A cidade dos buracos

Cittabella é, em Viaggio in Drimonia, o livro de Lia Wainstein editado em 1965 pela Feltrinelli, «a cidade dos buracos». Nela, todos os habitantes deambulam incessantemente, dando a sensação, a quem os possa observar a partir do exterior, de procurarem alguma coisa – um parente ou um amigo, um embrulho, uma carruagem, um animal de estimação – entretanto engolidos pelo chão. Ao mesmo tempo, medem cuidadosamente os passos, com o objectivo de evitarem a própria queda, que ainda assim consideram inevitável.

    Atualidade, Cidades, Devaneios

    O fim da democracia

    Deveria estar contente. Ou pelo menos agradecido às circunstâncias. Afinal lá caiu Berlusconi. Como se estatelou Papandreou. E antes deles tombaram Sócrates, Cowen ou Brown. Quanto a Zapatero, seguirá em breve para uma vida calma de conferencista. Não os comparo, embora com nenhum deles tenha simpatizado. Em particular com o abjeto Cavaliere, naturalmente. Mas é assustador olhar a vaga de políticos trocados por «reputados técnicos» ou por revanchistas que apenas pretendem reconduzir o Estado ao papel de polícia mau. De governantes eleitos com programas e com um contrato social, substituídos por administradores da coisa pública com formação de manga-de-alpaca e espírito de moralista. De humanos pecadores por asséticas santidades. Neste sentido, a queda do pequeno Napoleão italiano, e a forma como caiu, são até um mau sinal. Mais um. Pois não foram o povo e a democracia que o derrotaram. Foi a ditadura, invisível e pesada, do dinheiro e da finança.

      Apontamentos, Atualidade, Opinião

      Mudar o destino

      Destino

      Na conhecida obra de Diderot, o fatalista Jacques insiste em que tudo aquilo que de bom e de mau nos acontece se encontra escrito algures «lá no alto». As teorias deterministas partilham desta certeza ao tomarem o ser humano como peça de um mecanismo que é incapaz de controlar. Trata-se de uma forma mais elaborada dessa mesma ideia de destino que com menor dose de especulação os ultrarromânticos reconheciam como dona da vida, «marcando a hora» dos acontecimentos decisivos: um encontro único, um momento de sorte (que assim não seria fruto do acaso), o instante preciso da traição, da doença e da morte. Sabemos que esta é a forma mais fácil de encontrar uma explicação para aquilo que parece inexplicável, de encontrar uma certeza, uma âncora, na corrente do incerto. De certa maneira, é esse também o fundamento das religiões da aceitação e do suplício. Nas circunstâncias em que vivemos, parece pois inevitável um retorno em força deste princípio: perante uma realidade que todos os dias volteia e revolteia, e já ninguém se atreve a prever ou a tentar explicar, será quase natural um regresso das conceções fatalistas da vida. Bom para os fadistas, portanto, mas mau para aqueles que procuram contrariar a desgraça. A quem compete então inverter o que aparenta ser irreversível. Bater-se para mudar o destino. Aceitando, com o cantor Godinho, que «antes o poço da morte que tal sorte».

        Apontamentos, Atualidade, Olhares

        Olhar e resistência

        Vivemos escravos do olhar. O que não é mau, pois o olhar é um mestre esquivo, que muda muitas vezes de rosto, dá ordens inesperadas, e por isso admite um quinhão de independência a quem escraviza. Permite-nos ver e rever as mesmas coisas de maneira diversa, passando por elas como passamos pelas cidades invisíveis do Calvino italiano, sempre abertas a trajetórias novas, a roteiros que projetamos e percorremos à nossa própria custa, sem nos preocuparmos em demasia com os mapas, as polícias, os muros, os sinais de trânsito. Rei dos sentidos, como insistiam os poetas barrocos, o olhar é o último reduto da resistência e da liberdade.

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          Pesadelo regionalista

          Vira do Minho

          Talvez por vergonha ou esquecimento, já quase ninguém fala do tema, mas numa destas noites ele deu corpo a um horrível pesadelo noturno que me fez acordar sobressaltado, com suores frios e os piores presságios. Nele o referendo de 8 de novembro de 1998 tinha afinal aprovado o plano de regionalização do país que ia multiplicar os cargos, as prebendas, as parcerias público-privadas, os processos do Tribunal de Contas, as Madeiras e os Audi pretos. E agora tínhamos um défice das contas públicas vinte vezes pior e quarenta vezes mais difícil de resolver do que o da Grécia. Quando percebi de que lado estava a realidade senti um imenso alívio. Por instantes achei até que tinha despertado na Noruega.

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            Desaparecidos

            A imigrante

            No centro da turbulência tendemos a concentrar-nos na nossa própria segurança e a esquecermos os outros. Faço o giro dos jornais, fico atento às notícias, e vejo como alguns assuntos desapareceram. Esquecidos porque as prioridades estão noutro lado, para aquém e para além das velhas fronteiras. Naquilo que decide ou não decide Merkl, no que resolve ou retarda Coelho, no que Papandreou supõe ser o dia de amanhã, naquilo que Barroso diz para não dizer. Algumas reportagens lançam alarmes sobre a fuga dos cérebros de putativos génios, seduzidos por uma bolsa de pós-doutoramento no Dakota do Norte ou pelo negócio da venda de imóveis na Nova Gales do Sul. Ao lado, imperturbável, o circo do futebol continua a preencher as primeiras páginas: com ele não há crise que meta medo e o único mercado capaz de preocupar as consciências é aquele que permitirá em janeiro o reforço dos plantéis. Mas a imigração, que ainda há uma dúzia de meses aparecia com algum destaque nos títulos, parece agora esquecida.

            É verdade que já estava longe de ser o centro da atenção do país, até porque nunca foi assunto que preocupasse em demasia os sindicatos, os partidos e a conferência episcopal. Só que agora desapareceu de vez: ucranianos, moldavas e romenos, brasileiras e cabo-verdianos, apenas ressurgem quando se fala de um crime de sangue, de um assalto por esticão, ou, ocasionalmente, de «atividades de sucesso» no domínio do desporto, da restauração e das práticas mágicas. No entanto, ainda que um bom número tenha regressado aos seus países de origem ou partido para outros destinos, a maioria continua por cá. Sofrendo connosco a recessão, os salários amputados, os impostos que disparam, a insegurança e o receio do futuro. Só que não se ouvem, silenciosamente ocupados a sobreviver, como sempre fizeram e continuarão a fazer. Quanto a nós, de tão absorvidos com o deve e o haver da vida a prazo que agora levamos, tendemos a esquecê-los. E nem damos parte do seu desaparecimento. Um mau sintoma do estado de degradação da solidariedade e de desinteresse pelo coletivo, de um dramático sauve qui peut, ao qual chegámos.

              Apontamentos, Atualidade, Democracia

              Porque gosto eu tanto do cinema francês dos anos 60
              (de preferência a preto e branco)

              «Seria difícil imaginar um realizador americano ou inglês a fazer um filme como Ma Nuit Chez Maud (1969), de Éric Rohmer, em que Jean-Louis Trintignant agoniza durante quase duas horas sobre se deve ou não dormir com Françoise Fabian, invocando, nestas duas horas, tudo, desde a aposta de Pascal sobre a existência de Deus à dialética da revolução leninista. Aqui, como em tantos filmes da altura, é a indecisão, e não a ação, que faz avançar o enredo. Um realizador italiano teria acrescentado sexo. Um realizador alemão teria acrescentado política. Para o francês, bastavam as ideias.» (Tony Judt, O Chalet da Memória)

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                Cinema, Olhares, Recortes

                O regabofe

                Annibale Carracci - «O comedor de feijões», 1585

                Uma frase curta com a qual nos têm martelado os ouvidos, como afirmação supostamente mordaz para justificar tudo aquilo que de mau nos está a acontecer, declara que «é preciso acabar com o regabofe». A frase é incómoda e perigosa porque tem sempre um sentido unívoco. Com ela se pretende indicar que ao longo das últimas décadas as pessoas comuns tiveram direitos a mais, uma qualidade de vida que não se justificava, educação e saúde exageradamente acessíveis, transportes ao preço da uva mijona, férias preocupantemente longas, uma estabilidade no trabalho que só lhes fez mal à inteligência e aos músculos. Que passaram demasiado tempo a passear, a comer refeições completas, a tomar banhos de mar, a ler romances, a namorar, a programar futuros melhores para si e para os seus filhos. Porém, aquilo que pretende significar quem se serve da expressão não é que tais práticas fossem intrinsecamente más, indubitavelmente escusadas e fonte incontornável do pecado. É que não foram as pessoas certas a fruí-las. Que o regabofe não deveria ter sido para quem queria, mas apenas para quem podia. Não para todos, mas só para alguns. Não para quem trabalhou mas para quem, no andar de cima, geriu o trabalho dos outros e, supostamente, dessa forma foi «criando riqueza» para gastar consigo próprio. Num merecido e eterno regabofe.

                  Apontamentos, Atualidade, Olhares

                  O caminho, provavelmente

                  Muitos cidadãos dos Estados periféricos da UE, mas também muitos dos que habitam o conforto dos Estados centrais, não gostarão desta ideia. Afetos aos nacionalismos cada vez mais ocos, irracionais e perigosos, temerão o fim das identidades ancestrais. Por motivos históricos e pelo medo de um dia ver emergir uma «Europa dos povos», a direita bater-se-á contra esta solução. Porque teriam de rever toda a sua estratégia de tomada e conservação do poder, os «patriotas de esquerda» farão a mesma coisa. Mas poderá ser este o rumo para evitarmos a derrocada e podermos emergir da crise com alguma segurança e dignidade. E afinal até parece simples de pensar e de dizer. Exista vontade política, respeito pela democracia e uma conjugação de esforços que permita dar, sem equívocos, os primeiros passos neste caminho complexo, difícil, mas provavelmente necessário.

                    Apontamentos, Opinião, Recortes

                    De Gaulle revisitado

                    Duas das mais difundidas fotografias de Charles De Gaulle (1890-1970) ilustram de forma sinóptica o essencial do seu legado como homem público com um lugar central na História da França e da Europa. A primeira foi obtida a 18 de junho de 1940, nos estúdios da BBC, no momento em que a partir de Londres exortava os franceses a resistirem aos ocupantes nazis e aos colaboracionistas de Vichy. A outra apanhou-o em 1970, quase no final da vida, quando já sem qualquer cargo passeava com a mulher, Yvonne, pela propriedade-refúgio de Colombey-les-Deux-Églises. Entre o momento da empolgada coragem e o da retirada amarga e sem glória tinham decorrido apenas três décadas, suficientes, no entanto, para fazerem do general uma figura decisiva do segundo pós-guerra. Escrita por Éric Roussel, jornalista do Figaro, esta biografia evoca no entanto um De Gaulle peculiar, reescrevendo certos momentos do seu trajeto e juntando-lhe outros, por ter sido possível ao autor aceder a arquivos entretanto abertos onde encontrou entrevistas, declarações, citações e confidências menos conhecidas ou de todo ignoradas. ler mais deste artigo

                      Biografias, História

                      Dinâmicas do fascismo

                      Mussolini

                      Autor de diversos trabalhos no campo da teoria social e da sociologia histórica, Michael Mann serviu-se dessa experiência para abordar o fascismo de uma forma pouco habitual. Desde logo, fazendo uma aproximação sistémica e comparativa a situações e a movimentos mais habitualmente estudados experiência a experiência, país a país. Depois, dando uma importância maior às circunstâncias, em detrimento da centralidade normalmente atribuída aos factos de natureza política. E, por fim, como resultado desses dois primeiros aspetos, insistindo no lugar decisivo das pessoas, das suas aspirações e das suas propostas. Deixando, ao mesmo tempo, a dimensão mais propriamente orgânica e institucional num segundo plano. O que lhe importa é, afinal, menos a conservação do poder do que a preparação da sua conquista, sendo esta que em Fascistas (Edições 70) se propôs observar, compreender e revelar-nos. A estrutura da obra, saída originalmente em 2004, é entretanto razoavelmente simples: um capítulo de natureza metodológica no qual se justificam as escolhas e se passa em revista a produção académica e a teoria geral do fascismo; outro sobre a emergência dos movimentos fascistas no seu contexto histórico, aproveitando para construir uma tipologia das correntes europeias de natureza autoritária; e mais sete dedicados a seis Estados no interior dos quais a corrente pôde impor-se como dominante, tomando e conservando o poder (Itália, Alemanha, Áustria, Hungria, Roménia e Espanha). ler mais deste artigo

                        História

                        O clube dos rapazes solitários

                        «Nunca ficava tão feliz como quando ia a algum lado sozinho, e quanto mais tempo demorasse a lá chegar, melhor. Caminhar era agradável, andar de bicicleta era aprazível, as viagens de autocarro divertidas. Mas o comboio era o céu. Nunca me dei ao trabalho de explicar isto aos meus pais e amigos, e por isso via-me obrigado a fingir objetivos: lugares que queria visitar, pessoas que queria ver, coisas que precisava de fazer. Tudo mentiras.» (Tony Judt, O Chalet da Memória)

                        À medida que fui avançando na leitura da última obra de Tony Judt, num comovente registo autobiográfico procurado quando a vida já lhe fugia, fui ampliando a impressão que me surgiu há mais ou menos dez anos, quando o li pela primeira vez. Estava ali, naquelas páginas, o rasto de uma pessoa que eu nunca vira, com quem jamais falara, com uma origem social, um trajeto geográfico e uma formação tão diferentes dos meus, e que, no entanto, «pensava como eu», interessando-se recorrentemente por muitos dos assuntos, tradições e linguagens com os quais me importo. O Chalet da Memória veio pois reforçar essa impressão, mas ao mesmo tempo introduzir-lhe uma nuance que me parece importante. Sim, é provável que partilhássemos temas ou preocupações, que tivéssemos opiniões bastante ou relativamente próximas – virá daí a sensação de perda que observei com a sua morte precoce; vem daí também, seguramente, a razão pela qual o recomendo vivamente aos alunos que ainda leem – mas existe algo mais, e que será comum a muito mais pessoas do que a Tony e mim próprio, a criar esse estado de proximidade. Este «algo mais» observo-o a dois planos.

                        O primeiro tem a ver com o tempo em que chegámos a este mundo. Judt era um pouco mais velho do que eu, mas ambos nascemos e crescemos numa Europa na qual, se apurássemos os sentidos, ainda era possível escutar o estrondo da artilharia pesada e sentir os ecos da guerra contra Hitler. Partilhando um tempo no qual a miséria e a esperança, o trauma e o alívio, competiam ainda de forma muito evidente. Já o segundo plano será mais de ordem temperamental: o historiador fazia parte, e jamais deixou de o fazer, daquela estirpe de rapazes um tanto introvertidos e que se viam a sim próprios como inequívocos rebeldes – ser rapaz era aqui importante, pois implicava uma intimidade não-partilhada que a maioria das raparigas podia então ultrapassar nos seus gineceus –, comprazendo-se numa observação do mundo atenta, individualista e forçosamente solitária. Leio o passo transcrito no início e sou capaz de revisitar memórias contíguas com uma boa sensação de cumplicidade. Mas também com uma tomada de consciência daquela mesma espécie de perda da qual, nos últimos anos, Judt vinha dando conta: a dessa esperança juvenil, reconfortante e incitadora, que agora a todos começa a ser difícil manter. O que não significa que se preveja o desaparecimento para breve dos sócios do clube dos rapazes solitários. Nem pensem.

                          Apontamentos, Biografias, Olhares

                          A Lição de Estaline

                          A Lição

                          Um quadro de A Lição de Salazar para turistas britânicos de passagem pelo Hotel Palácio do Estoril pelos inícios dos anos cinquenta? Não, não, trata-se antes de uma página de um manual de aprendizagem de inglês – oficial, naturalmente, como o eram todos também por aquelas bandas – publicado na União Soviética pela mesma época. Mais informação e imagens aqui.

                            Apontamentos, História, Olhares