Tenho evitado referir-me a Purga em Angola, o livro de Dalila Cabrita Mateus e de Álvaro Mateus, editado pela ASA, sobre a história do MPLA e os acontecimentos que envolveram o negro dia 27 de Maio de 1977. Custa-me falar de um assunto doloroso e sobre o qual não posso ser observador imparcial, pois estive em Angola no ano da independência e conheci de perto pessoas que ano e meio depois foram fuziladas, ou desapareceram, ou foram «apenas» presas e torturadas com requintes de barbárie. Jovens quadros como o Mário Rui ou o Armando, que deixaram uma boa posição em Portugal para participarem na construção da sua pátria, militantes anónimos com os quais me cruzei por diversas vezes em missões de apoio logístico ao Movimento, figuras mais conhecidas como o Rui Ramos, da OCA, com quem cheguei a ter, em Luanda, uma reunião vigiada já por agentes da DISA. Sei que, para todas as partes, era aquele um tempo de radicalidade. Eu próprio não era, na altura, propriamente um sujeito razoável. Mas sempre achei que existe um limite moral para o extremismo. E esse limite foi largamente ultrapassado por pessoas como Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Luandino Vieira ou Rui Mingas, membros da «Comissão das Lágrimas», que continuam a passear-se por aí, a serem premiados ou apaparicados, com a condescendência de muitos intelectuais portugueses, companheiros seus dos tempos do «reviralho» para quem não passam de uns «gajos porreiros». Seja qual for a posição política que cada um deles possa hoje ter, o grau de culpa que possam ou não sentir, o hábito de eremita que possam até arrastar consigo, aquilo que fizeram jamais será esquecido e dificilmente poderá ser perdoado. Também por isso este livro se torna importante.
Na morte de um velho patife
Antes que se desdobre por aí a ladainha dos obituários tradicionais (ou as declarações de intenção dos que se obstinam em fazer-nos saber que não estão para essas coisas de acariciar os mortos), um pequeno parágrafo sobre Norman Mailer na data do seu passamento.
De Mailer apenas posso dizer que, como quase toda a gente, pouco mais li que o já amarelecido Os Nus e os Mortos. Que lhe ficamos a dever algumas das primeiras facadas do new journalism. Que dele sobrará um rasto do estereótipo hemingwayano do escritor-macho enquanto provocador, bruto e supostamente femeeiro. Absolutamente anti-norma na relação com o romancista ou com o poeta low-profile que povoa hoje, até à náusea, os suplementos e as revistas literárias. Fazem-nos falta, pois, sacanas assim. Quanto mais não seja para nos irritarmos com eles e aprendermos a relativizar a fala previsivelmente mansa, dócil, de muitos dos outros.
Um ano com Miss Tapes
Também eu já quase não utilizo CDs. Enquanto viajo, leio ou escrevo, habituei-me a ouvir música em formato mp3. Ele oferece o isolamento que por vezes procuro em relação ao ruído que perturba, estimulando novas paisagens, criando momentos portáteis de emoção, relaxe ou evasão. Há anos que o velho walkman japonês foi abandonado, trocado por leitores versáteis e ultraleves, dotados de uma qualidade de som e de uma capacidade cada vez maiores. As bandas sonoras que estes permitem criar, tal como o novo tipo de silêncio que a sua interrupção provoca, passaram assim a fazer parte de um dia também ele outro.
A mais recente conquista foi a integração habitual no leitor de programações musicais organizadas sob a forma de podcasts. Já aqui sugeri, há algum tempo atrás, a experiência da Íntima Fracção. Hoje, porque acaba de fazer um ano que passou a estar disponível online para ouvir e descarregar, é a vez de lembrar Miss Tapes, «mixes for blue girls and blue boys», um exercício contemporâneo de liberdade sonora e raro bom gosto da autoria de Hugo Pinto. Aqui fica ainda o seu episódio mais recente (62’40”):
Die Berliner Mauer
Os Turras
Continua a excelente série sobre a Guerra Colonial que a RTP-1 tem transmitido todas as terças-feiras. Para já, aquilo que ressalta como inegável é o fantástico trabalho de recolha e o esforço de enquadramento histórico dirigido por Joaquim Furtado. Jornalismo de investigação a sério, daquele que só alguém com a sua experiência, o seu perfil e o seu estatuto pode materializar. De facto, detecta-se ali um conhecimento, uma capacidade crítica, uma procura não-ingénua de isenção, uma disponibilização do tempo, um esforço para fazer devagar mas bem, que nem sempre os jornalistas mais novos, e alguns dos da geração de Furtado, sabem fazer ou têm condições para levar à prática.
Entretanto, em termos formais, aquilo que neste momento mais me choca não são os dados sobre as vítimas e os danos ocorridos nos primeiros tempos da guerra em Angola. A maioria deles eram já bem conhecidos. É a forma paternalista como a generalidade dos protagonistas portugueses entrevistados, mesmo pessoas responsáveis como Carlos Fabião, Lemos Pires ou Adriano Moreira, fala dos combatentes africanos e do comportamento das «populações indígenas». Alguns deles não hesitam mesmo em apelidá-los, tanto tempo depois, de «terroristas», ou de considerar muitas dessas pessoas como «levadas ao engano» pela propaganda insidiosa do «inimigo». Em muitos dos testemunhos ainda se pressente a matriz racista, um resto de adrenalina, a marca de exaltação (esforçadamente contida, mas perceptível), que sobra dos momentos de tensão e de bestialidade então vividos. É bom que o programa também mostre isso, claro. Mas tal não deixa de perturbar aqueles de nós que já mataram esses fantasmas.
Aquecimento global
Jamais. Jamais me conformarei com tantos domingos sucessivos sem chuva.
E-Dazibao
Logo a seguir aos Estados Unidos, a China é o 2º Estado do mundo com um maior número de utilizadores da Internet (90,7 milhões no final de 2006). Ao mesmo tempo que florescem blogues e BBS (os nossos velhos electronic bulletin boards), toda a rede é alvo de uma apertada vigilância política. Este sistema pode dar algumas ideias aos poderes que noutras partes do mundo pretendem limitar o acesso inteiramente livre à rede, mas, de acordo com alguns sinólogos ocidentais mais optimistas, a explosão dos acessos poderá também alimentar um rastilho capaz de estimular a mudança dentro da sociedade chinesa e do próprio regime. Um pouco como ocorreu, na antiga União Soviética, com a informação paralela proporcionada pela imprensa samizdat. Sobre este assunto pode ler-se, no Eurozine, um excelente artigo do checo Martin Hala.
High-Tech trash
Percorridas as 627 páginas de Rio das Flores, o novo «romance histórico» de Miguel Sousa Tavares, preparava-me para anotar duas ou três impressões quando o leitor de feeds do Bloglines me avisou de que n’A Invenção de Morel tinha acabado de sair uma pequena nota crítica sobre o livro. Esta acabou por aliviar-me bastante do esforço de dizer qualquer coisa de inteligível sobre uma obra cuja leitura, pesadas as coisas, me aborreceu muito mais do que me agradou. A verdade é que, conhecida então a opinião de José Mário Silva, não posso senão concordar inteiramente com ela e recomendá-la.
Acrescento-lhe, porém, um brevíssimo comentário, servindo-me de uma afirmação produzida pelo autor durante uma entrevista publicada, a 20 de Outubro último, no suplemento Única, do Expresso. Declarava aí MST que «finalmente estou a tornar-me um escritor». Um escritor sim, sem dúvida – um romancista também, pois era isso que certamente pretendia dizer –, mas um escritor que convive com um equívoco. Ao pretender escrever de uma forma «inteligível», que possa ser compreendida sem dificuldade pelo leitor comum, aquele sem cultura literária e sem o hábito de ponderar o valor de uma obra de outra forma que não seja pelo interesse que lhe desperta a história que esta conta, MST põe de parte a procura da forma única, original, do texto irrepetível, que separa a chamada grande literatura daquela que, embora legítima, se limita a reproduzir estereótipos e se destina apenas a um público que não é muito exigente nas suas escolhas. É isso que o conduz, por exemplo, a perder-se em longas páginas descritivas com as quais pretende fazer o enquadramento histórico de determinados episódios, redigidas sempre de uma forma bem informada mas incomodativamente escolar. Muitos leitores, porém, entenderão esta característica como uma qualidade.
Apreciei bastante Sul e razoavelmente Não Te Deixarei Morrer, David Crockett. Gosto do Miguel Sousa Tavares cronista e «grande repórter». Gostaria que ele pudesse investir mais naquilo que faz realmente bem, por vezes muito bem. Mas se lhe dá prazer escrever uma coisa assim, olhar para a capa de Equador e ver que este vai na 32ª edição portuguesa, acompanhar José Rodrigues dos Santos e Fátima Lopes nos mesmos escaparates flamejantes, ser visto com concupiscência (literária, claro) por balzaquianas típicas ou frequentadoras da Nails and Beauty, quem sou eu para lhe reprovar as intenções? Nada tenho contra a chamada literatura light, e reconheço que esta preenche um espaço de interesse pelos livros e pela leitura que é inteiramente respeitável e até necessário. Principalmente quando quem a pratica é competente e não amarfanha a gramática, como é o caso. Mas já não me parece bem que ela passe por aquilo que realmente não é.
O equívoco
O dia começou-me esplêndido. Na livraria, um cliente quer pedir ao empregado A Angústia da Influência (The Anxiety of Influence), de Harold Bloom, e pede A Angústia da Flatulência. Poderá ter confundido Bloom com Carolina Salgado.
Lumière e Companhia
Cheguei lá através do PFNews, o blogue pescador de pérolas. «Lá» é a colaboração entre 41 realizadores com o objectivo de produzir 41 pequenos filmes recorrendo à câmara cinematográfica original, tal qual a inventaram os irmãos Lumière. As três únicas regras requeriam que o filme não demorasse mais de 52 segundos, não contivesse mais de três takes e não utilizasse som sincronizado. O resultado encontra-se aqui.
Castidade, temperança e abstinência
Por mais que me desgoste a situação, e a tente contrariar adiantando outros assuntos, os posts deste blogue que mais recorrentemente são consultados possuem como títulos «Maria e o sexo oral», «Pornografia para crianças» e «Garganta Funda». Eles não são nada daquilo que aparentam ser – bastará aos leitores fazerem uma rápida procura no motor interno para o poderem confirmar – mas tal não demove esse exército de cidadãos lusófonos que sistematicamente se dedicam a pesquisar semelhantes assuntos na sex-machine planetária que se dá pelo nome de Google. A minha esperança é que o título deste post possa ajudar a criar um ponto de equilíbrio e me reabra as portas da Salvação. Oxalá e amen.
Inimigos da rede
Por causa das medidas tomadas pelo governo ditatorial da Birmânia no sentido de cortar as comunicações com o exterior, o suplemento Digital (do Público) desta semana incluiu um artigo sobre «Quando os governos preferem que o seu país fique offline». Particularmente elucidativa é uma caixa na qual se inventariam os processos utilizados em dez dos Estados cujos governos são colocados entre os piores inimigos do uso livre da Internet.
Na base desta lista negra, encontram-se o Panamá (as centrais telefónicas conseguiram ali que o governo impedisse o acesso à tecnologia VoiP utilizada pelo Skype) e os Estados Unidos (onde o Ministério da Defesa bloqueou o acesso, nos cinco milhões de computadores dos seus serviços, a sites como o YouTube, o Hi5, o Myspace, a MTV ou o Pandora, entre outros). Subindo na escala da actividade censória, surgem países islâmicos como a Arábia Saudita, o Irão, a Síria e o Egipto. Nos dois primeiros, são invocados principalmente os conteúdos «imorais» ou «inaceitáveis», ao passo que nos outros dois são as posições políticas dissidentes as principais atingidas.
Por último, entramos no universo do «socialismo real» supervivente, onde, para além dos conteúdos, é o próprio acesso que é severamente limitado ou totalmente impedido. A Coreia do Norte é o caso mais conhecido, pois ali só alguns altos dignitários do regime possuem acesso à rede mundial. Vem depois a China e a Bielorrússia, onde são banidos os conteúdos contendo quaisquer comentários, mesmo os estritamente privados, que possam ser desfavoráveis aos regimes vigentes. Na China, quando os acessos são estabelecidos a partir de empresas, o bloqueio pode surgir disfarçado aparecendo no ecrã uma mensagem a avisar da existência de «problemas técnicos». Para o final fica o caso de Cuba, o 2º país do mundo no qual maior número de restrições são colocadas ao uso livre da Internet e que é por vezes apontado como «modelar» no que respeita ao exercício das «verdadeiras liberdades»:
«Apenas dois por cento da população tem acesso à Internet. E os que têm são cuidadosamente vigiados para perceber se se embrenham em actividades «contra-revolucionárias». Não há ligações privadas à Net. Os cubanos têm de se deslocar a pontos de acesso públicos, como cibercafés, universidades ou «clubes de computadores» para poderem ver o seu e-mail. Estes locais têm software instalado que faz disparar o alarme na polícia de cada vez que palavras-chave «subversivas» são escritas. De igual modo, todos os cubanos classificados pelo Estado como dissidentes ou jornalistas independentes têm imensas dificuldades em aceder à rede.»
A propósito, leia-se isto.
A manhã estava bonita
[audio:http://static.publico.clix.pt/docs/media/tropas.mp3]«Estamos em Junho de 1961. No Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, a multidão reuniu-se para ver partir um dos primeiros contingentes de soldados a partir para a Guerra Colonial. Há fanfarra, hino e ambiente de festa. O repórter lança-se no seu discurso, previamente revisto, onde fala da grandiosidade do império e do céu azul na partida, despedindo-se com um ‘boa viagem rapazes e até breve’. Mas o microfone da rádio, que não obedece a ordens, não conseguiu fazer calar os gritos de dor de mulheres e mães que se ouvem de fundo, ao longo de toda a reportagem.» [do Público online]
A solidão
É muitas coisas a solidão. É o estado de quem se encontra ou sente desacompanhado. É o próprio isolamento. É também, anuncia secamente o Houaiss, essa «sensação ou situação de quem vive afastado do mundo ou isolado no meio de um grupo social». A solidão é tudo isto é, e é muito mais. Mas sempre uma condição que se define por um estatuto complexo e contraditório. É boa e é má, é inevitável ou impossível, é admirável ou indigna, mas raramente somos capazes de a situar no meio-termo ou de lhe sermos indiferentes. O mundo contemporâneo teme-a quando a associa ao isolamento imposto pela vida nas cidades, pelo exílio, pelo cativeiro. Mas nega-a quando considera que «todo o homem é uma ilha» e, ao mesmo tempo, o integra num imenso arquipélago. Na era da comunicação de massas e do triunfo da sociedade em rede, a solidão radical tende até a ser considerada doentia, subversiva, quase incompreensível, devendo por isso ser proscrita. Ao ponto de, nas escolas básicas, as equipagens de psicólogos perseguirem as crianças «diferentes» que, não sendo autistas, se isolam apenas porque gostam de construir o seu próprio mundo, ou, mais simplesmente, porque lhes desagrada aquele universo hipersociável e ruidoso que lhes pretendem impor.
O último número especial do Magazine Littéraire inclui um extenso dossier sobre A Solidão (La Solitude), tomada ali, de forma dúplice, como «mal de vivre ou quête de soi». Nele se abordam, em quase três dezenas de artigos desiguais mas sempre propedêuticos, instantes ou experiências dessa condição que oscila entre «a punição divina ou a fatalidade sociológica» sempre que é imposta, e «a estranha doçura», elemento da busca da felicidade e da plenitude, que pode adquirir quando é procurada. A filosofia, a religião, a arte e a literatura são os inevitáveis territórios de aproximação propostos neste conjunto de textos, através dos quais se fala da solidão do trabalho do filósofo e do escritor, da pintura de Goya, Van Gogh ou Magritte, da decisão pessoal de Aquiles, do exílio de Ovídio, da vida e das buscas dos ermitas, das reflexões de Montaigne, Pascal e Rousseau, do individualismo romântico que enaltece o solitário, de Emerson e Flaubert, de Nietzsche e Rilke, de Kierkegaard, Heidegger e Blanchot, de Peter Handke e de Paul Auster. No final, dois artigos expõem perspectivas alternativas: um aborda o «complexo de Robinson», mostrando a obra de Daniel Defoe como tentativa para enunciar definitivamente a condição social, não-solitária, do humano; o outro trata as «novas solidões» impostas agora ao ser humano comum e determinadas pela precariedade e pela mobilidade do emprego, pela brutal expansão da vida urbana, pela dissolução das solidariedades familiares, pela crescente insularização das gerações. Recomenda-se, naturalmente, que a leitura deste número do ML se faça em modo solitário.
Da pág. 161
De cada vez que me chega um repto para participar numa sequência de respostas em cadeia – e, se não me engano, n’A Terceira Noite este é já o quarto –, declaro sempre para mim mesmo que aquele será o último ao qual darei sequência. Não, não é por snobismo ou mania da diferença. Acontece apenas que a estratégia se tornou um tanto repetitiva, que são muitos os desafios do estilo, que todos eles exigem uma disponibilidade (e uma dose de vontade) por vezes ausente. Mas acabo por me contradizer sempre que chegam desafios singulares e estimulantes, vindos, além disso, de pessoas que prezo. É o caso deste, que chegou através do João Ventura e sugere o seguinte: que escolha o livro mais próximo, literalmente; que o abra na página 161; que procure e transcreva a 5ª frase completa; que tenha o cuidado de não escolher a melhor frase nem o melhor livro; e que o passe a outros cinco bloggers. Vamos então a ele. Ao repto.
Tentei seguir exactamente o prescrito, mas não o consegui à primeira. O livro mais próximo dos meus dedos, com o curioso título Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard (ed. Verso da Kapa), e que ando a sublinhar com extremo proveito, tem apenas 158 páginas. E no seguinte, a edição do Pantagruel. Rei dos Dípsodos, da Frenesi, que me preparo para reler (garanto que não fiz batota e fui à procura dele), a referida página é toda ela ocupada por uma gravura na qual se representa «a derrota dos trezentos gigantes armados com pedras de cantaria». À terceira tentativa, porém, fui melhor sucedido. D’O Deserto dos Tártaros, do Dino Buzzati, saiu-me então qualquer coisa como: «O general era velhote e olhou o tenente Drogo com ar bondoso através do monóculo». O que me obrigou a um complexo exercício de abstracção, uma vez que sempre associei o uso do referido acessório a atitudes de autoridade ou de afectação, presumivelmente incompatíveis com a ostentação de um rosto capaz de exprimir aquela dose de brandura que habitualmente aliamos à bondade.
Segundos depois, porém, apercebi-me de que tinha acabado de receber de Buzzati uma lição sobre os atalhos da complexidade humana e a falibilidade de todas, de rigorosamente todas, as aparências. Simples e eficaz como o são sempre as melhores lições. Procurarei pois não esquecer as duas linhas desta pág. 161. E, se ainda for possível encontrar algum por aí, sorrirei para o próximo general de monóculo com o qual me venha a cruzar. Ou mesmo para a minha mal-encarada vizinha do andar de cima.
A sugestão segue para o Lutz Brückelmann (que não respondeu à última chamada pois estava noutro lugar), para as-duas-elas-que-se-entendam, para o António Godinho Gil, para o Eduardo e para o GAF.
[31-10-2007] Três dias depois chegou-me uma proposta idêntica vinda da Carla Quevedo. E entretanto outra da Lídia Aparício. Agradeço o interesse, mas a verdade é que a única circunstância em que alguma coisa me saiu melhor à segunda vez foi no exame para tirar a carta de condução de veículos motorizados ligeiros de passageiros e turismo.
Sinal dos tempos (pergunta 2)
O Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas tem toda a razão. A possibilidade de fusão do BCP e do BPI é um assunto privado que interessa a quem o promove apenas como negócio, mas que omite, pelo menos em termos públicos, os aspectos menos bonitos e mais complexos da possível operação. Não deixa de ser um sinal dos tempos que nem uma palavra tenha sido dita – e os repórteres também nada perguntaram – a propósito da sorte de boa parte das dezenas de milhar de trabalhadores que servem as duas instituições bancárias e que, a confirmar-se a operação, irão inevitavelmente para o desemprego. O governo não terá nada a ver com isto?
Sinal dos tempos (pergunta 1)
Habitualmente distribuídos entre tias e avozinhas – com o devido respeito, como dizia a outra, por aquelas que efectivamente o são –, cargos públicos como a presidência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou a provedoria da Casa Pia de Lisboa excluem geralmente os homens. Marca, ou nódoa, de um atavismo cultural que continua a considerar as mulheres como particularmente sensíveis para determinados cargos ligados ao exercício da prodigalidade cristã, e os homens (se ressalvarmos o Padre Melícias) como uns brutos «muito homens» que não têm vocação para tais mariquices. Ou tratar-se-á da política de quotas sob a forma de farsa?
Recordando Rosalind
As declarações de James Watson sobre os testes que «provam» a menor inteligência dos pretos em relação à inteligência média dos caucasianos fizeram recordar uma história de há muitos anos. A história de Rosalind Franklin, que desenvolvia em King’s College, desde 1950, um trabalho crucial para a descoberta da estrutura molecular do ADN que daria a Francis Crick, a Maurice Wilkins e ao mesmo Watson, em 1962, o Nobel da Fisiologia e da Medicina. A «descoberta» foi divulgada na Nature durante a primavera de 53, quando Crick e Watson trabalhavam no Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge, mas ambos omitiram no artigo o contributo, entretanto publicado, da sua colega de King’s. Há décadas que se comenta que o fizeram pela pouca importância que atribuíam ao facto desta ser mulher. Rosalind morreu em 1959, devido a uma doença contraída no laboratório, enquanto Crick e Wilkins desapareceram deste mundo em 2004. Quanto a Watson, parece que continua por aí a fazer estragos.
Um comentário a este post coloca este episódio em termos diferentes. Vale a pena conhecer esta outra leitura, a qual contraria aquela que aqui transparece.