O ovo da serpente

Douch

Com o princípio do julgamento de Kaing Guek Eav, o camarada Douch, responsável pela prisão de Suoel Sleng, em Phnom Penh, por onde passaram cerca de 16 mil pessoas, das quais apenas 20 dali saíram com vida, tornam a ser evocados alguns episódios do genocídio metodicamente organizado pelo regime khmer vermelho que governou o Cambodja entre 1975 e 1979. Procurando produzir, a partir do retorno ao grau zero do desenvolvimento económico, uma paraíso sem cidades, sem dinheiro, sem hospitais, sem universidades, sem livros e sem história, o «ultramaoísmo» dos khmers vermelhos recuperou e levou ao limite a lógica feroz da Revolução Cultural chinesa, conferindo-lhe uma base agora exclusivamente rural e depurando algumas das hesitações que terão feito com que esta não tivesse sido capaz de completar a sua missão. O resultado, calculam estimativas benevolentes, foi a morte de entre dois a três milhões de cambodjanos – a variabilidade dos números dá também uma medida da dimensão de uma política que em menos de quatro anos apagou do registo dos vivos cerca de um terço da população do país – e a destruição total tanto dos serviços públicos como dos sectores da produção não dependentes da economia de subsistência mais básica. De vez em quando aponta-se o dedo aos criminosos, nomeados um a um sempre que morrem de velhice ou são presentes a tribunal, mas deixa-se em paz o cimento ideológico, de recorte apocalíptico e supostamente redentor, edificador de humanidades «novas» sem alma, que deu coerência a uma doutrina transformada em arma de agressão e de terror. Esse continua a chocar o ovo da serpente.

    Democracia, História

    Espionagem sem mestre

    She spy

    Ainda outra invenção da gente do Google. Acaba de ser lançada uma ferramenta que introduz automaticamente na assinatura das mensagens enviadas pelos utilizadores do Gmail a identificação da localidade a partir da qual estes as escrevem. Bem sabemos que através da referência do IP era já possível uma localização aproximada, mas esta era acessível apenas a uns quantos. Agora qualquer um/uma pode distrair-se e demonstrar através do correio electrónico que não está onde declara estar. Não mais será possível dizer por e-mail sem contar com problemas aquilo que dizia há dias, ao telemóvel, um pacato cavalheiro com o qual me cruzei numa rua de Évora: «Ó Filomena, eu agora não posso ir tratar-te disso porque estou em Huelva!»

      Cibercultura, Democracia, Etc.

      Give peace a chance

      Cachimbo da paz

      Obama escreveu a Cavaco pedindo para este o ajudar «a edificar um mundo mais seguro». Obama escreveu a Sócrates pedindo para este o ajudar «a edificar um mundo mais seguro». Obama escreveu a um número indeterminado de presidentes e de primeiros-ministros de todo o mundo pedindo-lhes para o ajudarem «a edificar um mundo mais seguro». Um certo jornalismo indígena, indomavelmente bacoco e provinciano, considerou logo que o presidente americano colocou Cavaco e Sócrates na fila da frente para a cerimónia do cachimbo.

        Atualidade, Etc.

        O Expresso tresvaria

        O comissário desaparecido

        Num acesso de extremo ridículo, o Expresso compara a saída de Joana Amaral Dias da direcção do Bloco de Esquerda a uma purga à maneira de José Estaline. E para ilustrar o absurdo – num apontamento que intitulou de um modo supostamente irónico «Do passeio no Volga à Convenção do Areeiro» – nada melhor que relembrar a recorrente prática estalinista de fazer desaparecer dirigentes dos lugares que ocupavam no Partido, na vida e na história, ilustrando a referência com uma conhecida imagem manipulada na qual ocorreu o apagamento de Nicolai Yezhov, desta maneira apresentado como um mártir da liberdade. Saberá o relator anónimo de tal apontamento quem era o seu momentâneo herói Yezhov, mais conhecido por «o Anão», Comissário do Povo para os Assuntos Internos e responsável entre 1936 e 1938 pela chamada «Yezhovschina», a fase mais aguda do Grande Terror durante a qual centenas de milhares de comunistas e de quadros do Estado soviético foram torturados, executados ou, com um pouco mais de sorte, condenados a um exílio siberiano geralmente sem retorno? Yezhov ousou a dada altura chantagear figuras próximas do «Pai dos Povos» – começara mesmo a reunir material para chantagear o próprio Estaline – acabando por ser substituído pelo nosso bem mais conhecido Lavrentiy Beria. Foi executado em 1940. A analogia estabelecida pelo «semanário de referência» é demasiado absurda para parecer cómica. O Bloco lá terá os seus defeitos, mas não consta que Joana Amaral Dias tenha saído aos empurrões e sido enviada para uma abjecta masmorra. Ou apagada, credo!

          Apontamentos, História, Opinião

          Política de medo

          Abusador

          A forma como vejo a proibição de entrada no Reino Unido de Geert Wilders, o deputado holandês de extrema-direita que tem difundido, no seu país e fora dele, posições abertamente xenófobas, não entra no coro dos aplausos nem no dos apupos. Também me parece que pessoas que pensam e agem como Wilders devem ser contidas nos seus direitos políticos (que usam contra a democracia que os alimenta) e no uso do espaço público que lhes é concedido (do qual se servem para sustentarem formas de ódio e de violência social). A sua intervenção deve ser criminalizada de forma clara e as autoridades policiais e judiciais dos países democráticos devem depois agir em conformidade com a qualidade do crime. Esse seria o princípio que me levaria a aplaudir a medida de proibição imposta pelo governo britânico.

          Aceitando-a, não posso, todavia, deixar de ver nela – num registo um pouco diferente, João Tunes fez já a mesma coisa – não a expressão de um meritório princípio democrático, mas o seu contrário. Sendo claro: trata-se de uma cedência cobarde, e não declarada sequer, às práticas intolerantes associadas aos partidários, europeus ou não, de um certo Islão que se crê acima da própria democracia e da cultura laica (e laicista) que a Europa conserva ainda como matriz. As notícias que chegam sobre Fitna, o filme de Wilders que iria ser projectado na Câmara dos Lordes e que o seu autor iria apresentar, coincidem em considerá-lo uma manipulação barata do Corão destinada a criminalizar os muçulmanos apenas pelo facto de o serem, e para isso – o apelo ao ódio religioso – existem, julgo, leis próprias que deveriam ser aplicadas dentro do país no qual o delito fosse cometido. Mas em vez desse gesto arrojado e justo, as autoridades britânicas optaram uma vez mais, como noutras paragens da Europa tem sido feito também, por ceder às pressões dos islamitas e por conservarem o criminoso à distância apenas pelas suas «opiniões radicais contra o Islão», não por ser um potencial e «algemável» criminoso. Outro passo atrás na política de medo e de autodepreciação.

            Atualidade, Democracia, Opinião

            Noutro século

            Novo século

            Fabrice d’Almeida é especialista em história da propaganda pela imagem e director do Institut d’Histoire du Temps Présent de Paris. Esta condição é essencial para se compreender melhor o seu interesse por um tempo curto, extremamente próximo do nosso, que pode parecer de uma quase impossível materialização histórica. Mas é justamente esse o seu desafio na Breve História do Século XXI (Teorema): num texto arrojado, D’Almeida parte de alguns acontecimentos relevantes da segunda metade do século de Novecentos para mostrar de que maneira passámos de facto, sem que para tal fosse necessária a intervenção simbólica introduzida pela viragem de milénio, de uma época para outra. O livro apresenta-se como um primeiro ensaio de história geral do século XXI, construído a partir de algumas questões simples que orientam o trabalho do autor: quando e como acabou o século passado? em que preciso momento começou realmente um novo? de que forma pode o historiador trabalhar já sobre este, com que fontes e seguindo que métodos? Para responder ao desafio, procede então a uma revisão da nossa forma de observar o mundo, insistindo em como é preciso desviar o olhar do trágico século XX, que tanto pesa ainda nas nossas consciências, contornando a parasitagem mediática e procurando em todos os documentos possíveis, incluindo-se nestes os mais anódinos, as novas matrizes e os renovados paradigmas que estão já a penetrar a nossa forma de olhar o mundo e de reflectir sobre ele.

              Atualidade, História

              Retaliação

              A gaulesa Encyclopaedia Universalis, edição de 2009, contém uma entrada sobre Luiz Nazario de Lima Ronaldo e outra sobre Ronaldo Assis de Moreira «Ronaldinho». Não tem uma sobre Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Penso que se trata ainda de uma retaliação pelo facto de, durante a Guerra da Sucessão de Espanha (1702-1714), termos apoiado um Habsburgo contra um Bourbon. Estes franciús são muito vingativos.

                Devaneios, Etc., História

                Entretanto no Bloco

                À esquerda

                Dez anos após a fundação do Bloco de Esquerda, a VI Convenção que decorreu neste fim-de-semana colocou um ponto final e abriu um parágrafo na sua curta e agitada história de sucesso. Se quisermos, o «velho» Bloco de causas, resultante de uma amálgama complexa de percursos colectivos e individuais que em 1999 procuravam sobretudo a construção de uma plataforma que lhes permitisse entenderem-se, seguiu o seu caminho natural, alijando algumas vozes discordantes que se foram afastando (quase sempre pacificamente, sem dramas, o que foi só por si uma novidade para quem vinha de um universo dogmático e habituado a purgas), mas conquistando ao mesmo tempo uma base social alargada e uma visibilidade pública que, nos seus tempos de prática política isolada, militante algum das organizações que lhe deram corpo vislumbrara nos seus melhores sonhos. Quando as sondagens são unânimes a considerarem a grande possibilidade de o Bloco ultrapassar o Partido Comunista, é agora todo um outro horizonte que se abre e que passa, previsivelmente, por uma intervenção cada vez mais apostada em apresentar alternativas de poder, ou com capacidade de intervenção num plano legislativo e de gestão política, no interior do sistema democrático que habitamos. A «esquerda grande» da qual falou ontem Francisco Louçã – expressão que traduz um daqueles tiques popularuchos que de vez em quando ainda escapam –, supõe também uma suposta maioridade que se traduz na superação de uma auto-representação do Bloco e dos seus presumíveis aliados como meras forças protestativas e de contrapoder.

                O futuro dirá para onde nos leva o caminho agora aberto. Ficam, no entanto, dois problemas urgentes por resolver e não sei como irá o Bloco lidar com eles, uma vez que, enquanto partido adulto e «de confiança», não pode continuar a manter a seu respeito uma posição de público alheamento. O primeiro deles tem a ver com a posição face ao PCP, que continua assumir-se como um partido anti-sistema e que já declarou publicamente ver no Bloco um dos adversários a abater. A aproximação com os comunistas, como quase toda a gente sabe, apenas será possível numa situação crítica e de confronto com um inimigo maior – que felizmente não se vislumbra -, uma vez que lhes está nos genes identitários a vontade de se assumirem como força dirigente, arrastando atrás de si os sectores que considera «menos consequentes» e que apenas respeitarão enquanto os puderem instrumentalizar. O segundo problema tem a ver com o apagamento quase completo de uma esquerda radical, de protesto e de denúncia, não comprometida com as máquinas do poder, que o Bloco praticamente «secou». Este campo é necessário porque é ele quem pode dizer «inconveniências», apontando em quaisquer circunstâncias para a nudez do rei, e em breve os dirigentes bloquistas pensarão duas vezes, se é que o não fazem já, no preço político e eleitoral que pagam pelo empenho dado a combates demasiado delicados e a causas minoritárias.

                Em todo o caso, e independentemente da forma como estes dois problemas poderão ser resolvidos, digo sempre a mesma coisa a quem me pergunta, perante as posições independentes e muito críticas que vou tomando aqui e ali – quase sempre distanciadas da minha frágil e efémera antiga militância bloquista -, se afinal irei votar nas próximas eleições. Digo que sim, que irei votar. No Bloco de Esquerda, claro.

                  Atualidade, Opinião

                  Crime organizado

                  Crime

                  Misha Glenny estudou em Praga e trabalhou diversos anos nos Balcãs, o que lhe deu uma certa vantagem no reconhecimento de alguns dos caminhos mais sombrios por onde, após o aluimento dos regimes socialistas do Leste, passou a alojar-se o universo desterritorializado da nova criminalidade. Com efeito a primeira parte de McMáfia: O Crime Organizado Sem Fronteiras (Civilização Editora) ocupa-se da Rússia e dos países que durante décadas orbitaram na sua área de influência política, dando particular destaque ao que ocorreu na Bulgária e que pode servir como paradigma de uma certa transição: os serviços secretos desempenharam ali, durante o período comunista, um papel muito importante no tráfico de armas e de drogas na Europa ocidental, e muitos dos seus ex-agentes transitaram directamente para o crime organizado. Sempre com muitos detalhes, o livro parte depois ao encontro das novas rotas abertas ao delito transformado em instituição a partir do final da década de 1980, abordando também a sua actividade e o seu impacto no Médio Oriente, na Índia, na Colômbia, no Brasil, no Japão ou na África do Sul. Da prostituição e do negócio das armas, ao comércio de drogas, diamantes e órgãos humanos, passando pelo cibercrime e pela contrafacção, é toda uma economia paralela, erguida hoje à escala planetária e assente numa ordem imposta pela lei e pela força do mais forte, que se abre aqui ao leitor. Fazendo da velha Máfia quase um pacato território de cavalheiros.

                    Atualidade, Cidades

                    ♪ Last Goodbye (um post triste)

                    escarletxi

                    Miss Johansson, a moçoila trigueira que impressiona favoravelmente 90% dos homens de meia-idade (e 89% dos outros), afinal canta um bocadinho pior ainda – ah, aquele «it’s over, it’s over» em re sustenido maior! – do que cantava outrora a Dra. Marilyn. Estarei errado?
                    [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2009/02/17-scarlett_johansson-last_goodbye.mp3]

                      Devaneios, Etc., Música

                      Angola: o passado agora

                      Angola

                      José Eduardo Agualusa comenta no prefácio que escreveu para Fragmentos de Angola, de Sébastien e Thomas Roy (Teorema) que ali se dá a ver Angola, e em particular a cidade de Luanda, «não apenas a quem nunca a viu, mas também a quem sempre lá viveu e que, de tanto a ter diante dos olhos, se tornou cego para inúmeras evidências.» Talvez por chegarem de um mundo à parte, e sem a carga de memória de quem acompanhou de perto a descolonização e a destrutiva guerra civil, os dois franceses responsáveis por estas impressões de viagem e pelas fotografias a preto e branco que as acompanham produzem no leitor um efeito análogo ao de quem leia as notas de uma viagem até um planeta desconhecido. Fala-se aqui de uma Angola pós-guerra civil, que conhece finalmente a paz mas vê-a crescer associada a uma sociedade persistentemente desigual, na qual a esperança e o optimismo, nela quase essenciais, todos os dias se vêm confrontados com a ausência de um futuro previsível. É também um livro de «memórias em diferido», entre a reportagem e o devaneio literário, que vai associando a observação directa e o testemunho pessoal a referências explícitas fundeadas na história recente. Porque nesta paisagem, umas vezes desolada, pontuada por escombros, outras vezes luminosa e excitante, se vislumbram ainda, a todo o instante, as ligações com um passado do qual se vêem as sombras.

                        Atualidade, Cidades, Memória