♪ Deixa-me rir

Jorge Palma

Jorge Palma escreve canções inesquecíveis. E é um belo poeta em qualquer parte do mundo. Agora que alguém diga, a propósito do lançamento de Voo Nocturno, o seu novo álbum de originais, que o músico «possui uma voz maravilhosa» – como ouvi hoje uma jornalista afirmar – é pior que mencionar Tom Waits qualificando o seu timbre vocal como aveludado. E será, creio, uma ofensa feita ao trovador JP da voz nenhuma. Pior mesmo só proclamar à urbe e à orbe que o maldito bufão «canta e encanta». O que também já tive a oportunidade de ler.

    Cinema, Música

    Uma lição de João

    Fotografia: Dulce Fernandes e Público

    Originalmente em Caminhos da Memória

    Morreu ontem João Martins Pereira. Na Primavera de 1971 comprei um livro seu, Pensar Portugal hoje – publicado pela Dom Quixote em plena «abertura marcelista» -, no qual, entre outros temas urgentes, se abordava já, pela primeira vez de forma explícita e de um ponto de vista reflexivo, o carácter subversivo da mudança de costumes que Portugal se encontrava então aceleradamente a viver. Essa mesma que ainda hoje permanece algo subavaliada por alguns historiadores, em detrimento da ênfase dada a uma mudança política efectiva mas mais lenta e epidérmica. Recorro a um sublinhado meu datado daquele ano:

    «A passagem da rigidez quase total à flexibilidade quase total (…), eis mais uma aprendizagem em que se inicia a classe dominante entre nós. Foi já duro o caminho que a levou dos tempos (não tão recuados) em que nas nossas praias não se podia ver um tronco masculino ao léu (…) até àqueles mais próximos em que os pacatos burgueses saborearam sem pestanejar a fustigação das costas de Romy no filme A Piscina. Aliás (…) no campo dos “costumes” terá tido uma influência decisiva a intensificação dos movimentos de pessoas nos dois sentidos: o turismo estrangeiro em Portugal e as deslocações cada vez mais frequentes de portugueses ao estrangeiro (bolsas, turismo universitário, turismo tout court, a própria emigração). Os portadores da “moral tradicional” viram-se totalmente ultrapassados, e terão talvez ficado surpreendidos que não tenham sido plateias uivantes e babando-se de lascívia as que assistiram aos primeiros nus nos nossos ecrãs. Nada disso: o melhor da nossa burguesia (e não só a intelectual) já estava muito mais «avançada» do que supunham – mesmo a que saía do Blow Up para se encafuar na missa das 7 mais próxima.»

    João Martins Pereira viria anos depois a ser secretário de Estado da Indústria do 4º Governo provisório, acompanhando o ministro João Cravinho e colaborando na complexa gestão das nacionalizações. Viria a demitir-se em divergência com a política do governo e a incapacidade deste para responder a uma crise económica cujos resultados, nessa altura de grandes esperanças mas de vacas bem magras, a maioria dos portugueses sentia na pele.

    Publicou também O socialismo, a transição e o caso português (ensaio sobre o capitalismo em Portugal), Indústria, ideologia e quotidiano, Para a História da indústria em Portugal, ou, em co-autoria, À esquerda do possível. Um tanto esquecido, por razões que não será demasiado difícil compreender, um outro título que constitui uma das mais corajosas, mas também mais solitárias, reflexões políticas a contracorrente produzidas nesses anos de chumbo que iriam desembocar no espectro messiânico do primeiro cavaquismo. Refiro-me a No reino dos falsos avestruzes (um olhar sobre a política), editado em 1983, um livro onde se procuram desmontar alguns mitos que estavam na época em pleno processo de fabrico: o da sacrossanta «iniciativa privada», o do diabólico «gonçalvismo», o da salvífica CEE ou o do «desejado» Ramalho Eanes. E onde se procurava também repensar o papel da esquerda no meio de tal selva pós-revolucionária. Volto a destacar um sublinhado já gasto pelo tempo mas que ainda poderá iluminar certas consciências desamparadas:

    «A banalização do adjectivo “utópico” num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha. (…) A Esquerda será sempre um “campo de tensão”, a tensão do inventor antes da invenção, do descobridor antes da descoberta, do poeta antes do poema – enfim, do criador antes da criação. É esse “antes” que necessariamente gera a tensão: a Esquerda sabe que nunca chegará à sociedade perfeita, um pouco como Zenão no paradoxo da tartaruga.»

    Poucas pessoas terão produzido tantos, tão originais e tão anti-dogmáticos contributos para uma reflexão da esquerda portuguesa sobre o mundo e sobre si própria. A partir de Sartre, ponto de partida de tantos dos da sua geração, João Martins Pereira laborou, como lembra Francisco Louçã no combate.info, num «marxismo heterodoxo, culto, informado de toda a dissidência e da radicalidade revolucionária do pensamento socialista». Terá até, mais recentemente, ido bem para além deste. Foi ainda, como é de calcular, uma pessoa de causas, ainda que mal aclimatado a militâncias redutoras da liberdade do indivíduo e da capacidade para pensar sempre o impossível desejável. Quem o conheceu diz que era também um homem decente.

    Um radical e um utopista, sem dúvida. Ouçamo-lo ainda no Reino: «Todos nós sonhámos com a bela noite em que partiríamos com a trupe do circo ambulante. On the road… Miúdos, vivíamos na pele dos pequenos acrobatas nos seus maillots luzidios. Adolescentes, imaginávamos a louca aventura com a bela trapezista (…). O circo deu-nos a primeira ideia de liberdade sem limites e por isso mesmo os ajuizados regressos a a casa em cada noite de circo terão sido das nossas primeiras sensações de derrota (…). O circo colocou-nos o primeiro desafio à ordem estabelecida». Defendendo, a partir daqui, uma dimensão criadora da marginalidade que não é recusa ou exclusão, mas atracção pelo lado lúdico da existência e de crítica ao sistema que a todo o instante procura cerceá-lo, concluirá que «os marginais são apenas uma minoria dos oprimidos – e só em conjunto todos se libertarão».

    Viver pensando e aceitando esta magnífica possibilidade parece ser uma bela forma de ser-se solidário com os outros e de viver a própria vida. Uma lição de João.

    [uma adenda aqui]

      Apontamentos, Memória, Opinião

      Cuba aguarda

      Cuba Si

      Um dos temas mais persistentes e difíceis que tem marcado o imaginário da esquerda ocidental nos últimos cinquenta anos refere-se à memória e às representações da revolução cubana. Persistente porque o seu impacto irrompeu de forma fulgurante com a vitória dos guerrilheiros barbudos na noite de S. Silvestre do ano de 1959, prosseguindo com a construção de um poder de tipo novo, comandado por líderes juvenis cujo perfil informal e único impôs uma capacidade universal de atracção, e reanimando-se, após o desaparecimento da União Soviética, como derradeiro «farol do socialismo». Difícil porque o carácter marcantemente sedutor de la Revolución levou a que, em nome de um passado pessoal que impôs convicções para a vida inteira, ou por verem na experiência cubana uma retaguarda de certezas que não encontravam mais noutro lugar, pessoas de diferentes gerações foram fechando os olhos a uma leitura crítica da evolução do regime castrista e à sua gradual transformação num poder autoritário e imobilista. Ao mesmo tempo, a fantasia de um «romantismo tropical», de início apoiado numa mitografia revolucionária luminosa mas hoje essencialmente sustentado pelo ramerrão da propaganda e por uma indústria de turismo vocacionada para a classe média europeia, tem embelezado a realidade difícil e opressiva. A verdade é que até muitas das pessoas que criticam sem hesitação a dimensão burocrática e repressiva do modelo soviético de «construção do socialismo» continuam a resistir a equipará-lo à experiência cubana, desculpabilizando-a e insistindo no seu carácter comparativamente «benévolo» e na sua «diferença»: a imagem que dela conservam permanece no santo dos santos do seu sistema de referências e custa-lhes muito retirá-la de lá.

      É desta ambiguidade transgeracional que partiu a concepção do álbum de banda desenhada CUBA Père et Fils, da autoria de Pierre e Jacques Ferrandez e recentemente editado pela Casterman. Os dois desenhadores, pai e filho, visitaram Cuba por diversas vezes ao longo dos últimos anos, tendo sido a partir da sua experiência prolongada que conceberam esta obra situada entre a ficção e a reportagem e dividida em duas partes complementares. A primeira comporta uma narrativa clássica: dois cubanos, um mais velho, Luis, nostálgico defensor da «sua» Revolução, que retorna à sua ilha e ao seu passado, o outro mais novo, o seu filho Ronaldo, descrente e ávido de um mundo distante do qual apenas conhece a superfície, deambulam pela ilha enquanto vão confrontando sensibilidades e pontos de vista que ora se separam ora se aproximam. Já a segunda parte recupera os cadernos de viagem escritos e ilustrados durante as suas estadias pelos dois autores, transformando-os num conjunto de artigos que circunstanciam, prolongam e em alguns momentos esclarecem a ficção inicial. Ambas as secções insistem, porém, na complexidade de uma sociedade, distribuída por três gerações, que permanece ainda sob a tutela daqueles que falam em nome da primeira delas. «Não é possível reduzir Cuba a duas gerações», explica Jacques Ferrandez no prefácio. «Há a primeira, a dos históricos da revolução. Logo de seguida vêem os seus filhos, todos eles educados para se tornarem comunistas e revolucionários perfeitos, mas hoje mergulhados na dúvida e na desilusão. E, por fim, chega a terceira geração, composta por jovens frequentemente indiferentes que não aspiram senão a viver, e que, em muitos casos, têm a consciência de Cuba se haver transformado no bordel do Ocidente.»

      A duplicidade domina o ambiente que os dois desenhadores encontraram. Durante uma das viagens, contam como um piloto de helicóptero, antigo oficial da força aérea, lhes explicava a dado momento que «Cuba é a terra da revolução e um país formidável», para logo depois lhes confessar o oposto: «Isto é tudo uma merda. Nada disto é verdadeiro.» Quem visite hoje Cuba caminhando um pouco por sua conta e risco, de olhar desperto e sem a cegueira imposta pelos pressupostos ideológicos, traz sempre consigo dezenas de episódios análogos para contar. Conscientes dessa distância entre a realidade e a propaganda, os autores procuraram, de facto, desconstruir o velho mito cubano. Mas reconhecendo, ao mesmo tempo, a dimensão simultaneamente objectiva e utópica das circunstâncias e das expectativas que o produziram. E captando também a presença, ainda mais perceptível após a investidura de Raúl Castro em Fevereiro de 2008, de um vento de mudança que se perfila no horizonte dos onze milhões de ilhéus: «os cubanos aguardam e a esperança parece estar em vias de reflorir em Cuba». Paradoxalmente, se tomarmos em consideração a sua história recente, o vizinho americano poderá dar uma pequena ajuda.

        Atualidade, Memória

        Traumas

        Mary Poppins

        Um pesado momento traumático ocorreu quando deparei com uma fotografia de Julie Andrews – responsável por continuadas tentativas de imbecilização das quais fui alvo durante a pré-adolescência, e que imaginara um ser angélico e assexuado – apresentando-se à sociedade, creio que no filme S.O.B., com uma desafiadora caixa torácica devidamente ao léu. Um outro, que terá perturbado uma geração mais recente, relaciona-se com as transformações plásticas de Ana Malhoa, a saudosa animadora das tardes de domingo do Buéréré. Outro ainda, que poderá afectar negativamente milhares de crianças, acaba entretanto de ocorrer: numa capa da Caras, reproduzida no blogue melancómico, deparei com a cidadã portuguesa Luciana Abreu, que deu corpo na televisão à assombrosa Floribella, a princesa das meninas-totós, revelando-se a quem a queira ouvir «uma mulher ousada e sensual». Não há direito. O Ministério da Educação, a Conferência Episcopal e o Doutor César das Neves deveriam tomar uma posição pública contra isto.

        Adenda – Encontrei entretanto uma evocação de Andrews na qual um leitor documenta o supra-citado efeito. Transcrevo: «(…) Quero agradecer a Deus o privilégio de ter conhecido Julie Andrews através de seu filme mais famoso “The Sound of Music” ou a “A Noviça Rebelde” em português [“Música no Coração” em Portugal]. Sua atuação é maravilhosa e terminou por marcar minha vida para sempre pela sua meiguice e talento invejável. O primeiro filme que assisti com Julie Andrews foi Mary Poppins que marcou minha infância.» Assim está bem, não há problema.

          Devaneios, Olhares

          Chove em Havana

          Havana

          Porque há já alguns dias não passava pelo Generación Y, também não tinha lido o artigo de Yoani Sánchez sobre a curiosidade e as expectativas cubanas – dos cubanos comuns, pessoas da rua que vivem apenas vivem a sua vida – a propósito das eleições americanas. Um excesso de tédio produzido por dois presidentes em cinquenta anos e uma América física e culturalmente muito próxima, aguçaram o interesse e levaram até a tomadas de posição por um ou por outro dos candidatos. Com expectativas que se prendem com o futuro de Cuba, naturalmente. No ar, a sombra de uma democracia em diferido e uma vontade de que tudo mude para melhor, pois para pior já basta assim. Com a esperança de que, também aqui, a América se possa comportar agora de uma forma menos obtusa e brutal, deixando de fornecer argumentos a quem, ali mesmo, continua a defender-se com garras e dentes de uma mudança sempre adiada mas cada vez mais inevitável.

            Atualidade, Olhares

            Crise de personalidade

            Bond, James Bond

            Estou chocado. Continuo a ser um bondiano convicto e a reconhecer que Daniel Craig, natural do condado de Cheshire, é o segundo melhor e mais convincente Agente 007, logo depois do escocês Sean Connery e imediatamente antes do irlandês Pierce Brosnan. Mas, como escreveu Pedro Correia, em Quantum of Solace um James Bond improvável, nada cínico, politicamente correcto, de roupa suja e enxovalhada, quase desligado do sexo e do álcool, é, apesar da orgia de tiros, explosões, socos e pontapés, e de mais duas harmoniosas bond girls a juntar à colecção, um ser um pouco entediante e sem o charme discreto da sacanice que o acompanhou no passado. Sinto-me enganado. Quero de volta o meu herói-vilão da Guerra Fria.

              Cinema, Olhares

              Professores

              Aula

              É abusiva a atitude dos partidos, dos sindicatos e de outras entidades colectivas quando declaram falar em nome «da classe operária», «dos trabalhadores», «dos portugueses», «das mulheres», «dos jovens» ou «dos magarefes». A diferença de interesses e de atitudes, tão imprescindível quanto inevitável nas sociedades democráticas e complexas, condiciona a dificuldade de falar em nome de um todo que é necessariamente múltiplo e contraditório. Mas aqueles que exprimiram publicamente os objectivos comuns da grande manifestação dos professores que decorreu este sábado têm alguma legitimidade para o fazerem, uma vez que a dimensão do movimento tornou inequívoca a convergência da esmagadora maioria numa oposição bem clara às linhas centrais da política educativa do governo. Por isso a posição arrogante e autista da direcção do PS se torna ainda mais chocante e incompreensível. Por isso se pode dizer que os professores, quase todos os professores do ensino básico e secundário – os do superior, e contra mim falo também, permanecem incompreensivelmente passivos –, estão em luta e querem que alguma coisa mude. Ou pelo menos que a sua experiência e os seus pontos de vista não sejam ignorados.

                Atualidade, Opinião

                Entre Franco e Almodóvar

                Por Espanha

                Versão de uma nota de leitura publicada na LER de Outubro

                Vinte e cinco anos durou o pacto del olvido, definido sem signatários, que fez com que o franquismo e a Guerra Civil fossem empurrados para dentro dos armários. Ao contrário do que aconteceu no Chile, na África do Sul ou na Argentina, em Espanha não se fizeram inquéritos, não existiram comissões da verdade, nem se procurou organizar a reconciliação. Os mecanismos repressivos não foram denunciados nem os seus responsáveis punidos, como aconteceu, ainda que de forma diferenciada, em Portugal, na Alemanha Oriental e na República Checa. Em larga medida, foram até alguns homens que haviam sido da confiança de Francisco Franco que decidiram, projectaram e controlaram a transição para a democracia. O preço a pagar por esta «paz podre» foi um silêncio que fez com que o corte com o passado tivesse sido mais aparente que real.

                Giles Tremlett é jornalista e correspondente do Guardian em Madrid, onde vive há mais de vinte anos. O objectivo que traçou para este livro ambicioso foi o de apurar até que ponto o presente de um grande número de espanhóis se encontra ainda contaminado por fantasmas e ressentimentos impressos na consciência individual e na memória colectiva. Mas também o de constatar de que forma eles se têm esforçado para porem termo à amnésia generalizada, encarando-a de frente. Concebido como uma reportagem autónoma, cada capítulo avança por diferentes tempos, assuntos e problemas. Após uma importante introdução, na qual aborda o actual esforço de entendimento do passado, traduzido na aprovação da «lei da memória histórica», ocupa-se de assuntos tão diversos como as consequências da Guerra Civil e o peso da figura de Franco, a complexa trama do processo de transição para a democracia, as sequelas da explosão do turismo de massas na costa mediterrânica, a projecção cultural e social do flamenco, o papel da indústria do sexo e do mundo do futebol, o embate do terrorismo pós-11 de Março, os caminhos do feminismo em terra de machos, o impacto das ideias separatistas na Catalunha, na Galiza e no País Basco. No final, um capítulo sobre a «identidade espanhola» recorre a Pedro Almodóvar para enunciar um processo emergente de superação da velha Espanha franquista, substituída por um mundo exuberante e descomprometido que atribui escassa importância aos sinais do passado. Em todas as áreas, uma modernidade agressiva cruza as marcas do tempo, revelando uma sociedade complexa, que tanto se orgulha da sua própria história como é capaz de conviver bastante mal com o fardo que a anterior geração lhe deixou de herança. Os recentes desenvolvimentos em redor da releitura dos crimes da Guerra Civil confirmam a permanência desse clima de ambiguidade.

                Giles Tremlett, Fantasmas de Espanha. Viagens pelo Presente Escondido de um País. Tradução de Maria Mendes. Alêtheia Editores, 572 p. ISBN: 978-989-622-107-2.

                  Atualidade, História, Memória

                  Um herói demasiado humano

                  B.O.

                  Cada época, cada desígnio colectivo, espera sempre pelos seus heróis, que dão um rosto a identidades, a ideias, a projectos. Ou então procura no passado heróis cuja representação os legitime. Eles são os pioneiros, os combatentes, os guias, devotados a causas que parecem transcender a sua própria humanidade. São seres extraordinários, sim, mas são também necessariamente humanos, e por isso deuses e monstros não podem ser heróis. Têm apenas algumas coisas a mais que os seus semelhantes: mais coragem, maior resistência, uma tenacidade fora do comum, talvez um sangue-frio acima da média. Mesmo quando essas qualidades não são consensualmente reconhecidas. Afinal, mesmo o anti-herói é apenas um herói deslocado no tempo, fora do lugar adequado, que age a contracorrente. Têm também qualquer coisa de sábios e de santos. E apesar de se afirmarem por vezes com alguma exuberância, são essencialmente solitários, uma vez que a sua missão singular exige um lugar à parte. Herói algum leva uma vida análoga à do comum dos mortais, misturando-se com eles, pois é o isolamento que enfatiza a sua dimensão exemplar.

                  Bem sei que Demóstenes já se queixava de algo de parecido a propósito dos «homens honrados» – apesar de ter acabado por se deixar corromper por um ministro de Alexandre –, mas na época em que vivemos é raro encontrar heróis vivos. Existe até uma tendência, em parte estimulada pelo enorme poder dos média, para a banalização do heroísmo, transformando-se seres por vezes medíocres, ou com uma vida banal, em modelos a copiar. Por isso, e também porque está na nossa matriz a tendência para esperar alguém que fale por nós mas melhor que nós, que melhore o mundo como jamais o conseguiríamos fazer, que pareça infalível como nós nunca seremos, se torna tão fácil vislumbrar no primeiro vulto heróico que apareça o sinal de uma nova redenção. É aquilo que parece ocorrer com o ser aparentemente perfeito que responde pelo nome de Barack Obama. O problema é que é suposto, no combate que trava por um supremo bem, o herói jamais defraudar expectativas, e isso o próximo presidente dos Estados Unidos da América não conseguirá deixar de fazer. A primeira prova de fogo para a preservação do seu estatuto heróico acontecerá, pois, quando desfeito o sortilégio ele se tornar demasiado humano e revelar as imperfeições. O que acontecerá em breve.

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Frases que ficam

                    Esta ouvi-a há minutos, enquanto tomava o café do meio da manhã: «O português tem a mania de que as coisas que acontecem são também não sei quê.» O gatofedorentismo possui uma importante base social de apoio.

                      Etc.

                      Dê lá por onde der

                      Foice e Martelo

                      Perturbados com um acontecimento cujo sentido e complexidade escapam aos seus esquemas mentais elementares, os fiéis seguidores da esquerda mais imobilista e ortodoxa andam já a fazer o que podem para desconsiderarem, junto de quem ainda os escuta, o movimento de esperança construído em redor da vitória eleitoral de Barack Obama. Sem vislumbrarem nele ponta de valor ou de interesse. Sem perceberem os combates de décadas que o precederam e aquilo que dentro dos seus limites ele poderá trazer de novo. Olhando-o apenas como poeira mediática atirada para os olhos «da classe operária e do povo». Para tais mentes, bloqueadas perante as inesperadas reviravoltas da história, o Grande Satã precisa continuar a ser o Grande Satã. Seja como for, dê lá por onde der. Sem qualquer remissão possível. E quanto pior ele se mostrar, melhor será para «a luta» que travam cada vez mais sozinhos. De outra forma, sem capacidade para proporem um modelo de sociedade alternativo ao do capitalismo que não seja o já testado nas experiências defuntas ou moribundas do «socialismo real», contra que inimigo continuariam a avançar, em passo cadenciado, transportando os velhos símbolos da sua antiga fé?

                      Adenda: Afinal havia outros?

                        Atualidade, Memória, Opinião

                        Do bem e do mal

                        Hegemonia do bem

                        Após ter lido na Visão uma declaração lamentável de José Mário Branco – músico que respeito e admiro sempre que não fala do seu programa oitocentista de regeneração da humanidade – qualificando Obama, na linha de um texto de Noam Chomsky que cita, como um mero «bandido bom», potencialmente mais perigoso do que esse «bandido mau» que não engana, chega-me às mãos um texto de Boaventura de Sousa Santos que aponta num sentido diferente, naturalmente menos simplista. Conhecendo-se as posições de BSS, nada suspeitas de simpatias para com os caminhos e as propostas da política americana mainstream, e reconhecendo-se a pertinência das dúvidas que mantém – o título do artigo define aliás uma interrogação: «A hegemonia do bem?» –, ganham particular significado as palavras das quais se serve: «Obama tem esse privilégio de oferecer ao mundo inteiro um momento glorioso de hegemonia do bem. Só por isso ficará na história.» O artigo completo pode ser lido aqui.

                          Etc.

                          Por um fósforo

                          Republicanos

                          Um órgão da justiça espanhola que responde pelo respeitável nome de Plenário da Sala do Penal da Audiência Nacional acaba de confirmar, por dez votos contra seis, a condenação de Jaume Roura e de  Enric Stern, dois jovens republicanos catalães, ao pagamento de uma multa de 2.700 euros por há cerca de um ano atrás terem queimado uma fotografia dos reis. Comentando no diário Público a notícia, um leitor escreve o seguinte: «Me surge una duda que me inquieta: acabo de quemar el libro de Pilar Urbano sobre la Reina. En él aparecen al menos 100 fotografías de Doña Sofía. Mi pregunta es: ¿seré condenado a pagar 2700 € por el pack incendiario de 100 fotos, o son 2700 por cada foto? Agradeceré una respuesta, mi futuro depende de ello.» As normas arbitrárias impostas por uma justiça deslocada do seu tempo – uma justiça que ainda não sabe lidar com uma liberdade de expressão que hoje pode comportar a crítica radical de pessoas públicas – sujeitam-se a este tipo de exposição ao ridículo.

                            Apontamentos

                            Obamamania

                            Obama

                            Ainda na ressaca da eleição de Obama, preparemo-nos agora para uma obamamania. O mote foi dado em Julho de 2008, quando do discurso de Berlim, com toda aquela enorme multidão de alemães reunida para ver, tocar, fotografar, ovacionar o candidato democrata. Com a projecção mediática que vai agora passar a ter, crescerá rapidamente o número de europeus seduzido pela sua mensagem poética que mais nenhum político utiliza, pelo discurso quase sem os clichés habituais, ritmado e no timbre certo, pela elegância nos antípodas da postura do trangalhadanças texano, pela cultura cosmopolita revelada na dose adequada, pelo sorriso franco no momento certo. A maioria das mulheres de todas as idades com quem tenho falado do tema já se encontram rendidas e referem-se a Barack como «aquele homem lindo». «Te quiero mucho», gritava-lhe em castelhano, durante o discurso de aceitação proferido em Chicago, uma descaradona hispânica. A Europa não tem um líder assim e se calhar faz-lhe falta. Um líder que não fale apenas no politiquês habitual e que seja capaz de atrair paixões. Que saiba seduzir pois toda a gente gosta de ser seduzida. Claro que isso não chega para afirmar uma mensagem e marcar um rumo, mas ajuda bastante.

                              Atualidade, Olhares