Salónica: uma cidade e o seu labirinto

Salónica

Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

Até 1909, o ano da fundação de Tel Aviv, Salónica era a única cidade do mundo na qual a principal língua utilizada era de matriz judaica. Por essa altura, a maioria da população falava ainda o ladino, ali estabelecido nos inícios do século XVI com a diáspora sefardita, mas viviam-se os últimos tempos de um espaço policromo, no qual cristãos, muçulmanos e judeus tinham podido conviver na diferença, apesar dos conflitos pontuais e das situações de desigualdade perante a lei otomana. É verdade que ela se parecia mais com uma justaposição de pequenas aldeias, nas quais turcos, judeus, gregos, búlgaros, albaneses, ocidentais e ciganos preservavam os seus territórios, mas nada de semelhante podia ser observado em qualquer outra grande cidade. Mark Mazower, especialista em história da Grécia e dos Balcãs, traça em Salónica – Cidade de Fantasmas o seu percurso único e fascinante, prestando uma particular atenção ao longo lapso de tempo que começou em 1430, com a tomada da cidade ao poderio bizantino-veneziano pelo sultão Murad II, e encerrou já em pleno século XX com a reinstalação, em território turco, dos últimos membros da comunidade muçulmana que nela haviam permanecido após a sua conquista pelos gregos. Durante todos esses anos, foi traçado um percurso sinuoso e complexo que Mazower descreve com uma profusão de informações capazes de trazerem à vida um passado do qual já quase não restam hoje vestígios materiais.

O epíteto de «cidade dos fantasmas» diz essencialmente respeito ao total desaparecimento, ocorrido já no último século, de duas daquelas comunidades. O primeiro teve lugar imediatamente após o fim da dependência da cidade do estado turco, com a evacuação forçada da maior parte da população de origem muçulmana. O segundo, particularmente rápido e brutal, aconteceu em 1943, quando os ocupantes nazis enviaram para Auschwitz cerca de 50.000 salonicenses, dos quais apenas dez por cento viriam a sobreviver. Para além do enorme impacto humano no mapa da cidade, este facto ficou ainda associado à responsabilidade de numerosos cristãos gregos na repressão anti-semita que facilitou o trabalho dos ocupantes alemães. Alguns críticos consideram, aliás, que nesta obra o historiador menosprezou conscientemente a importância desse episódio vergonhoso da história contemporânea da Grécia.

Salónica oferece uma leitura apaixonante, por intermédio da qual a evocação do passado, ali extremamente bem documentada e apresentada de forma consistente, confirma o trajecto único de uma cidade que não possuindo hoje o fascínio e o património monumental da rival Istambul, nem por isso deixa de simbolizar um reencontro que a história recente dos Balcãs tornou particularmente exemplar e perturbante.

Mark Mazower, Salónica. Cidade de Fantasmas. Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950. Tradução de José Pinto Sá. Pedra da Lua, 576 págs. ISBN: 978-989-8142-10-8.

    Cidades, História, Memória

    Sud-Express

    Hendaya

    Fazer uma viagem, uma única viagem noctívaga e invernal, no Sud-Express, foi experiência rara, agarrada para sempre à pele e à memória. Esqueci os rostos, esqueci, mas rememoro os olhares dos velhos de trinta anos que olhavam tristes sob uma luz amarela e baça e fotografias coloridas à mão do Palace-Hotel do Buçaco. E, mais ainda que esses olhares, aquele cheiro doce e ácido, ao mofo profundo das cestas de vime, da cerveja choca derramada, das sandes de chouriço vermelho embrulhadas pelas mães, da roupa de domingo suja e amarfanhada, dos pés suados em peúgas tricolores. «Preconceito de classe», diria Victor. «Um quadro neo-realista» ensaiaria José. Com a marca profunda do que era, no pequeno país là-bas, a miséria mais indeclinável e verdadeira.

      Memória, Olhares

      Culpa e traição

      Culpa

      Em O Remorso do Homem Branco, de 1983, Pascal Bruckner combatia o masoquismo autoculpabilizador que após a Segunda Guerra Mundial tendeu a imputar à Europa e à América a responsabilidade por todos os males da História, opondo um Sul essencialmente radioso, habitado por belas pombas, a um Norte sempre agressivo, povoado de sanguinários chacais. Ali se propunha um encontro do Ocidente com o «Outro» que não dependesse da renegação da memória e dos seus valores. Em 2006, com O Complexo de Culpa no Ocidente, retomou o tema sob uma perspectiva um pouco diferente mas ainda mais controversa.

      Agora a análise do sentimento de culpa é acompanhada pela prescrição de um tratamento. A tarefa proposta pelo autor francês consiste em «reconciliar a Europa com a História e os Estados Unidos com o mundo», ensinando à primeira «que não se ganham batalhas só com as armas do compromisso e do encantamento» e aos segundos «que não estão sozinhos na Terra». Tal implica a crítica de uma certa apatia política da Europa, sugerindo a possibilidade desta intervir sem complexos na transformação do mundo. Propõe-se assim «inverter a nossa relação com o passado», trocando o lamento pela convicção, a passividade pela força. Bruckner, um antigo «soixante-huitiard», apoiou em palavras e actos a eleição de Sarkozy: lendo este livro perigoso percebe-se melhor a sua traição.

        Atualidade

        Vozes do silêncio

        Slavenka Drakulic

        Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor foi escrito durante o ano de 1991, numa altura em que o volume de estudos, de memórias e de reportagens sobre a Europa de Leste crescia muito rapidamente, com um crescente público de leitores à procura de um universo que lhe era desconhecido ou que fantasiara. Resultado da experiência pessoal, familiar e profissional da autora – Slavenka Drakulic é uma jornalista croata que antes e após o início da fragmentação da Jugoslávia teve a oportunidade rara de visitar diferentes países de ambos os lados da «Cortina de Ferro» – nele se descrevem aspectos de um quotidiano com muitas características partilhadas na generalidade dos países que viveram a experiência do «socialismo real», questionando-se ao mesmo tempo, a partir do interior, a afirmação de um modelo que se autodefinia como triunfante. Ao mesmo tempo, nos 19 ensaios aqui reunidos, fá-lo a partir de uma perspectiva feminista, singular e relevante quando se sabe que o feminismo era praticamente inexistente naquele universo, e que as vozes femininas eram ali geralmente subordinadas a um discurso colectivista que excluía a sua representação autónoma.

        Drakulic assevera, a dado passo, que quem tenha crescido na Europa de Leste aprendeu desde muito novo que a política não é um conceito abstracto, mas antes uma força poderosa e omnipresente, «que influencia as pessoas na sua vida de todos os dias». Tal significa que a sua leitura dos quotidianos que relata os insere na ordem política imperante, jamais atribuindo uma grande importância à sua articulação com particularismos históricos ou culturais. Deve reconhecer-se, porém, que a sua perspectiva crítica, por vezes arrasadora, é temperada pela nostalgia de um igualitarismo, entretanto perdido, que suavizava o baixíssimo nível de vida da generalidade das populações. Fá-lo em particular no ensaio que relata o seu confronto com a miséria e o abandono com o qual, quando ali chegou pela primeira vez, veio a deparar nas ruas de Nova Iorque. Mas por outro lado, por detrás da uniformidade de comportamentos percebe-se perfeitamente, na sucessão das informações e dos testemunhos apresentados, que ocorreram cambiantes e mesmo distinções entre os diversos países comunistas e no interior da própria Jugoslávia, o que tempera uma tipificação excessiva dos métodos utilizados pelas autoridades e dos processos utilizados pelas populações para se lhes adaptarem ou os contrariarem. Quando se afirma que «foi no plano da vida quotidiana, mais do que no plano ideológico, que o comunismo realmente fracassou», insinua-se como foi principalmente uma acentuada dificuldade de relacionamento entre governantes e governados que precipitou o seu fim. Assim se escreve a uma dada altura: «se os políticos tivessem olhado, uma vez que fosse, para dentro dos nossos guarda-fatos, caves, armários e gavetas – sem ser para confiscar livros proibidos ou propaganda subversiva –, teriam visto o futuro que estava reservado aos seus magníficos planos».

        Notável também é a forma poética utilizada por Drakulic no processo da escrita, transformando cada um dos capítulos deste livro numa espécie de vinheta que ilustra a condição do cidadão comum e retrata o seu quotidiano sob a realidade do comunismo. O sentido de humor evocado no título, bastante menos presente afinal do que seria de supor, é assegurado pela maneira acentuadamente sarcástica de descrever o passado e, por parte daqueles que lhe sobreviveram, por um uso irónico da memória. Um livro datado, sem dúvida, mas muito útil.

        Slavenka Drakulic, Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor. Tradução de Rui Pires Cabral. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-11-5. Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

          Atualidade, História

          I beg your pardon?

          «Durante décadas, quando ser consumidor era praticamente o mesmo que ser comunista, guiávamos-nos todos por uma tabela que por cá nunca falhava: estrangeiro=melhor=mais caro. Quem fosse pobre ou tivesse um carinho fascista pela mediocridade, comprava nacional. Ou, pela calada, pedia a um fascista amigo para trazer do estrangeiro, onde era sempre mais barato.»

          Entre escrever isto e estar sosssegado, dos já não muito verdes anos «colhendo doce fruito», eu optaria, sinceramente, pela segunda hipótese. De livre e espontânea vontade, of course. A prosa bizarra é de Miguel Esteves Cardoso – de quem apreciei, e ainda aprecio, muita da escrita – e não é um bom augúrio para aquilo que o Público nos promete para 363 dias de cada ano. Oxalá me engane, pois assim por assim prefiro ler blogues ao pequeno almoço.

            Apontamentos, Recortes

            Xeque ao Boris

            Boris Pasternak

            O rumor circulava há já algum tempo, mas agora, escreve o ABC e faz eco o Público, parece que se confirma. Boris Pasternak apenas terá ganho o Prémio Nobel da Literatura de 1958 porque, em cima da data-limite para a divulgação do vencedor, a CIA fez um esforço para que um original do Doutor Jivago impresso em russo – o livro tinha sido proibido na União Soviética e no ocidente apenas saíra em italiano numa edição de Gingiacomo Feltrinelli – pudesse chegar, por vias tortuosas, às mãos dos membros da Academia Sueca. O derrotado na corrida foi nada mais nada menos que Alberto Moravia. De Pasternak conheço apenas o livro citado, que li com algum esforço depois de tanto ouvir falar do filme de David Lean, e também alguns poemas dispersos, fosforecentes e rapidamente esquecidos, mas parece ser mais ou menos consensual que não existe paridade, em termos de valor absoluto ou comparado, entre a obra de um e de outro dos autores. A Guerra Fria estava no seu auge e tudo servia, de ambos os lados, para tirar o tapete ao adversário. É preciso sublinhar, para se medir a dimensão da cartada, que Pasternak, falecido dois anos depois da atribuição do prémio que não pôde receber, jamais terá tido conhecimento do que realmente se passou. Uma nova edição do best-seller do autor laureado, «pela primeira vez traduzido do russo» cinquenta anos depois do seu lançamento, acaba de sair em Portugal pelas mãos da Sextante.

              Apontamentos, História

              Delito no ar

              Não sei qual a gavetinha na qual vai ser metido o novo blogue Delito de Opinião. Sei que integra algumas pessoas que me habituei a apreciar pelo rigor da escrita, a capacidade de afirmarem convicções e a frontalidade da opinião. Mesmo quando delas possa discordar um pouco ou algo mais. A seguir, sem qualquer dúvida.

                Novidades, Oficina

                Da guerra cega à paz possível

                Na Palestina

                A guerra não é um grande momento para subtilezas e elegâncias, salvo para quem, numa confortável posição de segurança, dela se queira servir como de um tabuleiro de xadrez. Quando a vida e a morte se confrontam, quando o medo e a impiedade se olham de frente, é impossível pensar com ponderação e falar serenamente. Qualquer pessoa sabe disso, mas sabe-o melhor quem já esteve sob fogo em teatro de guerra. Nesses momentos a linha que separa coragem e cobardia, o júbilo e o lamento, frieza e descontrolo, torna-se invisível, e qualquer um, em poucos segundos, pode passar de cordeiro a lobo. Ou o contrário. Na guerra que vivi, pude ver homens religiosos dispararem sobre crianças (e vi depois essas crianças mortas), seres que me habituei a reconhecer como pacíficos a perderem totalmente a compostura e a chorarem como bebés. E o contrário também: pessoas em quem nem tinha reparado que, num repente, foram buscar forças e coragem a um lugar desconhecido. Nestas alturas, todos dizem o que lhe vem à cabeça, gritam ou ficam imobilizados, disparam à toa ou foge, fazem juras de ódio que podem tornar-se letais quando transportam ao ombro uma espingarda-metralhadora.

                Mesmo longe desses lugares terríveis, olhando-os nos monitores coloridos das nossas televisões e dos nossos computadores, esse envolvimento emotivo assalta-nos o raciocínio, torna-nos cegos e impulsivos, sendo preciso algum sangue-frio para conseguir discorrer sem levantar a voz sobre aquilo que vemos. Tarefa quase impossível, como se pode ver pelos posts que lemos sobre a guerra terrível que ocorre em Gaza, com quase todos a escreverem frases com pontos de exclamação, tomando um e outro dos lados em confronto, guardando para melhores dias a possibilidade de se questionarem sobre tudo aquilo que podem ver. Claro que os completos consensos jamais serão possíveis e que sempre existirão pessoas para quem o mundo é apenas branco-alvo e preto-carvão: essas só gritam contra a guerra porque um dos lados da brutalidade nela leva a melhor, mas anseiam pelo dia da vingança, no qual agredirão o agressor. Hoje, numa viagem matinal pela blogosfera lusitana, encontrei até um texto que compara aos nazis os responsáveis palestinianos da Fatah que se opõem ao Hamas. Outro identifica «inequivocamente» a causa da Palestina com um sinal do avanço do «fundamentalismo islâmico». Outro ainda diz da violência israelita ser esta «pior que o Holocausto». E a maioria dos comentadores, mesmo alguns dos mais clarividentes e respeitados, vê apenas a agressão israelita, não referindo que os responsáveis do Hamas possuem como meta declarada, para a qual apontam sem concessões, a «destruição de Israel», e que foram eles a quebrar o cessar-fogo, contra a posição negociadora da Fatah. Como ignoram a existência de um amplo movimento israelita a favor da paz e de um grande número de objectores de consciência que, contra o expansionismo sionista, propõem uma abordagem do conflito que passe pela aproximação entre vizinhos historicamente destinados a entenderem-se.

                Observamos por todo o lado manifestações cegas, claras deturpações e mesmo mentiras (o «subcomandante Marcos» chegou ao ponto de inventar uma declaração inexistente de Barack Obama sobre o seu apoio à invasão de Gaza). E reconhecemos posições que, de tão marcadas pela «ira da guerra», se mostram inúteis, contraditórias e perigosas. Não parece que devamos ir para a rua gritar indiscriminadamente «a favor do Hamas» ou «contra Israel», sendo apenas «pelos palestinianos» e «contra os judeus». Nem escolher obrigatoriamente a posição contrária, de aplauso de tudo aquilo que o governo israelita resolva fazer, incluindo o bombardeamento metódico de populações civis com as quais os «heróicos combatentes» do Hamas resolveram misturar-se. No levantamento de uma forte corrente da opinião pública internacional, partilhando a convicção de que a paz é possível – a paz, não apenas mais um cessar-fogo – e pressionando os governos para que tomem iniciativas sérias nesse sentido, residirá mais tarde ou mais cedo uma boa parte da solução.

                  Atualidade, Democracia, Opinião

                  A FNAC não tem cheiro

                  O Leitor

                  Bem sei que a imagem está corroída até à carcaça, mas a vida nunca é feita de experiências únicas. Sempre tive uma espécie de fixação lasciva no papel impresso. Mantinha estimulantes experiências olfactivas quando na camioneta das seis da tarde chegavam à loja, atados com um cordel de sisal e de rótulo fixado com uma cola escura, feita à mão, os rolos de jornais impressos em Lisboa na madrugada anterior. Outra, mais preciosa, encontrava-a nos fundos de uma casa de ferragens que vendia também artigos de papelaria, quando lá ia dar cabo das economias da semana em revistas de quadradinhos e carteiras de cromos. Logo que comecei a frequentar livrarias e bibliotecas que não conheciam ainda o vício da limpeza a aspirador de alta voltagem e a modernice da desinfestação química, passou a dar-me um prazer particular sentir aquele cheiro único a folhas novas e usadas, cobertas de imagens e sinais, capas coladas ou cosidas, mapas e cadernos, dedadas das pessoas, aparas de lápis e marcas de insectos. Elas transformaram-se então em alcovas peculiares, lugares para a consumação do vício solitário da leitura, da contemplação orgástica das pilhas dos livros, da apalpação das lombadas. Ainda me entrego silenciosamente a tais práticas, admito, em certos alfarrabistas, em velhas livrarias de província, e noutras, raras, que vou encontrando fora de portas. Existe por isso qualquer coisa de estranho, de enfadonho, insípido e incolor, nas estantes dos hipermercados de livros: elas já não têm sovacos, não cheiram, e, por isso, não dão gozo. Vício antigo e que vai desaparecer, o papel impresso é como aquelas meias de vidro com forte percentagem de fibra e costura na parte de trás, que fazem um ruído peculiar quando roçagam uma na outra: estão fora de moda mas não deixam de abrasar. Ou estarão de novo na moda e eu, demasiado concentrado na leitura, ainda não dei por isso.

                    Devaneios, Memória

                    Obrigado

                    Neste reinício de viagem para quem faz as suas contas do tempo pelo calendário gregoriano, quero agradecer, do fundo dos neurónios e do coração, a todos aqueles e a todas aquelas, contados já na escala das centenas, que têm colocado A Terceira Noite nas suas listas de destinos recomendados (sabe-se lá porquê, o Technorati não as desvenda a todas). E muito particularmente a quem incluiu agora este blogue no seu rol das preferências anuais. Obrigado pelo interesse e pela paciência de Job.

                      Etc., Oficina

                      Relógios cubanos

                      São poucas, seis ou sete, ou nem isso, as pessoas com as quais, ao longo da vida, verdadeiramente me incompatibilizei. Embora, quando já nada poderia fazer para voltar atrás, tenha concluído que em relação a duas ou três delas talvez fosse desejável que isso não tivesse acontecido. E que teria sido bom se essas pessoas pudessem ter sido trocadas por outras com quem tive forçosamente de conviver, embora a grande contragosto. Curioso é que alguns desses casos pessoais de desavença levada até à rutura se ficaram a dever a uma mesma razão, talvez incompreensível para quem considere apenas acessória a prática política: a posição de rejeição do regime cubano que a partir de certa altura, e apesar de respeitar a mensagem de esperança e utopia que um dia ele oferecera, comecei a manifestar. Não me zanguei com esses ex-amigos – ou eles não se zangaram comigo – por algum de nós ter chamado um nome feio ao outro. Zangámo-nos, na época, por causa de Fidel.

                      Aquilo que pode parece estranho a alguns, explica-se, no entanto, com uma relativa facilidade. Junto de uma grande parte das pessoas de quem fui ou sou próximo, pessoal ou politicamente próximo, a imagem do regime cubano, da sua realidade presente, e sobretudo do seu passado, permanecem ainda intocáveis. Mesmo junto daquelas que se viram desiludidas ou ficaram elucidadas com as experiências brutais do estalinismo e os trajetos falhados das últimas décadas do «socialismo real», Cuba permaneceu como o último dos santuários, associado a uma espécie de bem imanente que não deve nem pode ter um fim histórico e dar lugar a outra possibilidade. Ligada a uma experiência única, venerável mesmo quando se percebe, e há provas disso, que já não mobiliza e muito menos assombra.

                      Para compreendê-lo recuo no tempo que moldou a memória que partilhei, e ainda partilho, com essas pessoas. Quando os barbudos da Sierra Maestra tomaram o poder em Havana, já era vivo. Sabia ler, ou soletrar, o jornal que o meu avô me punha à frente todos os dias, e julgo que por causa desses momentos parte das minhas mais recônditas recordações políticas semligam à imagem daqueles homens e mulheres de porte jovem e desobediente, sublimes e diferentes para quem vivia num universo cor de cinza, ordeiro e aparentemente imutável. Anos depois, fui percebendo que aquelas imagens tinham participado de uma forma poderosa no modo como a minha personalidade foi sendo estruturada. Sei que algo de semelhante aconteceu com muita gente, mais ou menos da minha geração ou um pedaço mais velha, e um pouco por toda a parte: em Portugal, por toda a Europa, na América Latina ou até nos Estados Unidos. Falei disso com algumas, e ainda o faço de vez em quando, e li também alguma coisa sobre o assunto, como Cuba: Island of Dreams, um livro de Antoni Kapcia publicado em 2000, ou um óptimo estudo de Kepa Artaraz (de quem saiu, na Palgrave, Cuba and Western Intellectuals Since 1959).

                      Percebo, pois, que para muitos dos que vivem da fidelidade às causas e às convicções que os compuseram, e que pelas circunstâncias da vida não foram desenvolvendo uma capacidade de adaptação à novidade – o que não é necessariamente mau ou bom – reconhecer o falhanço e a desonra do caminho tomado pela Cuba «revolucionária» é qualquer coisa que custa a engolir. Mesmo quando se aceita que a condição de gratuitidade da saúde é importante, que a educação, apesar de não livre, é para todos – também o eram a saúde e a educação dirigida na generalidade dos países do leste europeu até à Queda do Muro de Berlim -, percebe-se, pois quem visite a ilha com os ouvidos abertos sabe que tal não chega para um número crescente de cubanos, que isso não basta para continuar a apontar Cuba como modelo. Ainda que possa bastar para uns quantos prosélitos continuarem a elogiar a caduca fortaleza que consideram um Eldorado e um modelo a seguir.

                      Custa sempre, de facto, descartar as marcas que pautaram os ideais de juventude, ou que nortearam toda uma vida, e foi isso que os tais dois ou três meus ex-amigos revelaram. Penso neles, nesses companheiros que perdi, furiosos com as minhas críticas à rigidez do regime de Havana, à repressão que instituiu, à violência que continua a exercer, após vai para seis décadas de vida, sobre os cidadãos que pensam por conta própria, nesta noite na qual se perfazem os 50 anos sobre a queda do ditador Batista e a bela vitória da revolução dos mal-fardados de verde-oliva. E tenho pena de que tenham parado os seus relógios algures num tempo que não volta. Num passado no qual, todavia, precisam dramaticamente confiar para continuarem a olhar-se ao espelho como gostam de se ver.

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                        Outro olhar

                        Amos Oz

                        Não necessariamente menos discutíveis, mas certamente menos comuns na blogosfera que observa a realidade apenas com um dos olhos, são as palavras de Amoz Oz no artigo «Israel deve defender os seus cidadãos», divulgado hoje na edição do Público. Aqui ficam alguns extractos, à consideração dos passantes:

                        «O mundo árabe irá cerrar fileiras em torno das imagens atrozes que a Al-Jazira irá emitir de Gaza e o tribunal da opinião pública mundial apressar-se-á a acusar Israel de crimes de guerra. Este é o mesmo tribunal da opinião pública que se mantém insensível perante o bombardeamento sistemático das povoações de Israel.»

                        «Vai haver muita pressão sobre Israel pedindo-lhe contenção. Mas não vai haver nenhuma pressão semelhante sobre o Hamas, porque não existe ninguém para os pressionar e porque já não há praticamente nada que possa ser usado para os pressionar. Israel é um país; o Hamas é um gang

                        «Os cálculos do Hamas são simples, cínicos e pérfidos: se morrerem israelitas inocentes, isso é bom; se morrerem palestinianos inocentes, é ainda melhor. Israel deve agir sabiamente contra esta posição e não responder irreflectidamente, no calor da acção.»

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                          ♪ É ou não é?

                          Rui Reininho

                          O Rui Reininho é, admito, um rapaz da minha geração. Ou é um rapaz, ponto – . –, pois sou ligeiramente mais velho e, posso apostar duas minis, enquanto ele aprendia a soletrar já eu multiplicava as dezenas. Talvez por isso me amolece ouvi-lo agora, do lado de cá do milénio, com rugas, cabelos brancos e a voz completamente fanada. A arfar quase tanto quanto eu quando subo três lanços de escadas. Transmutando uma cantiga parvinha e preguiçosa (as Doce, lembram-se?), numa canção pop triste e enorme. E 100% nocturna. É ou não é?

                          Música: Rui Reininho – Bem Bom [Companhia das Índias]
                          [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/12/04-rui_reininho-bem_bom.mp3]

                            Apontamentos, Devaneios, Música