Jogo viciado

Não é argumento que integre uma qualquer teoria da conspiração. É sabido como, na lógica do «quanto pior, melhor» que presidiu quase sempre ao relacionamento entre as principais potências mundiais durante a Guerra Fria, a União Soviética se relacionou muito melhor com os republicanos americanos (Nixon ou Reagan, por exemplo) do que com os democratas (Kennedy ou Johnson). Uma posição mais maleável da parte do Ocidente teria sempre, como inevitável corolário, uma diminuição do papel de contrapeso que os soviéticos então detinham no mundo. E não havia necessidade. Mutatis mutandis, há qualquer coisa nisto que evoca a forma como o actual governo da Rússia afronta neste momento pré-eleitoral a América, beneficiando, de uma forma óbvia, aqueles que dentro desta defendem mais abertamente uma política de agressão e de intransigência. Os republicanos, pois claro.

    Atualidade, História, Opinião

    Confusão ou talvez não

    «Se o inimigo deixa uma porta aberta, devemos precipitar-nos sobre ela», escreveu Sun Tzu. Como escreveu também: «Aquele que prepara a vitória sobre os seus inimigos triunfa antes que as ameaças destes se concretizem». Anotar analogias entre certas proposições de A Arte da Guerra e alguns dos princípios da boa gestão empresarial é coisa que entrou já no domínio da trivialidade. O que terá sido meio caminho para a sua inclusão, em listas de livros recomendados por certas revistas femininas, como a prenda ideal para o marido ou o namorado que se deseja homem de sucesso. Ainda assim, não deixa de me parecer um tanto extravagante a inserção deste título, numa loja da FNAC, na secção «Apoio a Gestores». Embora admita que sendo esta uma das leituras favoritas de Tony Soprano alguma razão assista a quem tomou a decisão.

    Sei que tem sido recorrente a referência neste blogue a certos padrões de arrumação seguidos em muitas livrarias. Pode parecer um capricho. Mas a razão desta preocupação é bem simples: ela não me parece derivar apenas da insciência das pessoas que gerem as lojas ou da distracção de alguns dos seus empregados, mas antes resultar de uma transferência deliberada dos critérios da disposição dos títulos dos livros dos seus conteúdos para aquela que será a «imagem social» dos mesmos. Aliás, também já dei por livros deslocados da sua secção natural por força da concepção da capa.

    Um episódio suplementar. Pelos inícios de 1976 estava à boleia numa das saídas do Porto, a caminho do sul, quando parou um carro de elevada cilindrada dirigido por um cavalheiro que se ofereceu para me levar e que durante a viagem se apresentou como «empresário da indústria do algodão». A revolução tinha chegado ao fim e, apesar da «democrática» boleia a desconhecidos ainda ter subsistido por mais alguns anos, pessoas como aquela podiam já dar largas ao ódio mortal por «esses comunas de m…» que tinham «dado cabo disto tudo». Foi esse o padrão de conversa que tive de aturar. No banco de trás do automóvel, um livro que o cidadão ia começar a ler e, segundo dizia, esperava pudesse ser para ele de grande utilidade: Como Iludir o Povo, de Lenine, numa edição da Centelha (da qual, por acaso, conservo um exemplar).

      Atualidade, Memória

      Pinhal

      Fui ver Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. Mas custa-me falar de um filme rodado naquela região indistinta que separa o litoral português da Beira interior. Porque nasci lá e, no fundo, também eu já fui um «rapaz do pinhal». O meu povo não são os operários das periferias e os trabalhadores do mar, as mulheres-a-dias e os imigrantes, os proletários dos campos, os vendedores de gelados e as rapariguinhas de shopping. Nem são os insubmissos urbanos ou as pessoas com vidas extremas, fodidas. Estes não cabem naquele universo ou neste filme. O meu povo é aquela massa híbrida de pobres remediados que picam o ponto mas possuem uns hectares de floresta, de jovens que jamais entrarão na universidade e vivem de ganchos, copos e engates pendurados pelos cafés, de pequenos funcionários que economizarão a vida inteira, de mulheres subjugadas pelo preconceito e pela maledicência, de emigrantes que estão e não estão mas voltam sempre no mês do calor, de idosas que fazem pela sombra o trajecto casa-igreja e volta. Pessoas que têm todo o tempo para se odiarem e para se aborrecerem. Elas são um outro «bom povo português», do qual quase ninguém fala mas fala Miguel Gomes. «Bom povo» para quem os carros dos bombeiros e uma noite de minis representam a epítome da aventura. E uma canção de amor pode ser a coisa mais séria do mundo. Pessoas como as deste filme, «entre a ficção e o documentário» ou lá o que for, que couberam na fantasia que lhes foi proposta sem saírem da vida delas. Se isto não é o povo, onde é que está o povo? Por isso vejo este filme digno e divertido apenas como um álbum de família com banda sonora. Por isso preciso ver de novo Aquele Querido Mês de Agosto, tão nacional quanto um Português Suave, para sair dele e voltar a entrar pelo lado da narrativa. E por isso sugiro que corram a vê-lo.

      PLAY

        Apontamentos, Cinema, Olhares

        O caso Barak

        O antiamericanismo congénito, como o anticomunismo primário, padecem de uma sintomatologia análoga: ambos se mostram expeditos a ripostar ao adversário quando o reconhecem sem margem para erro, mas têm grande dificuldade em reagir quando entre «bons» e «maus» se interpõe um discurso autónomo e complexo, que escapa aos lugares-comuns e à lógica maniqueísta que alimenta a falta de lucidez. Assim vejo – concordando no essencial com aquilo que, ontem no Público, escreveu Rui Tavares – o escorregar estonteado da parte da esquerda que diz que sim à óbvia diferença de Barak Obama e diz que não a conceder-lhe o benefício da dúvida. Com todas as reservas que deveremos manter em relação aos compromissos do candidato democrata e à lógica do sistema político americano, não duvido que estamos perante algo de substancialmente novo. Que não pode ser lido com os óculos do costume.

          Atualidade, Opinião

          Skógafoss

          Último dia antes da volta, e mais um dia a comer coisas que nem sei o que são mas geralmente sabem a peixe. Como a caminhada prevista e a excitação da novidade exigem alimento, é preciso fazer um esforço. Pão, sopa e frutos silvestres servem sempre de conchego.

          De manhã um salto até Borgartún com passagem pela casa Höfði, onde, em 1986, Reagan e Gorbatchov, apesar das divergências, puseram termo à Guerra Fria. O mais interessante não pude ver, pois foi guardado noutro local: talvez calculando erradamente que de futuro pouco serventia tais objectos iriam ter, os agentes do KGB deixaram no terreno cabos, microfones, câmaras, munições e alguns papéis.

          À tarde, tempo para ir mais longe, numa jornada pelas colinas em volta das quedas de água de Skógafoss, a 5 quilómetros da antiquíssima aldeia de Skógar. Terá sido este o lugar no qual os primeros vikings se sedentarizaram na ilha, e, claro, aqui as lendas multiplicam-se sem necessidade de prova. Prefiro caminhar um bom pedaço ao longo de toda esta solidão verde-negra, ouvindo apenas os meus passos e o rumor da água que se despenha. No ar uma humidade salgada que se sente na língua. Um odor intenso.

            Apontamentos, Olhares

            Som do silêncio

            Viagem curta de dez quilómetros até Hafnarfjörður, onde encontro o que me parece ser uma microcultura para turismo New Age feita da estilização e da banalização da elementos da cultura viking. Não me agrada e ando umas centenas de metros. Entro numa loja cheia de música do mundo, imprevisível neste fim do mundo. Da Islândia, muito pouco em stock, para além das bandas locais herdeiras dos filhos dos já distantes Sugarcubes. Agradou-me no entanto a capa de um CD que comprei sem escutar um só acorde. Horas depois, já no quarto do hotel, o minimalismo tristíssimo de Jóhann Jóhannsson recorda-me onde estou. Ou de como imagino o lugar onde estou.

              Música, Olhares

              13 minutos

              08H35. A ligação wireless do hotel jamais nos deixa sozinhos. Está-se aqui e em toda a parte.

              . A encenação dos democratas foi muito americana, naquilo que isso tem de bom e de mau. O discurso de Obama foi forte, comovente, elegante, brilhante, com propostas num tom de campanha que se não ouvia desde Roosevelt. Se forem concretizadas em vinte por cento – mais que isso será impossível –, o mundo e a América talvez fiquem um pouco melhores.

              . Os republicanos escolheram como candidata à vice-presidência uma ex-vice-Miss Alasca que se auto-define essencialmente como «esposa e mãe». Criacionista, militante antiaborto (inclusive em casos de rapto ou violação), opositora do sexo fora do casamento, caçadora praticante e defensora da liberalização do porte de armas. Após uma decisão destas, ainda é menos possível ser-se indiferente ao resultado das eleições americanas.

              . Numa outra ilha, em Cuba, o músico punk Gorki Águila foi de novo preso e uma pequena e pacífica manifestação pela sua libertação foi abafada com uma pesada carga da polícia. Dois detidos e alguns feridos. Entre estes a blogger Yoani Sánchez. Gorki não é apenas um crítico do sistema, é um seu adversário. Sim, e daí?

              08H48. E agora vou-me à realidade lá fora. Está um dia seco mas muito bonito.

                Etc.

                A norte com Ligeti

                Ir a um concerto com um programa composto apenas por obras de György Ligeti, um dos meus contemporâneos favoritos, era coisa que não julgava possível. Muito menos aqui, tão longe da Roménia ou de qualquer outro lugar. Mas foi o que me aconteceu hoje no Kjarvalsstöðum, uma espécie de casa da cultura da cidade de Reiquiavique. Searching for Ligeti propôs-nos quatro peças do compositor pelo Kammersveitin Ísafold. Sala cheia, ambiente tranquilo e uma tarde magnífica.

                  Música, Olhares

                  À noite

                  É tardia aqui, a noite. Mas chega sempre, como é próprio da noite. Voltei um pouco cansado. Sobre a pequena mesa do quarto um quadradinho de papel azul. Com letras em azul.

                  Dalabóndinn í óþurrknum

                  Hví svo þrúðgu þú
                  þokuhlassi
                  súldanorn
                  um sveitir ekur?
                  Þér man eg offra
                  til árbóta
                  kú og konu
                  og kristindómi.

                  Dizem-me ser um poema de Jónas Hallgrímsson. Que nos fala de como por um pouco de sol pode um homem sacrificar uma vaca, a sua esposa e a própria fé.

                    Devaneios, Olhares

                    O que eles querem (ou: o poder do amor)

                    Um exercício fácil e recorrente, praticado por muitos bloggers, consiste em procurar saber quais são as palavras ou frases que por mediação dos motores de busca fazem chegar até aos seus blogues pessoas que neles não entrariam de outra forma. Há já muito tempo que o não fazia, aqui n’A Terceira Noite. Eis pois o top-30 actualizado dos termos mais invocados desde o seu arranque.

                    amor – purga em angola – sexo – sexo oral – garganta funda – anos 60 – rui bebiano – gina lollobrigida – pornografia com crianças – pornografia – leitura – gianna maria canale – folclore regional – sofia loren – ciclopes – boletim meteorologico – colunex – vicio – rosalind franklin – pernas – che guevara – rabos – lindas – tango – mulheres vadias – kamasutra – puta – óculos para a noite – smoking – sapatos vermelhos

                    Apenas por esta amostra, temo que os futuros arqueólogos da blogosfera possam ficar com uma impressão um pouco estranha a meu respeito. Espero que após lerem este post procedam à crítica das fontes e reconheçam a minha idoneidade.

                      Etc., Oficina

                      Sem tabus

                      O Movimento Mérito e Sociedade, esse que «não é de esquerda, direita ou centro» e se pretende constituir como «um fantástico indutor de desenvolvimento equilibrado e sustentado de uma sociedade», acaba de propor medidas para combater a actual vaga de criminalidade que um conhecido penalista julga «inconstitucionais» e «bárbaras». Entre outras sugestões fáceis e demagógicas – como a de definir mecanismos processuais onde a vítima tenha uma palavra a dizer sobre a pena a aplicar ao arguido –, considera que as armas de fogo «não devem ser tabu na nossa sociedade» e precisam ser usadas pela polícia com maior frequência. Presumo que a valorização do mérito individual dos agentes da PSP passe, pois, por exercícios regulares de tiros ao alvo com fogo real. E que o MMS possa entender estas propostas como essencialmente técnicas e desprovidas de qualquer carga política, capazes de estimularem aquele que considera ser «o espírito de conquista e desembaraço dos portugueses». Um tiro para o ar e outro no pé, para começar.

                        Atualidade, Democracia

                        Esparta vs. Cocanha

                        Também eu um dia admirei Louis Antoine de Saint-Just (1767-94). Da Grande Revolução, pouco sabia. Mas entendia, das revoluções modernas, o suficiente para me manter convicto de que elas só poderiam vingar enquanto permanecessem nas mãos dos obstinados e dos que não cedem à compaixão. Aqueles para quem os princípios e os objectivos que norteiam a acção se destinam a impedir todo o retrocesso que não favoreça um novo assalto às posições do inimigo. Para quem, quando se combate pelo poder, apenas existe a vitória total ou a mais peremptória derrota: «Esse homem deve reinar ou morrer», proclamou o filho do capitão de cavalaria de Niévre quando votou na Convenção a favor da execução de Luís XVI, pois aquilo que constitui uma República «é a destruição total do que se lhe opõe».

                        Além do mais, Saint-Just era jovem e eloquente, lendariamente belo e teatral, e um exaltado, o que só poderia reforçar a cintilação que exibiu, apenas em dois anos de vida pública, numa época pouco propícia à segurança, à moderação e à prevalência dos valores do passado. E prometia um mundo novo, no qual o poder pudesse ser exercido pelo povo, os magistrados fossem desprovidos de orgulho, os cidadãos vivessem sem vícios, a fraternidade prevalecesse nos relacionamentos, o culto da virtude fosse um princípio, a simplicidade dos modos e a austeridade de carácter pautassem a vida social. O caminho para tal utopia seria, na sua opinião, aberto pelo Terror. Pelo apagamento violento e sem piedade daqueles que a entravavam.

                        Combatido pelos sectores moderados e traído por muito dos seus, morreu aos vinte e seis anos, sem direito a julgamento, na guilhotina que ajudara a erguer. Tendo, ao que dizem, ou seguindo a lenda, sido o único do grupo preso na manhã de 10 do Termidor a avançar sereno, a passo firme e em completo silêncio, para o cadafalso que o esperava.

                        Afirma-se que Danton terá dito certa vez, a seu respeito, não gostar nada «daquele extravagante» que pretendia implantar em França «uma República de Esparta» quando era de «uma República da Cocanha» que os franceses precisavam. O «anjo da Revolução», ou «da morte», ainda sobreviveu praticamente três meses a Danton, mas o combate entre os que se batem, na evidência de um indeclinável pathos, por arquétipos que situam acima do indivíduo e no campo das paixões, e aqueles outros que longe de quaisquer perigos, apelando a um previsível e racional logos, apenas preferem navegar por calmos rios de vinho e de leite, sobreviveu-lhes. Continua a ser ciclicamente renovado, ciclicamente alimentado. Jamais se entenderão, uns e outros. Jamais desaparecerão também.

                          Atualidade, História, Olhares

                          Fim de festa

                          Os Jogos de Pequim fecharam e, antes ainda dos balanços, é hora de repousar das emoções. A cerimónia de abertura trouxe um instante de frescura a contrastar com os últimos discursos dos engravatados e hirtos «poupas altas»(*): a entrada no relvado do gigantesco Ninho de Pássaro de Boris Johnson, o mayor conservador de Londres – conservador, repare-se – que se apresentou descontraído, de fato amarrotado e casaco sem os dois primeiros botões apertados(**), para receber com um gesto nada protocolar a bandeira olímpica que a sua cidade sustentará até 2012. Entretanto, na capital britânica, uma multidão preparada mas informal contrastava com as rígidas coreografias que qualquer cidadão atento terá notado terem sido mantidas, mesmo durante as provas, nas bancadas e nas ruas preenchidas com sempre risonhos e embandeirados chineses, que muitas vezes pareciam saber exactamente em que momento iam ser focalizados pelas câmaras. As democracias não são capazes de alardear tal perfeição nas exibições de capacidade de organização e mando, e essa é uma qualidade sua que devemos preservar.

                          (*) Como eram conhecidos, por parte significativa da população da antiga República Democrática Alemã – e até por agentes menores da STASI -, os altos dignitários do Partido e do Estado. Existia, em diversos edifícios oficiais, um serviço de cabeleireiro destinado a conservar a «rigidez de Estado» das cabeleiras dos dirigentes, ou, se possível, a disfarçar-lhes calvícies precoces. A petite histoire por vezes é muito útil.
                          (**) JCE ter-se-á revolvido no túmulo.

                            Atualidade, Opinião

                            Ainda sobre os comentários

                            Vai-me perdoar o Eduardo Pitta, mas um comentário negativo sobre a minha decisão de encerrar os comentários, vindo da parte de alguém que os não mantém no seu blogue, é coisa que não entendo muito bem. Já agora: quem ler com cuidado o meu anterior post sobre o assunto notará que a última discussão que nele teve lugar – a qual, apesar do equívoco gerado, até foi razoavelmente interessante e civilizada (sim, gosto da palavra) – não foi aquilo que determinou a minha decisão. A opção foi amadurecida, as causas foram explicadas e não quero, pelo menos por agora, ir mais longe. Aproveito para agradecer as mensagens de compreensão, uma dezena, de discordância, duas, ou de perplexidade, uma só, que entretanto tenho recebido. Bem como as referências, quase todas elas amáveis, que diversos blogues fizeram à minha escolha.

                            Minutos depois…: Eduardo Pitta juntou uma nota ao seu post que me levou a relê-lo com maior atenção. Tresli apressadamente aquilo que ele tinha escrito, e vejo agora que estamos de acordo no mais importante. Aqui fica a correcção do tiro e obrigado pelo esclarecimento.

                              Oficina

                              Spitting Leaders

                              [wpvideo OsJEaxS0 w=300]

                              Quatro dos mais notáveis déspotas de todos os tempos – Luís XIV, Hitler, Estaline e Franco – foram reunidos no conjunto público de estátuas-cuspideiras Spitting Leaders, da autoria do escultor madrileno Fernando Sánchez Castillo, que acaba de ser instalado na já nossa conhecida localidade galega de Caldas dos Reis. Carlos Jiménez, no Babelia, define-o como parte de uma estratégia colectiva proposta por um conjunto de artistas espanhóis que têm vindo a questionar o «imaginário residual do franquismo». Artistas que, elegendo como temas do seu trabalho os Balcãs, as Torres Gémeas, Guantánamo ou Francisco Franco, resistem «a ver a arte reduzida a um espectáculo de massas ou a vê-la confinada ao silêncio das salas». Para quem o ser humano «será o Homo ludens reivindicado por Johann Huizinga, mas nem por isso deixou de ser o Zoon politikón de Aristóteles». Este conjunto parece merecer uma visita. Particularmente aconselhável aos nossos autarcas que enchem praças e jardins de insossos mamarrachos.

                                História, Memória, Olhares

                                Marco

                                Terei sido dos primeiros a atirar uma pedra a Marco Fortes, o nosso lançador de peso que, após ter sido eliminado da sua prova olímpica com uma marca muito inferior a outras que já havia obtido, nos falou de como de manhã «está bem é na caminha». Ouvi a frase bem cedo – bem mais tarde em Pequim, como é sabido – enquanto seguia de carro, e pouco depois escrevia um post servindo-me dela. Porque me parecia a cereja no topo do estranho bolo cozinhado com todo um conjunto de desculpas esfarrapadas das quais se serviram diversos atletas portugueses. A frase propagou-se por diversas vias e, por causa dela, Marco viu-se expulso da comitiva, forçado a regressar a Portugal e crucificado por meio mundo.

                                Só depois disso ouvi entrevistas de Marco Fortes, anteriores e posteriores ao momento da tirada. Li algumas notícias e vi reportagens, percebendo que Marco é uma pessoa de origem humilde, a quem o atletismo tem servido como espaço de valorização social, e que utiliza com frequência o humor e a ironia como forma estar no seu mundo. Aquilo que disse, parece-me agora claro, pode ter sido uma forma de se desculpar, mas foi também uma forma de ironizar consigo próprio. Foi um pouco infeliz? Foi-o, sem dúvida, como o próprio atleta reconheceu pedindo que lhe perdoassem a gaffe. Mas quem nunca pronunciou uma frase infeliz? Peço desculpa a Marco Fortes pela leviandade. Há já três dias que apaguei o referido post e mesmo assim fiquei com alguns remorsos.

                                  Apontamentos, Atualidade