Estudos recentes apontam para cerca de 1.000 (mil, não é engano) mortos por ano, correspondendo a 80% do número de fatalidades ocorridas em todo o mundo quando a produção mineira da China é apenas de 35% da global. Em 2006, e de acordo com os números oficiais, o número de mortos foi mesmo de 7.500. Um acidente praticamente em cada 7 dias, a maior parte sem referência nos meios de comunicação e nenhum deles com um décimo da atenção mediática dada ao acidente de San José. Será de recordar estes dados aos responsáveis do partido político português que calam os crimes diários praticados na China contra os trabalhadores mas se preocupam tanto com a atribuição do Nobel da Paz ao activista dos direitos humanos Liu Xiaobo. É que uma sua posição de denúncia, a ser feita na devida altura e sem rodeios, seria por certo um gesto internacionalista capaz de «contribuir para a afirmação dos valores da paz, da solidariedade e da amizade entre os povos». Passe a expressão que de há muito trataram de tornar inócua.
Outros companheiros desta guerra de trincheiras por uma esquerda democrática e de causas coerente com a defesa essencial dos direitos dos trabalhadores e a das liberdades individuais, já falaram bastante nos seus blogues dos silêncios e das cumplicidades da direcção do PCP diante daquilo que está a acontecer, aos olhos do mundo inteiro, nos territórios controlados «com punhos de aço» – como tanto gostam de dizer os «queridos camaradas» dirigentes dos «partidos-irmãos» – pelas ditaduras chinesa e norte-coreana. Para memória futura, aqui fica mais um modestíssimo contributo da referida agremiação para uma espécie de folhetim universal da infâmia.
Na minha alma não tenho um só cabelo branco,
nem a doçura dos velhos.
Diante do meu verbo vigoroso, o mundo treme
aqui vou eu – soberbo
com os meus vinte e dois anos.
| do prólogo de A Nuvem de Calças (1915)
Acaba de me chegar La Vie en Jeu, a primeira tradução do sueco da biografia do poeta, revolucionário e provocador Vladimir Maïakovski (1893-1930). O autor, Bengt Janfeldt, desenha um retrato revisto e bastante aumentado para o qual se serviu dos testemunhos inéditos de pessoas muito próximas, de arquivos privados e principalmente de documentos recentemente disponibilizados que foram propriedade exclusiva dos serviços secretos soviéticos e britânicos. Seiscentas páginas de um trajecto voraz e rigorosamente vigiado. Uma edição da Albin Michel que me servirá de companhia durante os próximos dias. Darei notícias.
No mundo antigo, organizado à volta das relações de parentesco e dos laços dinásticos, as afinidades electivas, as amizades, eram excepcionais, aparecendo muitas vezes, justamente por isso, como subversivas. O cristianismo tentará eclipsar este tipo de ligação ao colocar como modelo a relação individual com Deus. Por isso também, as comunidades monásticas afastaram a amizade das regras do seu quotidiano: as ligações privadas representavam uma ameaça para a coesão do grupo e para a fé. Os humanistas, porém, retomaram-nas, construindo a primeira rede pan-europeia assente na fidelidade pessoal e numa aproximação de valores e de sensibilidades, que mantinham recorrendo principalmente à correspondência privada. Já a Revolução Francesa emancipou o valor da aproximação pessoal ao colocar a fraternidade como uma das suas divisas nucleares. A cultura da amizade de grupo chegaria décadas mais tarde, associada em parte à extensão do sistema escolar e ao serviço militar obrigatório e universal, criadores de espaços e de tempos de aproximação. Terá atingido o seu zénite nos anos sessenta, permanecendo como um vestígio ainda atraente por volta de 1989, quando arranca a série televisiva Seinfeld. A coesão do grupo dependia aí, em primeiro lugar, das cumplicidades assentes no relacionamento diário, directo e pessoal, entre aqueles que o compunham.
Não sei se existe ou não uma linha de continuidade, nesta narrativa flash da amizade, com o universo dos «amigos» que todos os dias fazemos entre os mais de 520 milhões de habitantes – a larga maioria composta por mulheres, vá lá o Diabo explicar o porquê – que povoam o mundo-rede do Facebook. Parece que a média por pessoa é de 130 afectuosos companheiros e amorosas parceiras, o que só por si nos remete para esse conceito de «salto qualitativo» utilizado nos catecismos do materialismo dialéctico para significar uma alteração efectiva do estado das coisas. Significará esta multiplicação de «amigos» o futuro da amizade? Por mim, admito que a maioria dos quase 500 que tenho me aparece como um vulto. Simpático muitas vezes, sobretudo quando salta da penumbra e lhe oiço a voz, mas um vulto. Isto se excluir a quantidade de voyeurs e exibicionistas que passa no horizonte, muitos deles mais empenhados em multiplicar audiências do que em agregar empatias. Mas há mesmo, por ali, pessoas que não conhecemos em pele e osso e de quem, até prova em contrário determinada pelo feitio, o penteado ou o mau hálito, gostamos ou acreditamos que gostamos. Com elas, e com algumas das outras, vamos cruzando gostos e cumplicidades, defendendo causas de outro modo perdidas, trocando informações úteis e frases calorosas que só ali nos saem do tinteiro. Será isto «amizade»? Ou apenas, nesta sociedade atomizada, com as referências vindo e partindo em perpétuo movimento, «uma tentativa de encontrar um sentimento de pertença a um colectivo», como escreve a socióloga Stéphane Hugon? Assistimos ali à construção de relações de proximidade que partem do colectivo para o indivíduo e não o contrário? Pode ser esta a chave para entender a mudança? Se for assim, não será mau de todo. Basta adaptarmo-nos. E ir aproveitando os restos do mundo arcaico feito de afectos conquistados com a epiderme. Afinal Jerry Seinfeld, George Costanza, Elaine Benes e Cosmo Kramer não se conheceram no Facebook.
[Vem um bom dossier sobre este tema no número de Outubro da revista francesa Books.]
São escassas mas vão chegando. Outra boa notícia para a luta pela defesa dos direitos humanos na China: depois da concessão do Prémio Sakharov de 2008 a Hu Jia, foi agora a vez de o Prémio Nobel da Paz de 2010 ser atribuído ao activista e dissidente Liu Xiaobo. Liu, um dos principais dirigentes da luta estudantil que em 1989 conduziu aos acontecimentos de Tienanmen, encontra-se a cumprir uma pena de onze anos de prisão por ter sido um dos autores da Carta 08, um manifesto a favor da liberdade de expressão e de eleições multipartidárias. Para os impenitentes autocratas de Pequim a entrega do prémio a Xiaobo é «uma obscenidade». Venham mais.
Comecei a ler Mario Vargas Llosa sensivelmente pela mesma época em que comecei a ler Gabriel Garcia Márquez. No entanto, os nossos primeiros encontros não foram fáceis. A Cidade e os Cães e a Conversa na Catedral, com os quais me estreei, foram de uma leitura bem mais sofrida do que a do agora ultra-canónico Cem Anos de Solidão, de Márquez. O primeiro dos romances, para ser muito sincero, por causa de um homoerotismo latente que impressionava qualquer rapaz provinciano cheio de preconceitos como eu era, o segundo pelo grau de elaboração formal para a qual não estava preparado. Llosa e Márquez eram amigos nessa época e a vida e a ética política foram-nos depois distanciando, mas para mim a separação foi sendo construída, a partir dali, de uma outra forma. Enquanto os livros do peruano continuaram a surpreender-me pela versatilidade, os do colombiano passaram a saber-me sempre mais ou menos ao mesmo. Continuaram lado a lado nas estantes cá de casa – ainda lá estão, estou a vê-los daqui – mas fui-os colocando mentalmente em dois mundos cada vez mais opostos.
Devo dizer que da actividade política de Llosa como reformista «do centro» nunca me senti propriamente próximo, ainda que na longa noite da América Latina dos ditadores e das ditaduras esses qualificativos tenham adquirido sempre um sentido razoavelmente diverso daquele que, agora como na altura, lhes atribuímos aqui na Europa. Mas os seus ensaios e artigos de opinião desde há muito que o redimiram desses ímpetos liberais que podem sempre provocar, é também o meu caso, um certa alergia a muitos dos seus mais indefectíveis leitores e admiradores. Penso agora, convictamente, que parte substancial da grandeza de Vargas Llosa se encontra igualmente – a par do que vai compondo com a sua caixa de ferramentas de romancista – no constante trabalho no campo da não-ficção, indiciador de uma capacidade notável e permanente para dialogar criticamente com o mundo. Combatendo na vertical, e não poucas vezes com custos pessoais, pela liberdade do indivíduo e da palavra. Contra Pinochet ou Castro, Bush ou Bin Laden.
A Academia sueca atribuiu-lhe agora o Nobel da Literatura de 2010. Foi dito esta manhã que «pela sua cartografia das estruturas do poder e as suas imagens mordazes sobre a resistência, a revolta e a derrota individual». Entendo a declaração como um elogio associado a um Mario Vargas Llosa integral. Não apenas o grande romancista, mas também o defensor da fala livre e dos direitos humanos. Por isso, e pela primeira vez em bastantes anos, me senti feliz quando soube quem ganhara o prémio. Um prémio político? Espero bem que sim. Não só, mas também.
Disponível online uma Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico. Perante o silenciamento de opiniões divergentes e o tom monocórdico, nos órgãos de comunicação social, dos comentários a propósito do PEC III, da sua conjuntura e da sua «inevitabilidade», torna-se imperioso protestar contra uma censura praticada por omissão que apenas aceita, sem direito ao contraditório, pontos de vista distribuídos «entre os que concordam e os que concordam». Leia, assine e divulgue.
Estava em Lisboa e anunciava as suas habilidades na Illustração Portugueza de 18 de Junho de 1910. Previu a queda do Império mas escapou-lhe o mais fácil.
Em Dezembro de 2009 deixei aqui um post semi-premonitório (embora já fosse muito fácil «adivinhar» aquilo que viria a acontecer) a propósito do Centenário da República e da grande feira – esse lugar onde tudo se vende e tudo se mostra, da boa fruta à banha-da-cobra – que iria ser montada à sua volta. Destaco um passo daquilo que então escrevi:
«Seria (…) um favor à memória da República e dos republicanos, e também uma dádiva à experiência actual da cidadania, que, mais do que endeusar ou diabolizar nomes, destacar ou amaldiçoar decretos, distinguir ou esconjurar determinados momentos, se procurasse compreender o essencial e não apenas o acessório e o inócuo. (…) Só desta forma os ideais republicanos poderão retroceder por instantes à vida, e deixarão de inscrever-se apenas num tempo remoto, fantasmagórico, que apenas interessará verdadeiramente os historiadores e o seu público. Porque não aproveitar para re-discutir o regime, o laicismo, a religião, a família, a escola, o ensino, as tradições, a opinião pública, a intervenção das mulheres, e outros temas que, cem anos depois, permanecem ainda nas nossas expectativas e preocupações?»
Sou historiador e cidadão singular, empenhado, em ambas e numa só pele, no destino comum. Interessa-me, portanto, olhar para os dois lados da moeda. Mas se o conhecimento da História da República e do republicanismo saiu globalmente reforçado das manobras do ano – como em tudo, com trabalhos excelentes e medíocres, interessantes e monótonos, inovadores e repetitivos, razoavelmente isentos (por vezes até de mais) e assumidamente prosélitos (o que não é necessariamente mau) – o debate pela cidadania piorou, uma vez que a oportunidade de comemorar confrontando o presente e projectando futuros praticamente se perdeu. Muitas vezes em favor do cerimonial, do auto-elogio e de intervenções deslocadas do tempo em que vivemos e das falas que partilhamos. E tão precisados estávamos, tão precisados nos mantemos, de um debate profundo, substancial e ousado, que questione tendências e não se limite a ensaiar receitas. Que confronte regime e sistema e não se limite a olhar para eles com um encolher de ombros desiludido, nostálgico e conformista. Teria sido uma boa oportunidade para lançá-lo com algum impacto.
A Babelia de ontem transporta consigo uma reportagem («El refugio de los lectores») sobre as transformações do mundo editorial espanhol em tempo de crise. Uma das tendências que se começa a destacar – a par da inevitável quebra nas vendas – é o regresso em força do roman noir. É verdade que este se encontra associado a edições baratas, em paperback, muitas vezes com direitos de autor já caducados e por isso mais acessíveis a editores e a leitores. Mas temo que possa também ser procurado como fonte de inspiração. Que, uma vez mais, a realidade se antecipe à ficção ou que esta lhe sirva de alimento. Que o efeito se propague e avance para oeste, entrando-nos em casa.