Hugo Chávez aprovou uma lei que obriga os cidadãos venezuelanos a cooperarem com os serviços de informação, incorrendo em pena de prisão se o não fizerem. Ao mesmo tempo, passam a poder ser feitas escutas telefónicas sem qualquer autorização judicial. Claro que neste exemplo vivo do «socialismo do século XXI» tal se destina «apenas» a evitar «ataques imperialistas» e «rebeliões militares». Foi com idênticos objectivos que, logo a partir de Outubro de 1917, a construção do socialismo passou a estar ligada à imposição sem concessões de diversos Estados policiais. O resto do filme é conhecido e tem sido exibido em sessões de reprise.
5 de Junho de 1989
Prç. George Orwell, Barcelona
Algures entre a polifonia da cidade e a ironia da história.
E agora o horror
Uma das mais impressionantes descrições do horror da guerra, da total combustão provocada pelas bombas de enorme potência, da devastação para além do imaginável, foi produzida por Sebald na História Natural da Destruição, ao descrever Hamburgo reduzida, em Julho de 1943, a escombros, fantasmas errantes e cadáveres feitos em papa. E no entanto o escritor alemão referia-se a uma devastação silenciada, olhada durante décadas como justificável por ter acontecido do lado dos vencidos. Não tanto os nazis, que esses puderam sempre suicidar-se ou mudar de identidade, mas todos aqueles, pessoas mais ou menos comuns, que viram desmoronar-se o prometido «Reich de Mil Anos» e deveriam expiar até ao fim, na humilhação, no silêncio e na carne, a cumplicidade, involuntária ou não, com um horror considerado maior pelos vencedores.
Não me surpreende, pois, o emudecimento daqueles que calam hoje os crimes resultantes das bombas largadas nos últimos vinte anos sobre todo esse território, vasto e arenoso, que vai de Gaza até Cabul. Aqueles que mais de perto têm experimentado o seu impacto não estão do lado dos vencedores, pouco sabem do que representou Auschwitz, e jamais ouviram falar do Gulag ou mesmo de Guantánamo. Pouco sabem até das «fronteiras bíblicas» que lhes são atribuídas. Ou da liberdade da qual falam em seu nome. Não escolhem nem sabem que podem escolher, apenas vivem. E o horror que conhecem, e o ruído dos voos rasantes dos F-16 dos quais nos falam os títulos da manhã, apenas lhes importam na medida em que lhes interrompem os hábitos de sobrevivência. Vistos daqui do nosso conforto, ou lá de cima desde os cockpits, são apenas pontos negros que se movem e que olhamos com a mesma dose de piedade que experimentamos ao olharmos as moscas de verão liquidadas com um jacto de spray. O horror dos outros não existe quando o não vemos ou desviamos o olhar.
Publicado originalmente, por convite, no Corta-Fitas
O princípio do fim de um sonho
Obama é o escolhido. Começou o tempo de todos os compromissos.
Invocar evocando
Pelos ecos que vão chegando, o comício-festa com bilhete de entrada que reuniu no pequeno Teatro da Trindade bloquistas, ex-pintasilguistas (que las hay, las hay), renovadores comunistas, Helena Roseta e Manuel Alegre, supostamente para «comemorar Abril e Maio» numa noite de Junho, não excedeu as expectativas: uma invocação do futuro na evocação do passado. A paisagem fotográfica que nos é revelada pelos jornais em papel e em linha acompanha-a: é incontornavelmente triste e soturna. Assim não vamos lá.
«O homem certo»
Tal como quase toda a gente, tenho poucas dúvidas sobre qual vai ser a prestação de Manuela Ferreira Leite como líder da oposição. O perfil com o qual chegou à direcção do seu partido não é o de alguém com um real poder de sedução, capaz de tiradas empolgantes, com quem seja possível estabelecer grandes empatias ou a quem se possa colar um sentimento de esperança. É antes o de «pessoa séria», com uma argumentação ponderada, que vive da reputação adquirida no tempo em que foi ministra e do cansaço da maioria dos cidadãos – incluindo-se nestes uma parte significativa dos militantes social-democratas – diante das figuras circenses que têm dirigido o partido. É também o de uma mulher que não vale perante a opinião pública pelo facto de o ser. Apesar das flores e dos beijinhos, não ganhou o PSD por usar saltos altos, mas sim pelo contrário: por dar a ideia de ser «o homem certo» em condições de arrumar os negócios de família. O que não deixa de ser uma desvantagem em termos de novidade e de capacidade de mobilização. E uma segurança adicional para Sócrates. Tudo muito previsível e très ennuyant, aqui por estes lados.
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Posfácio em forma de post-it
Apontamentos do Maio – adenda
Tinha decidido fechar a série de apontamentos sobre o Maio de 68. Terminara o mês da efeméride e toda a gente estava, e por certo continua, mais ou menos farta de tanta evocação. Mas porque só o pude fazer na noite passada, não quero deixar de referir o visionamento doméstico de Grands Soirs et Petits Matins (traduzido como Os Dias de Maio), o documentário de William Klein que me chegou há cerca de duas semanas com o exemplar do Público.
O filme não é, como eu descuidadamente pensara, uma simples montagem de fragmentos particularmente importantes da revolta estudantil e operária. Ainda que se reporte a episódios e a ambientes que tiveram lugar já na segunda parte do mês – quando a revolta transbordara dos ambientes estritamente estudantis e intelectuais, e o PCF considerara já que talvez pudesse resgatar em seu proveito o estardalhaço dos jovens radicais «pequeno-burgueses» – é muito mais que isso. Expõe diante dos nossos olhos um conjunto de testemunhos inequivocamente espontâneos, reveladores todos eles de um ambiente de intensa politização, e de questionamento do próprio conceito de revolução, que é tão rico quanto revelador. E um conflito de códigos e de valores observado em plena construção (impagável a sequência na qual um comité inteiro procura serenar telefonicamente a mãe que desconhecia há vários dias o paradeiro do seu filho rebelde).
Aquilo que mais me parece ressaltar deste documentário é, porém, a percepção de um «estado geral de exaltação» que apenas é possível captar em momentos revolucionários, com instantes densos, nos quais parece concentrar-se todo o destino da história, e também da vida, daqueles que o protagonizam. Não que o Maio de 68 tivesse constituído uma revolução – claro que o não foi. Mas, de uma certa forma, assistiu sem qualquer dúvida à materialização de uma série de questionamentos que confluíram, explodiram e foram verbalizados naquela precisa ocasião. E isso Grands Soirs et Petits Matins mostra-o muito bem.
No topo da minha leitura emerge ainda, como um símbolo, a personalidade cujo perfil eu julgava conhecer razoavelmente e que aqui, imersa na acção e na intensidade insone daquelas semanas, se me afigura de uma forma mais completa. Aquilo que Daniel Cohn-Bendit mostrou, o que o tornou então uma figura influente e de grande capacidade magnética, o que levou anfiteatros à pinha a ouvi-lo como a um semideus, foi sobretudo o seu discurso optimista e bravo, descomprometido, isento de clichés e profundamente irónico. Longe, a anos-luz, da seriedade rígida e do discurso previsível dos protagonistas («responsáveis», tal como se autodesignavam) da esquerda, ortodoxa ou radical, para quem, ontem como hoje, o humor jamais supera o nível do sarcasmo. No Cohn-Bendit «histórico» que este filme me revelou com um fulgor visual que não conhecia, impera o sentido da provocação, mas também o prazer e o riso, por vezes um júbilo que não carece de explicação. Como se sabe, categorias que embeberam particularmente a cultura juvenil universitária e urbana cujo processo de afirmação pontuava a época. Aquela que o adorava e estava na rua, em massa, durante as irrepetíveis movimentações parisienses do Maio-passado que aqui se evocou.
Pensar com os pés
Em tempo de «loucura do Europeu», torna-se quase imprescindível a leitura do Babelia deste sábado, que transporta consigo um energético dossiê sobre a cultura do futebol. Para abrir o apetite e acabar de vez com os preconceitos – ou então enjoar os mais fracos de estômago – proponho desde já o artigo introdutório de Vicente Verdú.
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O tal canal
Um bom exemplo do regionalismo no seu pior é-nos dado todos os dias por uma estação de televisão por cabo chamada Porto Canal. Ao acaso do zapping pós-prandial, tenho deparado ali com programas que, com raríssimas excepções, são de uma qualidade realmente deplorável (um bom exemplo é «Por um Canudo», provavelmente o pior programa de apanhados do hemisfério norte). Quase todos eles se esforçam por alimentar o penoso sentimento de inferioridade que muitos cidadãos do Porto experimentam em relação a Lisboa. Há dias, por exemplo, um debate entre quatro comentadores residentes com acentuado sotaque da Cedofeita tentava descodificar, com aparência de seriedade, a razão pela qual «as pessoas de Lisboa chamam habitualmente galegos» aos naturais da cidade (tratamento do qual, devo confessar, jamais tinha ouvido falar até esse momento). Num outro procurava provar-se que sendo «a percentagem» (sic) do rendimento per capita do Porto «metade da de Lisboa» (sic), deveria ser o Estado a restabelecer o equilíbrio. Ora tive hoje outro extraordinário exemplo daquele padrão de provincianismo: apesar de considerar diversas capitais europeias, o boletim meteorológico do Porto Canal apenas fornece previsões de temperatura e de pluviosidade relativos às cidades portuguesas que vão de Viana do Castelo a Aveiro.
Antes que alguém se impaciente desnecessariamente com este post, declaro desde já que gosto muito do Porto, onde aliás já morei por dois períodos. E que vivo numa cidade – que eu considerava do centro do país mas que afinal parece ser do sul – na qual a relação entre media e provincianismo é igualmente forte.
Perder a razão
Sempre insinuada nestas alturas, parece-me obtusa e petulante a fantasia de que quanto pior correrem as coisas à selecção portuguesa de futebol tanto melhor a nossa vida colectiva progredirá. Menos distraídos, passaremos então a interessar-nos pelos temas que realmente importam, como a leitura, a política, a produção de couve-lombarda e a ginástica rítmica. Mas não é por não colaborar nesse pranto inútil que diluo, em centenas horas de sofá a ver a Sport-TV, o sentido crítico que me esforço por manter.
A verdade é que, como muitos outros compatriotas, gosto tanto de futebol quanto sinto uma profunda aversão pelo meio em si. E também me aflige a obsessão mediática pela unha encravada do Cristiano, pela flatulência do Deco, pela Playsation do filho do Simão ou pela simpática e trabalhadeira prometida do jovem Rui Patrício. Incomodam-me, realmente, os «egrégios avós» berrados por pessoas que não sabem o que possa ser tal coisa. Mas não é por isso que deixo de saborear a arte em si, e que me recusarei a vibrar, espero, com as vitórias alpinas da nossa selecção. Ou deixarei de ficar bastante deprimido com uma eliminação precoce. Como o amor e o ódio, o gosto pelo futebol exige de nós a melhor dose possível de irracionalidade. E é aí que está o gozo todo.
«Ce n’est qu’un début!»
Apontamentos do Maio – 16
Neste Maio que se completa deixei por aqui algumas notas sobre esse outro Maio evocado. É provável que elas tenham projectado – foi essa, pelo menos, uma das intenções – uma certa recusa da perspectiva nostálgica e melancólica que a chamada periódica da data sempre comporta. Ainda assim, não terá sido possível evitar, neste meio e neste tempo que instigam a leitura apressada e oblíqua, a ideia de que se tratavam apenas de umas quantas efabulações de soixante-huitiard reincidente. Mas contra isso, batatas.
Reconheço, porém, a validade dessa outra nostalgia, positiva e construtora, da qual fala Svetlana Boym. Aquela que busca no passado um sopro, uma inspiração, um balanço para a interferência emocional do passado no presente. Uma capacidade exemplar, capaz, em circunstâncias completamente diversas, de invocar pelo exemplo o génio da mudança e da insubmissão. Ela fica por aqui, na companhia das canções de Dominique Grange, a soixante-huitiard (ela sim) assumida, acompanhadas do traço militante de Tardi, que a Casterman editou há pouco tempo. Chama-se o álbum 1968-2008… N’effacez Pas Nos Traces! «Não apaguem as nossas pegadas!» Pode lá haver melhor forma de fechar este balanço!?
Dominique Grange – Les Nouveaux Partisans
PLAY
Boomerang
Apontamentos do Maio – 15
De vez em quando colhemos frases. Muitas delas riscadas na areia, durando apenas o tempo de uma emoção, de um desejo ou de uma pequena rajada de vento. Outras parecem-nos escritas sobre a pedra: aparentemente únicas, esplêndidas, imperecíveis. Usei há muitos anos um pequeno caderno de capa de oleado negro para guardar algumas, que acreditava perpétuas e depois se mostraram desleais, fugidias. Ou insensatas. Agora acredito sobretudo em frases-boomerang. Que passam por nós, e se vão, e depois podem voltar. Únicas e incólumes, irrompendo de novo nas nossas vidas distraídas. Como esta, proclamada por Raoul Vaneigem, que retiro do Aviso aos alunos do básico e do secundário: «Não queremos ser os melhores, queremos que nos caiba o melhor da vida, segundo o princípio da inacessível perfeição que revoga a insatisfação em nome do insaciável.»
Resistir
Entra-me pela mailbox adentro um anúncio de um espectáculo que recomenda, subvertendo a velha frase, «Relax, don’t have a cigar». Acreditem os seus autores que produziu o efeito inverso. Uma bandeira da resistência ao higienismo dominante esvoaça desde há meses na janela do meu gabinete de trabalho. Sem a hipótese de ser trocada pelas ordens verde-rubras de mister Scolari ou do professor Marcelo. Ao menos aqui deixem-me em paz.
Sem ícones
Apontamentos do Maio – 14
Vi hoje à hora de almoço, por um acaso, a maior parte do documentário televisivo 1968. O Mundo em Revolta, de Michèle Dominici. Nada de particularmente novo, para além de mais uma revisitação à memória do tempo por parte de alguns dos seus mais conhecidos actores de ambos os lados do Atlântico (Cohn-Bendit, Robin Morgan, Tommie Smith, Felix Dennis, Alain Krivine, o argelino Nadir Boumaza e o irmão mais velho do estudante checo suicida Jan Palach). Todos eles, exceptuando naturalmente o último, pessoas que permanecem activas e que não entendem a sua experiência militante como simples desvario de uma juventude consumida em gestos equívocos (como o fazem alguns dos nossos ex-maoístas, por exemplo, que insistem em falar do seu próprio passado como de uma velha medalha oxidada).
Particularmente interessante, porque mais prospectivo, o testemunho de Krivine, na época figura central da Juventude Comunista Revolucionária, de orientação trotskista, e hoje dirigente da LCR. A um dado momento, refere um pormenor ao qual acaba por dar relevância: para ele, o Maio de 68 terá representado, talvez, um dos derradeiros momentos nos quais, no interior das democracias parlamentares do ocidente, se utilizaram fotografias de figuras associadas ao conceito de revolução socialista (Marx, Engels, Lenine, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Mao, Ho Chi Minh, Fidel, o Che, e outras) como ícones de um movimento de massas. De todas elas, apenas o Che permanece visível, e ainda assim, como se sabe, mais como uma insígnia do que como representação de um «guia para acção». Krivine conclui esta constatação conferindo-lhe uma dimensão positiva: olhando este desaparecimento como sinal contemporâneo de uma certa dessacralização da mitografia marxista e de um tempo de procura de uma nova ideia de transformação, capaz de dispensar a imagem ou mesmo a presença simbólica de guias admiráveis e inspiradores. Não deixa de ser uma percepção que vale a pena recolher.
O milagre de Lisboa
O noticiário da SIC acaba de adiantar como título de notícia, pela boca de Rodrigo Guedes de Carvalho, que «a chuva parou em Lisboa durante a procissão do Corpo de Deus». Ao mesmo tempo, as imagens mostravam o Cardeal-Patriarca, ataviado com vestes sumptuárias apropriadas ao momento, espalhando incenso ao desbarato – um produto, recorde-se, que provoca danos na saúde de quem o absorve – pelas ruas de uma urbe supostamente em festa. Como se esperava, ninguém deu vivas a Afonso Costa.
(Em Espanha o espectáculo não difere muito.)