O espelho mágico

Facebook for two

Tal como aconteceu com milhões de pessoas, só em 2010 transformei realmente em hábito a experiência do Facebook. Tendo servido de batedor na utilização da Internet fora dos centros de computação, usando-a diariamente a partir de 1994, passei por diversas fases, tanto na rotina dos processos técnicos quanto nas vias e expectativas da comunicação partilhada que é a sua essência funcional. Primeiro foi o pequeno grupo de pessoas conhecidas, saído ainda das antigas redes universitárias. Depois um colectivo alargado, com uma dimensão territorialmente ampliada mas com um volume de participantes e de tráfego que assegurava um estilo próprio do grupo reservado. O grande salto veio de seguida, no período das revistas electrónicas – geri uma entre 1996 e 2002 –, com a tentativa de usar uma ferramenta barata para chegar a um grupo ampliado mas ainda identificável. A quarta etapa arrancou por volta de 2004, com a generalização do acesso à rede, a impessoalização de uma grande parte dos contactos e depois o crescimento da opinião partilhada introduzido pelos blogues. Ao longo das quatro etapas resisti sempre a participar nos modos de comunicação em tempo real, como chatrooms, o IRC, o MS Messenger ou, bem mais próximo, o Hi5. Para ser sincero, pareceram-me sempre espaços de conversa que substituíam de maneira bastante artificial a velha e calorosa prosa de café. Com a agravante, dada a ausência de rostos, de desresponsabilizarem as pessoas pelo que escreviam/diziam, dentro de um clima um tanto insalubre, pouco compatível com a reflexão, a reserva, o prazer e a disponibilidade de cada um.

O apelo do Facebook foi diferente. Apesar do carácter egotista e publicitário dos processos usados e de muitos dos conteúdos, apesar do apelo à atitude compulsiva que bastantes vezes projecta, apesar da capacidade para arremessar para o domínio do público aquilo que cada um até agora ciosamente guardava no campo do privado – «Facebook is watching you», avisava há tempos um título da Manière de Voir –, a diversidade de processos que combina tem permitido a construção de pequenas comunidades. Capazes, sobretudo antes de se chegar ao ponto em que o número de «amigos» ultrapassa o razoável transmutando o grupo em multidão, de partilhar experiências, prazeres, informações, ideias e causas. Philippe Rivière chamava-lhe há dias «espelho mágico», mas esta magia contém os mesmos dois flancos magnéticos de todas as magias: a manipulação e o encantamento. No entanto, não vejo no segundo nada de necessariamente negativo, desde que quem se deixe encantar o faça conscientemente e no uso da sua liberdade. Claro que já é mais perigoso e movediço esse lado obscuro dos «amigos» mirones que não escrevem mas registam o que escrevemos, que usam a plataforma como mera tribuna pessoal ou partidária, que ignoram a dimensão lúdica deste instrumento recuando diante da menor frase mais livre ou intimista. Mas nada disto é novo e onde há muita gente a complexidade humana sempre exponencia tanto as suas qualidades quanto os seus defeitos, aproximando, separando e reagrupando. No que me diz respeito, quando o registo informativo e questionador, divertido e cúmplice, deixar de ser possível, trocarei de arquipélago. Até lá, e enquanto o hábito não tolher a liberdade, acredito que me mantenho num caminho transitável. Com alguns recantos acolhedores.

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    Vulcanologia

    Uma das definições que o Houaiss oferece de anestésico toma-o como um produto que «diminui ou elimina a sensibilidade». Ou, de uma forma mais abrangente e difusa, como algo que inevitavelmente «provoca apatia, desinteresse, impassibilidade». Por isso, neste tempo de arriscados declives, piso deslizante e precipícios à vista, se revela particularmente perigoso o forte gás anestésico que emana da quadra das festas e dos bolos. Ao som de caixas de música, flautas de Pã e toques de telemóvel, proclama-se uma suspensão fictícia do tempo e coloca-se a vida colectiva em modo de pausa e de aparente paz. Mas o vulcão não está adormecido. Irá explodir.

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      Anarquia a 25/12

      O Natal de Ronald

      O Natal itinerante que escolhi este ano guardava-me duas boas surpresas. Surpresas mesmo, ocasiões raras, associadas a gestos que julgava perdidos para sempre dentro deste reduto perpendicular de 92.090 Km2. A primeira veio com o bolo-rei. Pela primeira vez em bastantes anos pude comer um com fava e brinde embrulhado em papel vegetal, como os da infância. Gozado com um deleite asininamente cavaquista, associado na sua intensidade à certeza de passar por cima de uma daquelas regras sanitaristas e lerdas emanadas da União Europeia. Mas a segunda surpresa foi ainda maior e melhor. Juro que, numa pastelaria-padaria do interior, frequentada por famílias aparentemente honestas e sem pinta de simpatia pelo Diabo, pude, na companhia de dezenas de prevaricadores, fumar um cigarro ao balcão, lançando baforadas intensas sobre os receptáculos nos quais repousavam pacíficos pães de trigo e de passas, ordeiras broas de milho, serenos cacetes integrais e, mesmo por baixo do meu nariz, um esplêndido pão-de-ló. Claro que não declaro onde aconteceu isto: não sou denunciante nem quero ficar na consciência com a responsabilidade de prejudicar algum chefe de família, funcionário da ASAE, na avaliação de competências relativa ao ano civil de 2010.

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        Natal judaico

        Passo estes dias frios na Beira Baixa e de manhã subi até Belmonte. Não ia há muito a esta vila de um grande interior abandonado à estagnação e ao isolamento. Parece agora um lugar que renasce devagar, apoiado em parte no interesse por uma tradição criptojudaica longamente ignorada ou omitida pela cultura cristã-velha. Afinal o antisemitismo tem por esta aba da Europa uma presença rígida e persistente que tardou em diluir-se na aparente normalidade multiétnica que agora partilhamos. Fiz a via sacra das ruas estreitas e graníticas, um tanto escorregadias também, da antiga judiaria. E estive no Museu Judaico, um dos melhores, mais bem concebidos e mais amorosamente conservados dos que conheço em Portugal. Nele revi pedaços de vidas escamoteadas, submersas gerações após gerações, roçando o fundo mais fundo do esquecimento, mas capazes ainda de nos acenarem um pouco. No fim da visita agradeci ao rapaz de kippah na cabeça o cuidado com a conservação daquela memória única. Sendo 24 de Dezembro, tive o pudor de não mencionar a um judeu as boas festas cristãs. Mas ele não se coibiu nada de me desejar um Bom Natal.

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          Homo Seditiosus

          Em Roma sê romano
          Em Roma sê romano.

          Em «La rivoluzione è finita. Inizia l’età della rivolta», publicado no La Stampa do passado dia 16, o italiano Marco Belpoliti, escritor, crítico literário e professor de sociologia da literatura, confronta-nos com uma situação que não podemos ignorar. De Clichy-sous-Bois, nos arredores de Paris, em 2005, aos motins estudantis de Londres e de Roma em 2010, passando por Atenas em 2008, a revolta pura e dura parece ter ocupado o antigo lugar da revolução. Sem um programa ou objectivos políticos claros, sem um ideal a perseguir desenhado no horizonte, ela não se projecta no futuro mas antes no imediato.

          A Ocidente como a Leste, em Nova Iorque como em Xangai, o estado de revolta «suspende o tempo histórico e cria o instantâneo», assegurando a aparente vitória do presente sobre o futuro. Este vive do instante e é no instante que se constrói. Belpoliti recorre a uma evocação de Walter Benjamin a propósito da forma como durante a Comuna de Paris os communards disparavam furiosamente sobre os relógios. Queriam que o tempo parasse ali mesmo, sem remissão, numa vitória efémera que durasse para sempre e pusesse termos às cadências opressivas da vida e do trabalho. Foi assim também muito tempo antes, durante os grandes levantamentos anti-senhoriais do século XIV, ou enquanto durou a Guerra dos Camponeses na Alemanha do século XVI. Prestes a serem massacrados na batalha de Mauthausen, os sublevados recusaram-se a aceitar a superioridade militar dos poderosos, pois esperavam que Cristo em pessoa entrasse no terreno de luta para suspender os factos e consagrar a vitória definitiva dos crentes e dos espoliados.

          Nada disto tem já a ver com a «guerra civil», conduzida por gangs de delinquentes ou grupos de extrema-direita, que segundo Hans Magnus Enzensberger pelos finais dos anos oitenta pareciam preparar-se para tomar para si as ruas dos «bairros problemáticos» das grandes metrópoles do mundo industrializado. Esta é uma outra forma de violência, que parece antes uma resposta estrutural à ausência de perspectivas de uma mudança revolucionária. Combate-se nas ruas como Robin Wood e os seus se batiam nos arrabaldes de Nottingham, como um Zorro ficcional lutava em nome dos fracos e dos oprimidos: procurando mitigar a injustiça e exercendo por vezes o direito de vendetta. Sigo ainda Belpoliti: «Devemos preparar-nos para viver uma época diferente daquela que marcou a vida dos nossos pais e dos nossos avós, uma época que não possui um sentido único, ou pelo menos um destino preestabelecido.» Neste tempo, o homo seditiosus, o homem sublevado, apresenta-se como o campeão de uma humanidade que desce à rua. Hoje, mas igualmente amanhã, e depois de amanhã, para realizar «uma arte sem obra» determinada pelo direito à resistência. Uma perspectiva sobre a qual vale a pena ir meditando nos intervalos da acção.

            Atualidade, Olhares, Opinião

            Real social (e se de repente) (ok, um bocado nostálgico)

            [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=V0UcQDUR-fU[/youtube]

            All the leaves are brown / and the sky is grey / I’ve been for a walk / on a winter’s day
            // I’d be safe and warm / if I was in L.A / California Dreamin’ / on such a winter’s day

            Então foi assim. Seguia de manhã a via-sacra das compras da época, absorto em pensamentos um tanto doentios que metiam os efeitos da crise e a consciência de estar a ser sugado por uma espiral muito negra. Provavelmente nem disfarçava a tristeza. Uns metros adiante, uma mulher que nunca tinha visto revolvia estantes de CD à procura de qualquer coisa. Cara fechada, metida na sua vida, talvez com pensamentos não menos sombrios. De repente, a instalação sonora da loja, activada por um qualquer fantasma revivalista e com problemas de visão, começou a bradar «California Dreamin’», o hino sixtie de esperança e evasão. Então eu e a desconhecida como que acordámos. Cada um de nós reparou que o outro tinha despertado. Por momentos um vento antigo girou pelo ar. Olhámo-nos sem uma palavra, como cúmplices. Sorrimos levemente e fomos às nossas queridas vidas de cinquentões. Durou tudo 2’ 41’’. Ou talvez menos.

              Apontamentos, Devaneios, Memória

              Aerograma

              Natal 2010

              Nunca fui um adorador do Natal, com o seu burrinho, a sua vaquinha, e a restante parafernália pagã cercando o pequeno nazareno. Não por ter vivido muito cedo um qualquer momento de epifânica suspeição em relação a esse evento capital – bem mais forte por certo, para uma criança, do que o aflitivo instante do martírio – da religião na qual fui educado. Não por me agoniar «desde que me lembro» a dissipação, o luxo e a hipocrisia que geralmente rodeiam os espaços iluminados que lhe servem de trilho e de cenário. Afinal até houve um tempo no qual acreditei sem reservas na generosidade do Pai Natal e se me deixassem teria passado noites ao frio, emboscado num ermo escuro, para o ver passar de trenó na companhia da simpática rena Rudolfo. E atalhar logo com a minha encomenda. O desgosto não veio por aí, não. Chegou depois, pela percepção forte, sempre renovada, vivida como um calafrio, de uma ficção de paz, de compaixão o de igualdade que só consigo materializar quando me levanto da mesa da consoada, deixo o peru no sossego da travessa, e vou lá fora, em silêncio, sondar os rumos e os azimutes.

                Apontamentos, Devaneios, Etc.

                Rir para não pirar em Pyongyang

                Pyongyang

                Não sei se já todos vocês passaram por uma situação análoga, mas aconteceu-me uma meia dúzia de vezes. Viver uns quantos dias, por opção mal avisada, numa cidade desinteressante, sem nada de especial para fazer, sem conhecer ninguém, sem lugares bonitos para visitar, mas, por não dispor de transporte próprio, a contar pacientemente os dias que faltam para sair dali para fora. Nessas alturas, se não queremos morrer de tédio ou que nos aconteça alguma coisa má ao cérebro, o melhor que há a fazer, para além de dormir muito, de ler todos os livros que tivermos conseguido levar e de tomar notas para o romance que vinte anos antes planeámos escrever, é procurar fazer render aquilo que se encontra à nossa mão. Esquadrinhar os recantos das praças, reparar em cada centímetro dos corredores do museu local, ponderar a dimensão dos edifícios e das estátuas, tentar perceber como comunicam os naturais, e principalmente observar o que se passa no hotel que nos coube como se de uma inesgotável aventura se tratasse.

                Pois foi precisamente isto que fez Guy Delisle, o canadiano autor de livros de banda desenhada que em 2003 publicou Pyongyang. A Journey in North Korea, relato visual de uma sua estadia de trabalho, como supervisor de um estudo asiático de cinema de animação, na cidade capital do império norte-coreano da dinastia Kim. Só que, neste caso, à situação do viajante aborrecido de morte associou-se a consciência de um universo regulado pela vigilância paranóica e pela repressão. A sua forma de sobreviver no mundo sombrio ao qual se viu confinado, e que procurou descrever neste livro, colocando-o ao dispor da compreensão do leitor, foi então olhá-lo de uma forma aparentemente ingénua, fazendo com que o seu modo de observação fosse filtrado pelo relato de episódios nos quais o absurdo e a comicidade insinuam um devastador efeito crítico. Insistindo na arma do humor, que mesmo na sociedade mais repressiva do mundo serve, como em toda a parte, de factor de resistência. Segundo Delisle, uma piada com bastante êxito em Pyongyang é aquela que procura explicar por que motivo os velhos autocarros que circulam na capital, todos eles montados na distante década de 1950 por operários dos arredores de Budapeste, têm invariavelmente entre uma e cinco estrelas de cinco pontas pintadas na carroçaria: é uma por cada 5000 quilómetros percorridos sem acidentes.

                Tal como outros livros de Guy Delisle, este está à venda nas lojas da rede FNAC.

                  Atualidade, Democracia, Olhares

                  Para dar o exemplo

                  WikiLeaks

                  Já todas as perspectivas concebíveis foram enunciadas a propósito do caso WikiLeaks e dos 250.000 documentos secretos disponibilizados pela organização ao El País, ao Le Monde, à Spiegel, ao Guardian e ao New York Times – curiosamente, o que não tem sido sublinhado, todos eles situados de alguma forma à esquerda do espectro político no panorama editorial dos respectivos países –, que os tratam e vão revelando ao mundo a gonta-gotas, de acordo com critérios e objectivos que só as suas direcções conhecerão. Um dos últimos pontos de vista, e também um dos mais divertidos, é o de Fidel Castro, para quem o episódio «pôs os Estados Unidos de joelhos» mas serve também os interesses de um punhado de meios de comunicação «pró-fascistas» que recorrem a ele «para atacar os países mais revolucionários». Entretanto, as primeiras abordagens foram naturalmente bastante simples e epidérmicas, e admito que um tanto distraidamente partilhei uma delas. Não a que antecipou um certo êxtase em relação à orgia de informação que se anunciava, mas antes aquela que nos primeiros dados avançados não via nada de mais, de particularmente novo ou de excitante. É verdade que senti, e continuo a sentir, alguma desconfiança em relação ao modo demasiado simples como tudo aconteceu e em relação aos interesses das partes envolvidas (incluindo nestas o trajecto e as motivações de Assange), mas admito que talvez tenha reparado mais no fumo do carburador do que nas condições de funcionamento do motor. Regresso pois ao assunto.

                  A maioria dos artigos de jornal e dos posts surgidos em blogues distribui-se simplisticamente por dois grandes campos. O daqueles que vêm no vivaço trintão australiano um novo Che, talvez menos fisicamente atraente mas não menos bravo, e entendem que tudo deve ser dito a toda a gente. Embora alguns dos que defendem este ponto de vista ressalvem a existência de Estados com governantes gloriosamente antiamericanos onde o controlo da informação possa ser legítimo. E, do outro lado, o campo dos que entendem que os governos têm todo o direito de escolher o que é informação sensível e de a furtar aos olhares públicos, punindo quem se arrogue a dar com a língua nos dentes. Contra ambos, vejo antes o que alguns comentaristas avisados também já viram: uma coisa é o direito ao secretismo, que é uma prerrogativa de todos os detentores de alguma forma de poder e que nas questões de política internacional pode em muitos casos tornar-se inevitável, mas outra é o dever de os órgãos de comunicação livre darem a conhecer aos cidadãos as informações que lhes dizem respeito e às quais têm acesso. Por outras palavras: os diplomatas e os espiões devem ter cuidado na transmissão da informação sensível com a qual trabalham, mas se o não tiverem ninguém terá de fazer o seu trabalho por eles. Salvo, naturalmente, em situações extremas, quando a circulação de informação crucial pode colocar vidas em jogo. Não é este no entanto, visivelmente, o caso da larga maioria dos telegramas já conhecidos.

                  O problema central, aquele que mais nos deve inquietar, bate justamente nesta tecla. Num artigo do último número da Wired escreve-se que «uma imprensa autenticamente livre, liberta de toda a consideração nacionalista, constitui manifestamente um problema aterrorizador, tanto para os governos eleitos quanto para os tiranos.» Uns e outros, distanciados das sociedades que governam e cada vez mais habituados a mandar por decreto, pouco ou nada atendendo ao valor da opinião pública, dão de barato que a boa governação e a boa diplomacia se fazem nas antecâmaras e nos corredores, não na praça pública, destinada apenas, idealmente, ao circo das grandes consagrações. E por isso tanto os incomoda, como incomoda os seus escribas e porta-vozes, que chegue «à cozinha» uma conversa que deveria ter sido mantida na discrição dos gabinetes. Claro que a WikiLeaks não é sinónimo de transparência, nem o seu rosto mais conhecido é propriamente um mártir da liberdade e da democracia radical, mas o que nos deve inquietar não são os resultados e as ondas de choque das suas iniciativas, para as quais quem tem nas mãos o poder dispõe sempre de boas almofadas. O que preocupa é que exista quem queira silenciá-las. Para que os vulgares cidadãos não se arroguem a meter o nariz onde não são chamados. Para que estes percebam que a liberdade de expressão tem limites, fronteiras determinadas por quem pode fazê-lo que «não devem ser ultrapassadas». E para dar o exemplo.

                    Atualidade, Cibercultura, Opinião

                    Al zukkar

                    sugar

                    Desenganem-se as aves de rapina que insinuam existir um crescente desinteresse por parte dos governantes da nação em relação à felicidade dos seus governados. Apoiado no parecer douto da Associação Portuguesa de Distribuidores, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas acaba de nos assegurar que não irá faltar açúcar nos supermercados. Não posso deixar de me alegrar com a notícia. Afinal a metafísica de muitas famílias depende dessa «areia grossa», sharkara em sânscrito, que os árabes nos fizeram saborear como al zukkar e hoje usamos para celebrar o nascimento de Cristo e fazer disparar a glicemia. Como proclamava Álvaro de Campos, «as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.»

                      Atualidade, Devaneios

                      O prémio

                      Capitão Haddock

                      Nos meses longos e intensos que se seguiram à Revolução dos Cravos, a publicidade paga dos jornais encontrou uma invulgar fonte de receita. Muitos portugueses que por um qualquer motivo se viram acusados de terem sido agentes ou informadores da PIDE resolveram declarar em público a sua putativa boa-fé, atestando perante Deus e a Nação que jamais haviam pertencido à famigerada corporação. Um dos casos com mais impacto na época foi o do «Inspector Varatojo», que por se ter servido deste pseudónimo num programa da RTP sobre literatura policial e criminologia se tornou suspeito, como aconteceu aliás com alguns inspectores, estes dos verdadeiros, da Polícia Judiciária, das Finanças ou do Ministério da Educação, de ser agente da PIDE.

                      Evoco este episódio por me ver envolvido numa situação relacionada com a nomeação para «blogger do ano» numa votação promovida pelo programa de televisão Combate de Blogs. Já aqui disse que distingo os presentes dos prémios e que me parece fazerem os segundos algum sentido quando se apoiam num colectivo e exprimem reconhecimento. Como me pareceu ser o caso, não me mexi e até estava a achar alguma piada ao lado puramente lúdico da iniciativa. Não me afligiu sequer a possibilidade longínqua de poder vir a ganhar o referido prémio. A Terceira Noite é um blogue individual, sem comentários – a média de acessos únicos diários desceu aliás quando por motivos de higiene mental acabei com eles –, escrito sem a intenção de falar para toda a gente e mais interessado em estabelecer laços com uma pequena comunidade do que em fazer doutrina e pôr os contadores a girar. Convenci-me por isso de que o número de pessoas que votariam em mim seria sempre residual. Limitei-me a tomar nota e a dormir sobre o assunto, visitando o site uma ou outra vez para acompanhar o jogo para o qual tinha sido convocado.

                      Ora acontece que estando de início num honroso mas modesto lugar a meio da tabela, saltei de repente para um destacado primeiro lugar. Não pulei de alegria pois sabia que ninguém me iria dar um cheque com muitos zeros em caso de vitória. Bem pelo contrário, fiquei ligeiramente preocupado quando constatei que a esmagadora maioria dos votos tinha entrado de forma maciça algures entre as 4 e as 7 da manhã, hora na qual todos os gatos são pardos e, em Portugal, a maioria das pessoas sã de corpo e de espírito se dedica a pôr o seu sono em dia. Daí a correrem suspeitas públicas de se terem instalado «rotativas de IPs» (é quase certo, aliás) ou de eu me dedicar a pressionar cidadãos eleitores maiores e vacinados, foi um passo. Claro que tudo isto vale dois caracóis, mas admito que não gosto de ver-me envolvido em eventuais fraudes para alcançar um qualquer galardão.

                      Como é evidente, as pessoas que estão na origem da votação nada têm a ver com os contornos deste episódio lamentável. Acredito por isso que compreendam ser legítimo que eu mantenha algumas suspeitas – se elas forem infundadas, tanto melhor, mas estou convencido de que o não são – e não goste de me ver atascado em terrenos pantanosos dos quais quero distância. Como diria o Almirante Pinheiro de Azevedo, nosso Capitão Haddock de carne e osso: «É uma coisa que me chateia, pá!»

                      Adenda em 1/1/2011 – Espero não ter de voltar a escrever sobre este assunto (triste, embora não insignificante, dada a sua relativa visibilidade). Relato apenas um episódio que deixo à consideração de quem aqui chegar por causa dos ecos. Nas últimas horas da votação choveram mais umas chapeladas, tendo a última decorrido a segundos da meia-noite, quando seria suposto estar toda a gente a festejar a passagem do ano: nessa altura entraram mais de 200 votos, fazendo com que o meu nome cortasse a meta em primeiro e ao sprint. Como qualquer pessoa inteligente entenderá, só alguém completamente estúpido cometeria uma falcatrua tão óbvia em causa própria. Quanto aos objectivos de outrem, desconheço-os.

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                        Liberdade a sério

                        liberdade

                        É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

                        Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

                        Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

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                          O triunfo dos vencidos

                          loser

                          Escritos sobre a História não corresponde à tradução integral de On History, a colecção de 22 textos de Eric Hobsbawm editada em 1997. Falta-lhe o prefácio original, algo deslocado aliás desde o início, no qual o historiador fazia a sua profissão de fé num rígido dogmatismo materialista imediatamente contrariado pelo arrojo dos textos que se seguiam. Dos 14 ensaios que se encontram neste volume, um primeiro grupo, que reúne os mais antigos, testemunha principalmente  um certo esforço da parte do autor para responder a alguns dos dilemas colocados durante a década de 1970 aos avanços do conhecimento histórico. Um bom exemplo é «O que devem os historiadores a Karl Marx?», no qual se regista a dívida da historiografia tributável à análise marxista. Já o segundo grupo é bastante mais interessante, uma vez que integra reflexões sobre o modo como as rápidas mudanças do mundo ocorridas nas duas últimas décadas do século passado se cruzam com a História como saber e com a profissão dos que estudam as suas manifestações contemporâneas.

                          Dois dos ensaios são exemplares deste género de esforço: enquanto em «O Presente como História» Hobsbawm reflecte sobre as tarefas e das dificuldades do historiador que vê acontecimentos decisivos passarem-lhe diante dos olhos, em «Poderemos escrever a História da Revolução Russa?» considera o uso de técnicas contrafactuais – não aconteceu, mas poderia ter acontecido – como processo para questionar factos mais ou menos recentes sobre os quais não é possível existir consenso. Embora editados entre nós com atraso, estes estudos, marcados sempre pela enorme erudição e pela excelente capacidade comunicativa que são próprios do autor, deixam-nos também, numa ligação com muitos dos seus temas predilectos, um aviso inspirador: apesar de, no imediato, continuarem a ser os vencedores a escrever a História, a longo prazo será a intervenção dos vencidos a torná-la verdadeiramente inteligível. Reconforta-nos admitir pelo menos essa possibilidade.

                          Eric Hobsbawm, Escritos sobre a História. Relógio d’Água. Trad. de Miguel Serras Pereira. 264 págs.

                            Atualidade, História

                            Tédio

                            tédio

                            Sem ser adivinho, consigo decifrar à distância de cinquenta anos uma notícia em destaque no dia 4 de Dezembro de 2060, quando se comemorar o quadragésimo aniversário do desaparecimento do último jornal em papel e as gerações mais novas falarem todas, com alguma familiaridade, um 官话 técnico (ou mandarim simplificado) ensinado desde a pré-primária: «o Parlamento Europeu vai discutir a criação de uma nova comissão de inquérito destinada a reapreciar o caso Camarate». Se ainda for vivo, nesse dia morrerei de tédio.

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                              Futebol é isso mesmo

                              futebol de sofá

                              Não será um tema prioritário e que nesta altura difícil nos deva preocupar especialmente o facto da candidatura de Portugal e Espanha à organização do Mundial de Futebol de 2018, à qual concorriam também a Inglaterra, a Holanda/Bélgica e a Rússia, ter sido preterida em favor da última. Menos ainda nos deverá atormentar ter o Qatar ganho à Austrália, aos Estados Unidos, ao Japão e à Coreia do Sul na escolha para organização do Mundial de 2022. Mas talvez já nos deva inquietar um tanto verificar que venceram a contenda as candidaturas que menos condições estruturais ofereciam (estádios prontos, vias de comunicação funcionais, alojamento com oferta, público indiscutivelmente interessado) mas que mais obras a erguer da raiz e rios de dinheiro a gastar com elas prometiam. Estão a pensar no mesmo que eu, não é verdade?

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